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17 de outubro de 2021
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11:46

Tragédia anunciada: perseguição e mortes abalam aldeia indígena de Serrinha

Por
Luciano Velleda
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No RS, conflito entre indígenas é alimentado pelo arrendamento de terras para produtores de soja. Foto: Arquivo Pessoal
No RS, conflito entre indígenas é alimentado pelo arrendamento de terras para produtores de soja. Foto: Arquivo Pessoal

No dia 24 de setembro, o Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha, localizada no norte do Rio Grande do Sul, divulgou um “pedido de socorro” e alertou sobre o risco de um conflito iminente na região devido as irregularidades envolvendo o arrendamento de terras e plantio de soja na reserva. “Se nada for feito hoje, haverá sangue indígena derramado amanhã!”, dizia a nota.

O “amanhã” chegou cerca de 20 dias depois do pedido de socorro. Neste sábado (16), dois indígenas foram assassinados na região, situada em uma área que abrange os municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Constantina e Engenho Velho. Uma pessoa permanece desaparecida.

Segundo testemunhas, a cena do crime foi montada para ser uma chacina. Sob condições de anonimato, sobreviventes contaram à reportagem do Sul21 que um grupo de 12 famílias expulsas recentemente da aldeia estava reunido num local conhecido como Recanto do Inácio desde as primeiras horas da manhã de sábado. A ideia era realizar um protesto e bloquear a RS 324 para chamar atenção sobre o conflito instalado na aldeia há mais de um ano.

Enquanto se preparavam para o ato, homens armados, muitos deles não-índios, chegaram em automóveis. O relato é de que já desceram dos carros atirando para matar. Desesperados, os indígenas que se preparavam para a manifestação começaram a fugir para dentro da mata. Alguns alcançaram o rio existente na aldeia e tentaram escapar por dentro d’água. Havia homens, mulheres e crianças na fuga. As duas vítimas fatais deixaram esposas e filhos.

Os sobreviventes acusam o cacique da aldeia, Marciano Claudino, como o responsável pelas mortes e dizem que ele estava no grupo que cercou e atirou nos indígenas. O cacique nega e sua versão dos fatos é completamente diferente. Segundo Claudino, ele passava pela estrada em sua camionete Hylux, acompanhado de três pessoas, quando sofreu uma “emboscada”, com muitos tiros alvejando o veículo. Apesar dos disparos, conta que ninguém ficou ferido.

O cacique afirma ter fugido do local, enquanto outros membros da comunidade que o apoiam teriam então começado o revide. A versão do cacique é rechaçada pelos sobreviventes, que o acusam de ter feito os disparos contra a própria camionete para forjar a cena do atentado.

No centro da discórdia existente na Terra Indígena Serrinha está o arrendamento de terras da aldeia para produtores de soja. Na nota divulgada pelo Conselho de Anciãos no final de setembro, a acusação é de que 59% da população da aldeia não tem terras, enquanto o cacique Marciano Claudino e sua liderança arrendam toda a área agricultável.

“O arrendamento das terras indígenas é realizado por uma Cooperativa denominada Cotrisserra, que recebe 3 sacas de soja por hectare, dos plantadores não indígenas, para um Fundo de Transição que deveria executar projetos sustentáveis que nunca saíram do papel”, afirmou, na ocasião, a nota do Conselho de Anciãos.

Os denunciantes dizem que os recursos recebidos pelo arrendamento estariam sendo utilizados exclusivamente para o plantio de monoculturas e para a compra de maquinários, deixando no abandono 387 famílias, em plena pandemia. Os indígenas em conflito com o cacique afirmam que o arrendamento das terras é ilegal e tem causado problemas, inclusive de corrupção, desde sua implementação pelo governo federal há décadas.

Os integrantes do Conselho de Anciãos e pessoas que sobreviveram ao atentado deste sábado criticam o Ministério Público Federal (MPE), a Funai e a Polícia Federal (PF) por não agirem, mesmo tendo conhecimento do conflito e das denúncias de irregularidades na gestão dos recursos oriundos do arrendamento das terras indígenas.

A revolta dos sobreviventes e indígenas expulsos da aldeia por denunciarem a má gestão das terras deve-se ao fato de que as mortes poderiam ter sido evitadas se as autoridades agissem. Por sua vez, a Funai e o MPF têm adotado o discurso de que se trata de “conflitos internos” às terras indígenas.

A Funai e o Ministério Público assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a cooperativa Cotrisserra, porém, as famílias perseguidas afirmam que o TAC não é fiscalizado e nunca foi divulgado para toda a comunidade. A Terra Indígena Serrinha tem uma população de cerca de 3.500 pessoas, divididas em 650 famílias da comunidade kaingang.

À reportagem do Sul21, alguns sobreviventes do conflito deste sábado afirmam que suas vidas dependem da ação dos órgãos públicos, como Funai, MPE e Polícia Federal. Se nada for feito, acreditam que serão mortos e terão suas famílias dizimadas. Escondidos fora da aldeia, dizem saber que seguem sendo “caçados”, mas que não irão parar com as denúncias contra o cacique.

Entre as acusações, está a de ter havido tortura de membros das famílias expulsas semana passada da aldeia. Elas foram presas pelo cacique e o grupo que o apoia no vestiário de um ginásio, improvisado como cadeia, e teriam sido espancadas. O cacique nega. “A terra indígena é tranquila”, afirmou Claudino, horas depois do tiroteio e dos dois assassinatos.

O cacique afirma trabalhar com transparência e diz ser “adorado” pela comunidade. Para ele, os habitantes da aldeia “não aguentam mais” as famílias que criticam o arrendamento das terras e o destino do dinheiro obtido pela cooperativa. Questionado sobre a acusação de ter comandado o ataque deste sábado, Claudino encerrou a entrevista e desligou o telefone.

As famílias expulsas e perseguidas têm tido suas casas queimadas e saqueadas. Há relatos de violência sexual contra as mulheres. No conflito desse sábado, quatro automóveis foram incendiados.

A esposa de um dos sobreviventes, que buscou o marido no meio da mata, enfatiza que as famílias atacadas pedem socorro há muito tempo. Até o momento, todavia, o pedido é em vão. Clamar por ajuda e justiça também foi a marca do conteúdo do manifesto do Conselho de Anciãos divulgado no final de setembro.

“A população da Terra Indígena pede transparência! As famílias do Conselho de Anciãos estão ameaçadas de serem expulsas, por terem denunciado a má gestão das terras a que todo indígena teria direito! O Vice Presidente do Conselho de Anciãos, Dorvalino Fortes, adoeceu e morreu, fulminado por um ataque cardíaco, por ter sido alvo de ameaças desde julho de 2020, porque Funai, MPF e Justiça Federal não adotaram providências e não protegeram as famílias que fizeram a denúncia! Serrinha pede Justiça! Se nada for feito hoje, haverá sangue indígena derramado amanhã!

Dessa vez, o “amanhã” chegou em menos de um mês. Escondidos e com medo, os sobreviventes temem pelos próximos dias


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