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28 de agosto de 2022
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09:02

Caso Dopinha: como burocracia e ideologia dificultam preservação da memória

Por
Duda Romagna
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Dopinha, primeiro centro clandestino de tortura da ditadura militar no Cone Sul, localizado na Rua Santo Antônio, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21
Dopinha, primeiro centro clandestino de tortura da ditadura militar no Cone Sul, localizado na Rua Santo Antônio, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

No início de agosto, o imóvel que abrigou o primeiro centro clandestino de tortura da ditadura militar no Cone Sul, conhecido como Dopinha ou Dopinho (em referência aos Dops, Departamentos de Ordem Política e Social), voltou a ser assunto após ser anunciado no site de hospedagens Airbnb. O casarão, no número 600 da rua Santo Antônio, foi identificado em junho de 2011 como um dos diversos locais usados para repressão na ditadura.

Em 2014, durante o governo Tarso Genro, os proprietários do imóvel concordaram em vendê-lo ao poder público e disponibilizá-lo para a concretização do Memorial Ico Lisboa, em homenagem ao militante Luiz Eurico Tejera Lisboa, que desapareceu em 1972. Após a eleição de José Ivo Sartori para o governo do Estado, o projeto não avançou. Em 2016, o então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, firmou um compromisso de que a Prefeitura bancaria a desapropriação do prédio, o que também não aconteceu.

 

Em 2014, o imóvel que abrigou o Dopinha ainda não havia passado por tantas reformas. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Representantes do Comitê Carlos de Ré da Verdade e Justiça denunciaram que o prédio estava sendo reformado, incluindo a instalação de uma piscina nos fundos do terreno. Os integrantes do Comitê alegaram que, por se tratar de um prédio de interesse histórico no município de Porto Alegre, qualquer alteração precisaria ser aprovada pela Prefeitura, o que não teria acontecido. Segundo Suzana Lisboa, viúva de Ico Lisboa, que passou a dedicar sua vida à causa dos familiares de mortos e desaparecidos pela ditadura, a partir de 2016 os moradores passaram a hostilizar as pessoas que iam à frente da casa se manifestar.

No dia 12 de agosto de 2015, uma placa foi instalada na calçada em frente ao casarão, como iniciativa do projeto Marcas da Memória, criado por meio de uma parceria entre o Movimento de Justiça e Direitos Humanos e a Prefeitura de Porto Alegre para identificar locais onde ocorreram violações de direitos humanos durante a ditadura. Em outubro de 2020, a placa foi coberta de cimento, mas o Ministério Público determinou que fosse recolocada. Nela diz:

“Primeiro centro clandestino de detenção do Cone Sul. No número 600 da rua Santo Antônio, funcionou estrutura paramilitar para sequestro, interrogatório, tortura e extermínio de pessoas ordenados pelo regime militar de 1964. O major Luiz Carlos Menna Barreto comandou o terror praticado por 28 militares, policiais, agentes do Dops e civis, até que apareceu no Guaíba o corpo com as mãos amarradas de Manoel Raimundo Soares, que suportou 152 dias de tortura, inclusive no casarão. Em 1966, com paredes manchadas de sangue, o Dopinha foi desativado e os crimes ali cometidos ficaram impunes”.

Após ser coberta com cimento em 2020, placa instalada em frente ao Dopinha foi recolocada por determinação do Ministério Público. Foto: Luiza Castro/Sul21

De acordo com Jacqueline Custódio, advogada, especialista em Direito Público e integrante do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) Brasil, o negacionismo histórico tem papel relevante na dificuldade de tombamento de locais como o Dopinha. Nesse caso em específico, ela aponta que o processo foi complicado também por trocas de governo e pela questão ideológica. “Internamente existe esse processo de desqualificação, de apagamento, que tem a ver com essa nova política nacional de revisionismo, ou que a ditadura não existiu ou que era, afinal, uma coisa boa”, explica.

Além disso, para a pesquisadora, a burocratização é uma forma institucionalizada de controlar esses processos. “Existem pessoas que desqualificam e processualmente conseguem impedir isso, que não sabem nada de patrimônio ou que jamais trabalharam com isso.”

Na esfera federal, o processo de instrução de tombamento segue desde 2017, porém com a troca de superintendentes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e manobras administrativas, o andamento foi obstruído. O parecer arquitetônico para justificar a proteção concluiu que não havia elementos arquitetônicos suficientes para determinar um tombamento nacional, mas que era um prédio representativo e importante da história brasileira daquele período, o parecer histórico reafirmou a relevância em nível nacional.

Atual fachada do imóvel que abrigou o Dopinha. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ao serem entregues à superintendente do IPHAN, Juliana Inês Erpen, ela manifestou contrariedade ao tombamento, alegando que os estudos foram baseados em publicações com manifestações de cunho político ou ideológico. Para impossibilitar o acesso ao parecer histórico, o documento foi colocado sob sigilo, que só foi levantado em 2021 com o pedido de liberação para a pesquisa de Jacqueline. A instrução de tombamento prosseguiu por interferência da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, que intimou o gabinete da presidência do IPHAN para que esclarecesse o motivo pelo qual o processo de tombamento havia sido interrompido.

Leonardo Maricato, nomeado em 2019 como novo superintendente do IPHAN, requereu a elaboração de um novo parecer histórico, em 27 de outubro de 2020, para prosseguir com a instrução de tombamento. Há um parecer contrário ao tombamento do bem pelo valor arquitetônico e dois favoráveis ao tombamento pelo valor histórico.

Apesar disso, o Coordenador-Geral de Identificação e Reconhecimento-CGID do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (DEPAM), Adler Homero Fonseca de Castro, pediu a complementação dos dados, solicitando uma lista de informações e documentos. Adler é pesquisador da Fundação Cultural Exército Brasileiro, pesquisador associado ao Centro de Pesquisa em História do Exército, sócio do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil e atua nos temas de História Militar, cultura material, patrimônio histórico e ciência militar.

Para Jacqueline, é fundamental que o processo seja retomado, porém, as chances de nada mais tramitar neste ano são grandes. “Esse processo começou em 2017 e ele tem cinco anos para ser concluído, muito provavelmente vai ser arquivado”, admite. Para além do local e de seu papel na história, a sua conservação interna também conta para a preservação da memória. “No Dopinha houve um apagamento gigante, porque eles fizeram uma reforma, pintaram as paredes. Na justiça de transição a reparação simbólica ficou muito superficial.”

Foto: Luiza Castro/Sul21

O relatório final da Subcomissão da Memória, Verdade e Justiça, parte da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, finalizado em 2017, recomenda a instituição de uma política pública de criação de “sítios de memória”, com a identificação e o tombamento de imóveis utilizados como centros de repressão e detenção durante a ditadura, para torná-los memoriais ou museus. Em especial, o documento se refere ao Dopinha e reforça a “urgência para se ultimar a desapropriação” do local para ser usado “como memorial, como já ocorrem em outros países da América Latina, especialmente Argentina e Chile, onde há espaços para recordar os mortos e desaparecidos, deixados pelos regimes ditatoriais”.

Segundo Carlos Frederico Guazzelli, defensor público estadual aposentado e coordenador da Comissão Estadual da Verdade/RS (2012-2014), o Dopinha era uma estrutura repressiva que funcionava fora do Dops, coordenado pelo Centro de Formação do Exercito (CIE) enquanto o espaço “oficial” era reformado. “Claro que quando o Dopinha estava funcionando no casarão da Santo Antônio, era o Dopinha, mas ele pode ter funcionado em outros lugares também”, explica.

O relatório final da Subcomissão da Memória, Verdade e Justiça aponta que além do Dopinha, houveram outros 13 locais de tortura em Porto Alegre, como o prédio da Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Foto: Luiza Castro/Sul21 

O documento anexa uma lista de locais de tortura conhecidos no Rio Grande do Sul, além do Dopinha, outros 13 em Porto Alegre, em sua maioria, espaços já militarizados:

  • 8ª Delegacia de Polícia (desativada)
  • 12º Regimento de Cavalaria Mecanizada (hoje com sede em Jaguarão)
  • Cais do Porto
  • Estação Assunção do Corpo de Bombeiros
  • 18º Regimento de Infantaria
  • 1º Batalhão da Brigada Militar
  • Hospital Militar
  • Penitenciária Feminina Madre Pelletier
  • Polícia Federal
  • Presídio Central
  • Quartel da 6ª Polícia do Exército
  • Quartel da Companhia de Guardas
  • Regimento de Cavalaria

De acordo com o 4º Relatório Preliminar de Pesquisa da Comissão Nacional da Verdade, outros centros clandestinos foram descobertos em todo o território nacional, identificados como:

  • Casa Azul, Marabá (PA)
  • Casa de São Conrado, Rio de Janeiro (RJ)
  • Casa de Petrópolis (RJ)
  • Fazenda 31 de Março, São Paulo (SP)
  • Casa de Itapevi (SP)
  • Casa no bairro Ipiranga, São Paulo (SP)
  • Casa do Renascença, Belo Horizonte (MG)
  • Casa em Olinda (PE)
  • Casa em Goiânia (GO)
  • Sítio de São João do Meriti (RJ)
  • Casa em Recife (PE)
  • Casa em Fortaleza (CE)
  • Sítio em Belo Horizonte e Ribeirão das Neves (MG)
  • Fazendinha, Alagoinhas (BA)
  • Sítio no Triângulo Mineiro (MG)
  • Sítio em Sergipe
  • Apartamento em Brasília (DF)
De forma semelhante ao Dopinha, A “Casa da Morte” também teve o processo de se tornar memorial interrompido. Foto: Jornal A Verdade

Uma situação parecida com a do Dopinha foi a da “Casa da Morte”, na cidade de Petrópolis. Em janeiro de 2019, a Prefeitura de Petrópolis publicou um decreto que tornava a casa um imóvel de utilidade pública, para fins de desapropriação. Porém, em dezembro, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) acatou um mandado de segurança que invalidou o decreto municipal nº 610/2018.

A revelação da “Casa da Morte” só foi possível através de uma denúncia de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente a passar pelo local e que esteve lá encarcerada por três meses, em 1971. Ele funcionou nos governos Médici e Geisel. Segundo documento da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo menos 21 assassinatos ocorreram na casa.

Entre 1914 e 1938, o prédio, projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo, abrigou os escritórios e armazéns da Companhia Estrada de Ferro Sorocabana. Foto: Arquivo/Memorial da Resistência de São Paulo

Já em São Paulo, um prédio que sediou delegacias vinculadas ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP), entre 1940 e 1983, hoje abriga a Estação Pinacoteca e o Memorial da Resistência. Após uma restauração, foi inaugurado em 2002 o Memorial da Liberdade, que possibilitava ao público ver como eram as antigas celas do Deops.

A partir de 2006 o Fórum Permanente de ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo se mobilizou e propôs ao poder público a mudança do nome, porque “Liberdade” não se adequava aos atos que foram cometidos no local. Em 24 de janeiro de 2009, o Memorial da Resistência foi relançado. Hoje, o espaço recebe atividades educativas, de pesquisa, e também exposições temáticas.

De forma virtual, o Memorial da Resistência possui o Centro de Referência, um espaço destinado à documentação, preservação e comunicação das memórias de repressão e resistência política no Brasil. Um dos programas que o integra é o Lugares da Memória que procura identificar e agrupar locais vinculados a eventos de resistência e de repressão políticas, oferecendo referências documentais para que sejam possibilitadas ações preservacionistas em outros espaços. O Dopinha, inclusive, faz parte do repositório.

Segundo Julia Gumieri, pesquisadora sênior do memorial, a coleta dos dados vem, em parte, de uma escuta de estudos, relatórios de comissões da verdade pelo país, entre outros meios. “Tem muita fonte além de documentos que foram produzidos pelo próprio Deops que também ajudam a gente nesse sentido de consolidar as referências sobre lugares de memória”, explica.

Julia reforça a importância da construção de relações entre esses locais e o passado brasileiro. “Nós comprovamos com documentos oficiais, de vários níveis, como esses lugares de fato se inseriram no nosso contexto político repressivo para começar a construir essa rede de informações que ajudem as pessoas que estão envolvidas com movimentos de direitos humanos a terem sólidos argumentos contra o negacionismo, contra a falta de informação, contra esse tipo de situação que aconteceu no Dopinha”, observa.

Luiza Castro/Sul21

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