Geral
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16 de janeiro de 2021
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11:30

Equilíbrio entre lucro e conservação ambiental definirá futuro dos parques de Aparados da Serra e Serra Geral

Por
Luciano Velleda
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Sob controle de uma empresa privada, a dúvida de ambientalistas é se a conservação da biodiversidade não perderá a prioridade para o lucro do turismo.  Foto: Ênio Frassetto/Prefeitura de Cambará do Sul
Sob controle de uma empresa privada, a dúvida de ambientalistas é se a conservação da biodiversidade não perderá a prioridade para o lucro do turismo. Foto: Ênio Frassetto/Prefeitura de Cambará do Sul

A concessão à iniciativa privada dos parques nacionais dos Aparados da Serra e da Serra Geral, situados na divisa entre Santa Catarina e o Rio Grande do Sul, deu a largada para o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), que pretende fazer o mesmo com outras 20 unidades de conservação do Brasil. Por se tratar da preservação da biodiversidade, o tema é espinhoso, afinal, conceder à iniciativa privada a exploração econômica de parques nacionais não é o mesmo que aeroportos ou ferrovias. Por enquanto, a conclusão dos primeiros parques nacionais leiloados no novo modelo de concessões do Ministério do Meio Ambiente (MMA) levanta muitas dúvidas e incertezas do que está por vir.

Segundo o edital, vencido pelo grupo Construcap com lance de R$ 20,5 milhões iniciais pela concessão das duas unidades, a empresa ficará responsável pelos serviços de segurança, revitalização, manutenção e gestão dos parques. Em contrapartida, fará a exploração comercial da área, com cobrança de ingresso e o turismo, incluindo serviços de alimentação, estacionamento, lojas de souvenires, lanchonetes, transporte interno de passageiros, passeios de navegação fluvial, voos panorâmicos de helicóptero, administração de centros de visitantes, trilhas, campings e mirantes.

Francisco Milanez, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural  (Agapan), destaca que os parques nunca foram valorizados como deveriam, embora tenham alguma estrutura. Um dos problemas da concessão à iniciativa privada, diz ele, começa pela falta de transparência do processo. Obviamente, o interesse da empresa privada com a concessão é obter lucro, algo que Milanez não vê como problema, ao menos em tese. O temor é haver o aumento descontrolado de público no parque.

“A tendência da empresa é ser contrária à preservação, é superar a capacidade de uso do ecossistema local e botar o máximo que pode”, afirma. “Ser explorado, de alguma forma, não é problema, o problema é entregar pra alguém cujo interesse não é a preservação. Então tem que ser muito bem pensado.”

O presidente da Agapan explica que o simples fato de estar no parque tem impacto. Por isso, o plano de manejo determina o controle de visitação diária, deve definir qual a capacidade máxima de visitantes por dia e criar um sistema de monitoramento nas trilhas e atrações, capaz de avaliar constantemente os impactos à fauna e à flora. O exemplo citado é Fernando de Noronha, o primeiro plano de manejo do Brasil.

“Isso é uma administração completamente diferente da lógica da exploração. A maioria das pessoas vai ao Itaimbezinho pra ver os paredões, e os paredões dificilmente vai se conseguir estragar, o risco é na vida do local. A maioria das pessoas não tem noção do que é o impacto de passar por ali”, diz Milanez, destacando ainda a função educativa do parque. O atrativo pode ser os cânions, mas o visitante deve aprender que sair da trilha demarcada tem impacto ou que não pode recolher amostras locais como lembrança.

O número de turistas também é uma das preocupações de Paulo Brack, professor do Departamento de Botânica, do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) indicam que ambos os parque receberam, em 2019, cerca de 220 mil visitantes, média de pouco mais de 100 mil pessoas para cada parque. Há indícios de que o plano, a partir de agora, é aumentar para até 500 mil pessoas por ano. Brack diz que crescer em cinco vezes o número de turistas criará um impacto grande, que precisa ser bem avaliado no plano de manejo.

“A gente sabe que os empresários terão um peso grande dentro das unidades de conservação. Anos atrás, setores empresariais queriam construir um teleférico dentro do parque e houve uma resistência grande por parte dos técnicos. Então, esse aumento de 100 para 500 mil visitantes, possivelmente não há capacidade de suporte para manter a conservação da biodiversidade como o eixo mais importante”, afirma o professor da UFRGS, também membro honorário do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá).

Brack enfatiza ser importante não perder de vista que a principal função dos parques nacionais é a conservação, com o turismo vindo depois, prioridades que podem ser invertidas a partir de agora. “O que nos deixa apreensivos é que na minuta do edital tem obras de grande dimensão e que vão impactar a paisagem, mas vão criar o ambiente pra atração de turistas. Acho que vai descaracterizar a função principal que é a conservação da biodiversidade e a promoção da paisagem natural”, avalia. Um dos projetos estudados é a construção de passarela sobre o cânion e o incentivo à prática de esportes radicais.

“No final das contas, a unidade de conservação que poderia ser beneficiada por um turismo mais controlado, vai ficar na mão de grandes empresários que vão exercer pressão por mudanças no plano de manejo e também em cima dos técnicos para que aceitem as condições dadas pelo setor empresarial”, analisa Brack.

A possibilidade do aumento abusivo do ingresso nos parques é outro receio do professor do Instituto de Biociências da UFRGS. Para ele, a concessão em si, desde que limitada para alguns serviços, não é uma questão ruim, pois o turismo é importante. Ele defende que os funcionários que serão contratados pela empresa devem ser da comunidade local, assim como deve ser garantida a isenção de passeio escolares, considerando a importância da educação ambiental, que não deve ser exclusiva para quem poder pagar ingressos que tendem a se tornar caros.

Segundo descrito na minuta do contrato de concessão, o valor do ingresso não poderá ultrapassar R$80 e valerá para entrar em ambos os parques. Atualmente não há cobrança de ingresso devido ao fim do contrato com a empresa que atuava na bilheteria e no serviço de limpeza. Antes, há cerca de três anos, o ingresso custava R$ 16.

“Provavelmente vai ocorrer a elitização da entrada no parque. Quem não tiver recurso, não vai entrar, simples assim”, define Brack. “Gostaríamos de saber qual a garantia que será dada para que pessoas com menos recursos possam também entrar no parque.”

Aparados da Serra-RS
Especialistas alertam para os riscos do impacto da construção de novas estruturas e o aumento de visitantes. Há dúvidas se o ICMBio terá força suficiente para cumprir seu função. Foto: Ênio Frassetto/Prefeitura de Cambará do Sul

Segundo o programa de concessões do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a conservação da biodiversidade dos parques e o plano de manejo continuam sob responsabilidade do ICMBio. Ressabiado, o presidente da Agapan, Francisco Milanez, diz não confiar nesse modelo de gestão compartilhada. Para ele, falta transparência no processo e o controle da sociedade, por meio de comitês, com a participação de entidades ambientais e pessoas especializadas no assunto.

“Só crianças ingênuas acreditam em discurso. Estão destruindo o órgão ambiental, temos um criminoso ambiental no lugar que deveria ser ocupado por um ministro, dar discurso de que vai ser tudo legal é barbada. Agora, nós que lutamos pra construir as unidades de conservação, sabemos que na prática é diferente”, afirma Milanez.

O presidente da Agapan reconhece que a preservação ambiental tem um custo, mais ainda num país grande como o Brasil, rico em biodiversidade. Ele defende que a conta feche com a própria preservação, com a educação ambiental e pessoas interessadas em conhecer a natureza. “Nunca houve fomento para as visitas escolares, tem muita coisa por fazer. Os parques podem ser ótimas oportunidades pra fazer o cidadão somar na luta da sua própria qualidade de vida”, afirma. Milanez acredita que os funcionários do ICMBio terão dificuldade para “controlar” os interesses da empresa na exploração do parque.

A força — ou a falta de força — do ICMBio para atuar lado a lado com os interesses da empresa vencedora da concessão também é um elemento enfatizado pelo professor Paulo Brack, especialmente pelo contexto atual do órgão, alvo de ataques e ameaças  constantes vindas do próprio presidente Bolsonaro. Brack diz que, desde 2016, tem ocorrido o esvaziamento dos órgãos ambientais, acelerado ainda mais no governo de Bolsornaro, o qual chama de “inimigo dos cientistas e ambientalistas”.

“O ICMBio, o Ibama, o Conama, o Ministério do Meio Ambiente, toda a política ambiental está sendo destruída”, enfatiza o professor, lembrando da perseguição e punição sofrida pelo fiscal do Ibama que multou Bolsonaro por pescar em local proibido no litoral do Rio de Janeiro, quando ele ainda era parlamentar. Brack recorda que Bolsonaro disse, em 2019, que faria “uma limpa” no Ibama e no ICMBio. É a prática de uma política de assédio, ameaça e perseguição aos técnicos dos órgãos de controle e preservação ambiental.

“Ele amedronta, cria o clima pra acuar os técnicos e todo o setor importante responsável pelas unidades de conservação. Temos que levar em conta esse contexto num governo que joga tudo no setor privado”, analisa o professor da UFRGS. Brack destaca que  chefias técnicas do ICMBio foram substituídas por militares “despreparados e com visão policialesca”, que desconsideram as comunidades tradicionais que existem nos parques e no entorno, não tendo preparo pra lidar com questões sociais importantes.

“O lucro vai ser a ‘pedra de toque’, infelizmente, não só para esses parques, mas como também para outros. É um modelo que cria um espaço de negócio em áreas que têm como principal finalidade a conservação ambiental e não a geração de lucro”, lamenta o professor da UFRGS e membro honorário do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá).

Sob condição de anonimato para evitar represália, um funcionário do ICMBio que já trabalhou nos parques de Aparados da Serra e da Serra Geral, avalia que atualmente, devido ao modo como o governo federal administra o parque, tanto a conservação da biodiversidade como o uso público dos visitantes está em estado degradado.

Conhecedor da realidade local, avalia que a concessão à iniciativa privada tem prós e contras, e acredita que será preciso acompanhar de perto o trabalho da empresa para garantir o correto equilíbrio entre os negócios e a conservação da biodiversidade.

Um aspecto positivo, diz o funcionário do ICMBio, pode ser a possibilidade de controle e manejo de espécies exóticas, a recuperação de áreas degradadas, o apoio à educação ambiental e o fomento à pesquisa. A melhora dos serviços e estruturas de apoio ao turista também é vista como possíveis vantagens.

Por outro lado, ele aponta o risco do impacto ambiental na fauna com a maior circulação de automóveis e o aumento da velocidade a partir de melhorias no trajeto. Outro fator de risco é a construção de estruturas em áreas sensíveis, como banhados e turfeiras. O funcionário do ICMBio acredita que o sucesso da concessão dependerá da fiscalização da sociedade, pois o órgão responsável pela conservação ambiental está contaminado pelo governo.


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