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27 de março de 2021
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20:42

Divisão do trabalho, aparato estatal e progresso real (por Marcelo Milan)

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Sul 21
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Divisão do trabalho, aparato estatal e progresso real (por Marcelo Milan)
Divisão do trabalho, aparato estatal e progresso real (por Marcelo Milan)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Marcelo Milan (*)

Desde os primórdios
Até hoje em dia
O homem ainda faz
O que o macaco fazia
Eu não trabalhava
Eu não sabia
Que o homem criava
E também destruía

I am a cave man, a young man
I fight with my hands, with my hands
I am a jungle man, a monkey man

Homem Primata, Titãs

A divisão do trabalho tem sido um objeto de interesse dos cientistas sociais desde pelo menos os célebres capítulos iniciais do Livro I de Uma Investigação sobre a Natureza e a Causa da Riqueza das Nações, escrito por Adam Smith. A divisão técnica do trabalho, exemplificada pela fábrica de alfinetes, mostra como, dentro das organizações, o parcelamento das atividades e a atribuição de tarefas ou funções específicas a determinadas pessoas promove a destreza do trabalhador e eleva o desempenho econômico, permitindo alcançar objetivos pré-definidos e identificados com o progresso real, como uma maior riqueza nacional. Esta diferenciação conduz à formação de profissões e ocupações específicas, inicialmente pelo aprendizado concreto, pela repetição e pela experiência, sendo posteriormente proporcionada pela transmissão padronizada de conhecimento, aprofundando um outro tipo de divisão. Marx discutiu esta divisão do trabalho, a social, a partir da diferenciação entre as próprias organizações com o movimento intersetorial do capital. Dentro das organizações, a divisão técnica refletida nas ocupações segue uma hierarquia imposta pela diferenciação jurídica entre proprietários e não proprietários, sintetizando a mais importante divisão nas sociedades capitalistas: as classes sociais. Os resultados deste arranjo ficariam concentrados a partir desta diferenciação jurídica, mas o aumento da capacidade produtiva do trabalho social proporcionaria uma elevação da riqueza em comparação com as formas pretéritas de organização social. O capitalismo representa um progresso real, mesmo que relativo, neste sentido.

O sociólogo francês Emile Durkheim, na obra Da Divisão do Trabalho Social: Estudo da Organização das Sociedades Superiores, enfatizou o aumento da complexidade característica da divisão do trabalho social na transição das sociedades primitivas para as sociedades modernas, embutindo na último o ideal de progresso. O progresso social é resultado da passagem da solidariedade primitiva mecânica para a solidariedade orgânica moderna, que permite uma maior densidade moral. Em David Ricardo, a divisão relevante do trabalho é a internacional, uma extrapolação territorial da divisão social, com os países se especializando a partir das vantagens comparativas, derivadas dos diferentes níveis de eficiência com que o trabalho social é aplicado em cada nação. Hoje este processo de segmentação internacional culmina com as cadeias internacionais de valor. As parcelas de trabalho são distribuídas não entre diferentes funções técnicas internas às organizações, mas entre os distintos territórios, com cada etapa do processo produtivo sendo executada em diferentes organizações ao redor do mundo. O progresso real é mensurado pela expansão das possibilidades de consumo daí derivadas. Os clássicos da CEPAL, contudo, identificaram os limites da divisão internacional em proporcionar uma distribuição menos desigual entre os territórios e setores da economia dos frutos do progresso técnico daí derivados, mas sem questionar que haveria progresso, mesmo que concentrado.

Estas contribuições, ainda que de natureza multidisciplinar quando comparadas à especialização acadêmica característica da sociedade contemporânea, refletem uma divisão do trabalho de reflexão e investigação científica proporcionada pelo fim do quase monopólio da religião sobre o pensamento. Os pensadores mencionados puderam produzir análises profundas sobre a divisão do trabalho pela própria divisão social do trabalho existente na sociedade moderna e espelhada em seus escritos. O estágio evolutivo alcançado permitiu a acumulação de excedentes e uma maior especialização do trabalho e do próprio trabalho intelectual.

Sem embargo, por trás do progresso relativo alcançado há não apenas divisão, parcelamento e segmentação, mas também processos de socialização de conhecimento, transbordamentos, cooperação técnico-científica etc. Por exemplo, o Toyotismo recria a condição de trabalhador multitarefas, abstraindo temporiamente o parcelamento de tarefas, para facilitar a circulação de conhecimento técnico de cada membro de uma equipe dentro desta e todas as demais equipes da organização. Reconfigura-se a divisão técnica, ao mesmo tempo em que a divisão social se acentua. As ocupações são redefinidas concreta e rapidamente, impulsionando e sendo impulsionadas pela ampliação do conhecimento social geral (o general intellect de Marx). Este processo encontra limites na própria forma de organização capitalista do trabalho, em que a lógica da produção, valorização e reprodução se pauta pelo trabalho abstrato, não pelos múltiplos trabalhos concretos em mutação variável, sem nunca negar a diferenciação jurídica essencial. Aqui, vale ainda a sabedoria popular: cada macaco no seu galho. Além disso, o leque de tarefas que uma especialização funcional ou profissional permite não é infinita ao ponto de invalidar a divisão técnica do trabalho. O processo de abstração total do trabalho não se pode concretizar historicamente.

A avaliação do progresso como tendência social sobredeterminante é explicitada ao se observar que este processo de diferenciação e divisão do trabalho não é recente. Começou milênios antes dos pensadores clássicos dos séculos XVIII e XIX. Ele remonta portanto à pré-história, às sociedades primitivas discutidas por Durkheim, podendo o fenômeno da divisão social (e sexual) do trabalho ser inferido com base nas pesquisas arqueológicas. No período neolítico, a passagem das comunidades de caçadores e coletores para a produção agrícola em bases permanentes geraram excedentes e permitiram maior adensamento populacional em bases sedentárias. Surgiram as primeiras ferramentas e a divisão do trabalho, com funções sociais especializadas, incluindo atividades governamentais e proto-Estados. Uma parte da sociedade passa a ser liberada das atividades laborais mais intensas, possibilitando a dedicação à reflexão. Nestas sociedades, a ocupação dada pela divisão do trabalho determinava a classe social. Guerreiros e religiosos se situavam no topo da hierarquia, enquanto agricultores e artesãos ocupavam a base. Esta divisão social persistiu, mesmo que de diversas formas, ao longo do tempo. Assim, no Ancien Régime francês, os três Estados representavam a separação de clérigos, nobres (responsáveis também pelas funções militares) e camponeses e burgueses.

Uma excelente síntese ficcional desta grande passagem ou transição histórica é proporcionada pelas cenas do filme de 1968 de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço. O monólito que guia a evolução humana efetua sua primeira intervenção no planeta ao possibilitar a transformação de símios nos primeiros homens primitivos, com o desenvolvimento de ferramentas. As disputas tribais são potenciadas pela utilização de um resíduo animal como instrumento de violência, selando a transformação, mesmo que parcial e não tendo sido completada até hoje, do macaco em homem. Contudo, a instrumentalização tem outro potencial. O progresso real fica explícito na transfiguração da ‘arma’ em elevação para a aeronave espacial. A indústria espacial representa hoje um dos componentes mais avançados e sofisticados da produção humana, ilustrando o alcance do progresso científico e tecnológico permitido pela divisão do trabalho. Ou seja, o progresso é resultado da especialização do conhecimento, do surgimento do pensamento científico em superação ao pensamento religioso e a superação dos mitos.

O descalabro do governo federal no Brasil atual se explica, em parte, pela negação do progresso real. Ora, se no período neolítico surgem as primeiras experiências com instituições de governo e proto-Estados, a divisão do trabalho se aplica também às funções desempenhadas dentro do aparelho de Estado, sem negar a importância do movimento de socialização, coordenação e articulação típico das organizações estatais complexas. A divisão do trabalho sugere que um determinado tipo qualquer de função pública requer um tipo específico ou concreto de trabalho, mesmo dentro dos limites da multifuncionalidade. Não existe trabalho concreto capaz de ser abstraído e se moldar a diferentes funções, pelo menos não em curtos períodos de tempo, sem qualquer experiência ou conhecimento prévios.

E não existem instituições de ensino, mesmo as voltadas para a formação geral, e cuja própria generalidade é também limitada pela especialização das funções sociais, capazes de proporcionar uma força de trabalho totalmente flexível em termos de capacidade e aptidão para diferentes tarefas e funções. Essa limitação é maior ainda nas instituições voltadas para ações de formação e treinamento de trabalho concreto e funcionalmente especializado. A existência de cursos de nível superior voltados para a formulação e execução de políticas públicas, como o da Faculdade Goldman da Universidade da Califórnia em Berkeley, ou o da Escola Kennedy de Governo da Universidade de Harvard, sugere que a especialização do setor público é também inevitável mesmo nas sociedades em que se acredita que o setor público civil desempenha um papel reduzido. A formação é especializada justamente porque reflete a divisão social e técnica do trabalho. A qualificação do trabalho dos servidores é necessária para qualquer aparelho de Estado, o que muitas vezes leva a preenchimento de currículos irreais e fantasiosos que buscam produzir a ilusão do conhecimento sem comprovação real. A qualificação especializada reflete o conhecimento acumulado por séculos, proporcionando uma experiência condensada e controlada para minimizar as perdas de desempenho que ocorreriam caso fossem feitas, por alguma razão, atribuições de funções complexas para quem não estaria apto a exercê-las e que alcançariam alguma efetividade apenas ao longo de muitos anos. Fazer tal atribuição seria justamente negar o progresso real e explicitação de incompetência.

A administração pública, portanto, não está isenta da divisão técnica e social do trabalho. A divisão do trabalho é um traço social geral das sociedades com algum grau de complexidade e que almejam algum progresso. Assim, há divisão social do trabalho entre as burocracias civil e militar por um lado e os agrupamentos políticos por outro. Dentro das organizações e instituições prevalece a divisão técnica do trabalho, ainda que no estamento militar muitas decisões relacionadas à hierarquia possam definir as funções e patentes e na burocracia civil nem sempre o preenchimento de cargos é efetivo. O provimento de cargos públicos segue normas legais e também de necessidades técnicas dentro das organizações do aparelho de Estado. Mas a necessidade técnica não se confunde com a necessidade pura de eficiência. Ou, pelo menos, não apenas, já que a última é também um dos princípios da administração pública explícitos na Constituição Federal de 1988, pelo menos o que restou dela. Neste caso o princípio envolve o cumprimento de tarefas de forma competente e qualificada, obtendo resultados com reduzidos níveis de desperdício. A morosidade típica da burocracia impede, contudo, que o tempo de execução seja sempre o mais rápido. De qualquer forma, o princípio só pode ser observado se houver alguma adequação à divisão social e técnica do trabalho inscrita no aparelho de Estado.

Por outro lado, ainda que uma parte expressiva do trabalho social no aparelho de Estado seja executada por burocracias especializadas, a direção política não obedece necessariamente aos mesmos cânones na escolha dos cargos de responsabilidade no preenchimento dos ministérios, podendo exercer a opção de medidas regressivas e de rejeição do progresso real. A atual administração federal têm inúmeros exemplos desta recusa no progresso que a divisão social e técnica do trabalho permitem. De fato, a política é inevitável em organizações verticais ou hierárquicas. Grandes organizações seguem sempre uma certa inércia burocrática, mas há liberdade de escolha política, mesmo que tal liberdade seja empregada para fazer escolhas que criam confusão na burocracia e na sociedade que com ela interage. A cadeia de comando político reproduz os conceitos e preconceitos do topo da hierarquia no corpo burocrático.

A sociedade, porém, cria dispositivos para que a discrição e o voluntarismo político sejam limitados. Por exemplo, o princípio constitucional da impessoalidade cria barreiras para a promoção dos interesses particulares, como a nomeação com base em laços de amizade ou parentesco. Isto porque não há vinculação cargo-pessoa, pois um cargo possui exigências e atributos que podem ser preenchidos por um número razoável de pessoas com níveis similares de competência, mas também de incompetência. Não é a pessoa ou seus atributos pessoais, mas a capacidade de exercício da função por critérios objetivos, dentro das diferentes concepções políticas, que deveria orientar o processo político uma vez escolhido democraticamente o projeto de sociedade. Contudo, isso só funciona se a divisão social do trabalho no aparelho do Estado funcionar, com o poder judiciário observando e fazendo valer a lei, mais do que utilizando-a para fazer política e aprofundar projetos de sociedade cujo objetivo é o reverso do progresso real.

Assim, a separação entre burocracia civil e militar e entre estas e o exercício de funções políticas tem sido objeto de regras ao longo da história, que são violadas a um alto custo. Quando Júlio César, no comando da XIII Legião, viola a lei de Roma e cruza o Rio Rubicão, estabelecido como limite geográfico separando a Itália da Gália Cisalpina, causa a desorganização da atividade política por meios militares, provoca uma guerra civil e finalmente se torna ditador vitalício. As características pessoais de Júlio César, e principalmente seu papel na divisão social do trabalho, não o capacitavam para o exercício normal da política, sem recurso ao arbítrio e ao uso da força, dada sua principal especialização. A história mostra que a regressão é sempre uma possibilidade, e que nem sempre as instituições são capazes de eliminar esta opção e menos ainda sua implementação como projeto de sociedade.

Se o objetivo é alcançar um elevado desempenho, alcançando um progresso real, a atribuição de cargos deveria seguir as necessidades indicadas pela divisão técnica do trabalho. Na China, país cuja organização social possui forte direção política, a Comissão de Administração e Supervisão de Ativos Estatais (SASAC), por exemplo, é gerida atualmente por Hao Peng. Qual o critério para esta escolha? Apenas ser membro do Partido Comunista Chinês? Mesmo que este elemento seja fundamental, Peng, para além da experiência política, tem sólida formação acadêmica (mestre em engenharia de sistemas aeroespaciais – sem relação com o símbolo de progresso de Kubrick – e economista) e experiência no mundo da produção (fabricação de dispositivos de controle de voo). Neste caso as funções exercidas encontram respaldo na capacidade do ocupante do posto. Não é o único, insubstituível, mas pertence a um grupo de pessoas aptas e capacitadas para a função. É impensável que a China, mesmo com discricionariedade política, escolhesse alguém explicitamente incompetente em termos de conhecimento dado por experiência ou formação, para gerir uma das maiores administradoras de riqueza do mundo. Por que o governo federal adota este tipo de medida o tempo todo?

No caso do Brasil, nem é preciso avaliar o desempenho do governo federal, se o mesmo é por antecipação inefetivo e provavelmente regressivo, em função da escolha massiva de quadros sem conhecimento específico e sem experiência prévia na função? E mesmo a discussão do porquê desta desnecessária avaliação não pode ser feita, sendo desviada por atos de tergiversação, criação permanente de nuvens de fumaça e, no limite, mecanismos de censura explícita ou implícita, violando o princípio administrativo da publicidade, quando não de defesa, pela ameaça de uso de meios violentos, da opção pelo fracasso. Desempenho não se mistura com moral, mesmo que falsa. Busca-se naturalizar a nomeação de quadros incompetentes com base em suposta aptidão, por meio de analogias espúrias: mera transferência de pessoas entre organizações burocráticas, em que o perfil genérico da organização e da posição na hierarquia da mesma seria utilizado como desculpa para a nomeação. Fere-se o princípio da moralidade administrativa, mas perde-se igualmente a oportunidade de alcançar algum progresso real pela distância entre a insuficiente qualificação do trabalho e necessidades técnicas do cargo ou função.

Assim, quaisquer que sejam os objetivos, e esta definição passa necessariamente pelo aspecto político, eles dependem de competência técnica para serem alcançados. A sorte, evento aleatório raro, não afeta resultados em sistemas complexos, com muitas interligações e com várias organizações atuando em rede. E menos ainda quando o processo de escolha de componentes desqualificados para inserção no universo complexo do Estado se repete com elevada frequência, levando à fadiga as organizações do Estado (e da sociedade). Não há como escapar da constatação óbvia de que a consecução dos objetivos depende de competência do trabalho executado para alcançá-los. Por essa entre tantas outras razões, a China apresenta desempenho muito superior ao Brasil, e com o hiato crescendo de forma acelerada, em todas as áreas objetivamente comparáveis.

O verdadeiro progresso, o progresso real, não o positivista, é alcançado com ciência e conhecimento, não por movimentos análogos a uma volta ao período pré-histórico anterior ao neolítico, quando não havia refinamento do trabalho técnico nem para armas rudimentares. Voltando a Kubrick, dos primatas se espera apenas primitivismo, a impossibilidade do progresso real pela ausência da divisão do trabalho. Durkheim separou as sociedades superiores das sociedades primitivas com base justamente na divisão do trabalho, e como a transição de uma forma de organização para outra estaria marcada pelo caos e pela desordem. É interessante notar que o sociólogo francês fora influenciado por Auguste Comte, o mesmo pensador positivista que inspirou a bandeira brasileira em sua configuração republicana. L’amour pour principe et l’ordre pour base; le progrès pour but, declama Comte. Mas se o progresso idealizado, mesmo que impreciso, é de fato o objetivo, o País regride, analogamente ao primitivismo rudimentar, sendo a gestão político-militar do aparelho de estado dentro do primeiro escalão o sintoma mais visível, mas não o único, desta decadência.

(*) Bacharel, Mestre e Doutor em Economia.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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