Programa Future-se coloca organizações sociais no centro da administração das universidades
4 de setembro de 2019
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03:26

Programa Future-se coloca organizações sociais no centro da administração das universidades

Por
Sul 21
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Felipe Prestes

Lançado em julho deste ano, o programa Future-se, do Governo Federal, traz como principais objetivos melhorias nas instituições federais de ensino superior (IFES) em três eixos: governança; pesquisa e inovação; e internacionalização. Para tanto, as universidades que aderirem deverão realizar um contrato de gestão com uma organização social, que vai auxiliar nesses três eixos propostos pelo programa. Para especialistas e representantes da comunidade acadêmica, as universidades federais já desempenham bom papel nos eixos apresentados pelo Governo, e nada indica que uma OS faria melhor gestão.

O projeto passou por consulta pública e poderá ser alterado com as contribuições feitas pela sociedade, mas uma minuta que circulou anteriormente aponta que as organizações sociais teriam envolvimento até na execução de planos de ensino, além de atuar nos três eixos principais do programa, realizar a gestão de recursos relativos a investimentos em empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento e inovação; auxiliar na gestão patrimonial dos imóveis das instituições federais participantes, dentre outras atividades.

Os reitores foram surpreendidos pela abrangência de atribuições que as organizações sociais terão no Future-se. “Quando o projeto foi apresentado para os reitores, um dia antes de ser apresentado à imprensa, era como se a OS fosse apenas para administração, para assuntos que chamamos de Prefeitura do Campus. Um dia depois, para a imprensa, o projeto era mais amplo”, conta a reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Lúcia Pellanda.

Como as universidades federais figuram sempre entre as melhores do país, a reitora questiona se há instituições que seriam capazes de gerir melhor o ensino superior do que as próprias universidades. “É difícil que outras entidades tenham mais conhecimento que a universidade pública”, afirma a reitora.

Para o doutor em Educação e Pós-Doutor em Sociologia Gregório Grisa não há indícios que organizações sociais possam fazer melhor gestão da universidade pública. “Não há experiência consolidada no Brasil, na área educacional, que permita aferir essa informação. Portanto, não há evidências sobre maior ou menor eficiência”, afirma, mas ressalta que na área da saúde estudos indicam que as OSs têm pior desempenho que a administração pública. “Tomando o exemplo da cidade do Rio de Janeiro, em 2016 das dez OSs que prestavam serviço para prefeitura na área da saúde, oito eram investigadas pelo Ministério Público. Um estudo, publicado nos Cadernos de Saúde Pública e no site da Fiocruz, que envolveu quatro capitais da região Sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória e Belo Horizonte) nos anos de 2009 e 2014, mostrou que a administração feita pelos municípios apresentou resultados 61% melhores do que nas cidades em que a saúde básica é cuidada por organizações sociais”.

Grisa também afirma que não é possível afirmar que a gestão das universidades públicas é ruim. “As universidades e os institutos federais têm suas contas auditadas pelo Tribunal de Contas e têm controles internos e externos que avaliam sua governança. O país passa por problemas econômicos, a crise de arrecadação é real, mas isso não significa que as universidades sejam perdulárias em suas gestões. Eu iria mais longe, diante da sistemática redução nos últimos anos daquele recurso que é realmente administrado pelas IFES (orçamento discricionário), essas instituições estão desempenhando uma gestão muito qualificada, fazendo mágica em alguns casos”.

Opinião semelhante tem o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), Antonio Gonçalves Filho: “O Governo está dizendo que as universidades são incapazes de gerir. Com os cortes de 2014 até hoje como a gente teria sobrevivido sem capacidade de gestão?”, questiona.

Mas o secretário de Educação Superior do MEC, Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, acredita que a gestão das universidades pode melhorar. “Em um ranking de governança, feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU), 86% das universidades tiveram nota abaixo de 5. O ideal seria nota 7, apenas quatro universidades atingiram este número”, afirma.

A reitora da UFCSPA, Lúcia Pellanda, conta que este ranking do TCU foi baseado em questionários respondidos pelas universidades e não vê como um instrumento adequado para aferir a qualidade de gestão das instituições. “Aquilo foi uma autoavaliação que as universidades enviaram; não foi para comparar uma universidade com a outra”, diz.

“Gradualmente a gestão vai saindo da universidade”

O projeto prevê que as instituições federais de ensino viabilizarão “a instalação física de escritórios ou representações das Organizações Sociais Contratadas, em suas dependências, quando necessário”. Também prevê que a União e as instituições poderão repassar recursos orçamentários às OSs. Além disto, poderão ser cedidos servidores às OSs e o Ministério da Educação fica autorizado a doar bens imobiliários para estas entidades. A sensação para a comunidade acadêmica não é de que as organizações sociais virão para auxiliar as instituições de ensino, e sim para substituí-las. “As universidades vão emprestar espaços, servidores e recursos, gradativamente a gestão vai saindo da Universidade”, prevê o presidente do ANDES-SN.

“É basicamente substituir uma estrutura que a gente já tem, de gestão”, afirma a reitora da UFCSPA. Desde as parcerias com empresas até a internacionalização, tudo o que o Future-se propõe já está sendo feito pelas instituições, segundo Lúcia Pellanda. “A OS mediaria, mas a gente já faz parceria para as áreas em que é possível. A gente não tem nada contra. A gente faz parcerias, aprovadas pelo TCU, CGU, seguindo uma série de regras”, conta.

O secretário de Educação Superior do MEC afasta a possibilidade de substituição das universidades pelas organizações sociais. “As OSs serão prestadoras de serviço. Elas não substituirão. O objetivo é dar segurança jurídica para que as universidades não precisem focar em atividades operacionais, dar flexibilidade na contratação de pessoal e nas compras”, afirma. Após as universidades apontarem que suas fundações de apoio podem executar o que o Governo propõe para as OSs, o MEC também está aceitando que as fundações de apoio possam participar do Future-se.

Apesar de dizer que o objetivo é ajudar em atividades operacionais, o secretário reconhece que o programa também propõe que as OSs atuem no ensino. “O que a gente quer é uma flexibilidade maior. Hoje já tem um contrato de gestão com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA). O Instituto Internacional de Física quer se tornar uma OS. Queremos fomentar atividades que têm excelência. Mas não irão substituir as aulas regulares. Seria de forma complementar. Queremos aumentar a pontuação de nossas universidades nos rankings internacionais”, afirma.

O programa coloca a internacionalização das universidades como um dos eixos prioritários, mas para Lúcia Pellanda a internacionalização também não deve ser necessariamente prioridade para todas as universidades. “Cada universidade tem sua vocação, a de algumas é interiorizar, até pode internacionalizar também, mas a vocação principal não é essa”.

Quanto à internacionalização, a reitora ressalta que isto também é feito pela universidades e questiona propostas como a de que as OSs ajudariam a intermediar cursos de idioma privados para os professores. De fato, se levarmos em conta que são as universidades que formam os professores de idiomas, há pelo menos uma proposta no Future-se que soa como pitoresca. “Mesmo a nossa universidade, que não tem curso de Letras, tem uma estrutura de ensino de idiomas, pelo Idioma Sem Fronteiras. Temos disciplinas em inglês na pós-graduação, até aulas de japonês são oferecidas. Nós estamos muito avançados nesse sentido”.

Fundos de investimento seriam criados para financiar universidades 

O projeto propõe a criação de três fundos: o Fundo da Autonomia das IFES, o Fundo Soberano do Conhecimento e o que o Governo está chamando apenas de funding. Este último seria formado pelo acesso a crédito no mercado financeiro. O secretário Arnaldo Barbosa de Lima Júnior explica que a ideia é que empresas júnior ou startups surgidas nas universidades das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste tenham acesso a juros subsidiados, por meio de bancos públicos. Além disto, o Future-se abre a possibilidade de que a injeção de recursos nessas iniciativas tenham abatimento de Imposto de Renda, como já ocorre no setor cultural.

O Fundo Soberano do Conhecimento, por sua vez, seria com objetivo de atrair investimentos privados, especialmente investimentos internacionais. Os investidores poderiam comprar cotas deste fundo que seria formado, de um lado, por imóveis das universidades, que poderiam ser explorados para construção de shopping centers, por exemplo; e por outro lado, por startups e outras iniciativas na área de inovação desenvolvidas pelas universidades. “O investidor teria um investimento mais seguro, com os imóveis; e outro de maior risco, que são as startups. Mas uma startup que dá certo, já compensa o risco das demais”, afirma o secretário de Educação Superior do MEC.

Já o Fundo da Autonomia trata-se de uma conta bancária para cada universidade constituída de diversas fontes de receita, como a prestação de serviços (estudos, pesquisas, consultorias e projetos), comercialização de bens e produtos com a marca das instituições,  alienação de bens, aplicações financeiras, direitos patrimoniais, tais como aluguéis, comodatos e concessões; exploração de direitos de propriedade intelectual; entre outros. Na prática, este fundo apenas simplifica a gestão das universidades, já que, atualmente, estes recursos obtidos pelas instituições vai para o caixa do Governo Federal. Mas o MEC acredita que com essa desburocratização poderá potencializar a obtenção de verba.

Apesar do nome deste fundo, a “autonomia” financeira pode não chegar com essas medidas. “Não é razoável pensar nessas alternativas como algo estrutural, isto é, como uma fonte de recursos passível de garantir o funcionamento (custeio) e a expansão das universidades (capital). Tomar essas possibilidades de captação de recursos como estruturais é desconhecer o financiamento da ciência e da pesquisa no mundo e no Brasil. Essas atividades realizadas em universidades são majoritariamente financiadas por recursos públicos”, afirma Gregório Grisa.

Lúcia Pellanda também acredita que esse tipo de financiamento “levaria anos” para conseguir sustentar a universidade. “A gente é a favor da captação, mas tem que ser complementar ao orçamento”.

O secretário do MEC reconhece que esses recursos não são suficientes e garante: “É uma estratégia de longo prazo. O orçamento público está garantido, serão receitas adicionais”.  A realidade, porém, é de cortes na pasta.

Lúcia Pellanda relata ainda que instituições tidas como modelo para o projeto Future-se, como Harvard, por exemplo, são financiadas majoritariamente por recursos públicos. Além disso, os fundos de investimento apresentam riscos. “O fundo de Harvard, em 2008, perdeu 22% de valor em quatro meses. Isto é super flutuante. Se a gente entregar esse dinheiro para um fundo e esse fundo perder o dinheiro, quem vai ser responsabilizado? É muito perigoso”, diz.

A reitora da UFCSPA ambém questiona os limites para temas como a parceria com empresas e diz que a universidade não pode ser submetida ao mercado. “As empresas só vão investir no que for lucrativo. No nosso caso, da área da saúde, nós pesquisamos para prevenção, para tornar a saúde mais barata, e não mais lucrativa”.

Adesão ou coerção? 

Segundo um levantamento do UOL, feito ainda em meados de agosto, 40 instituições federais de ensino superior haviam manifestado críticas ao Future-se e pelo menos cinco tinham se manifestado oficialmente contra a adesão ao programa, por decisão dos conselhos universitários. A UFRJ, uma das cinco a rechaçar o programa, ressaltou, em nota, que é impossível ter ensino superior fortalecido sem o apoio do Governo Federal. “Funciona assim em todos os países do mundo. As universidades europeias e americanas foram exemplos; as asiáticas têm confirmado essa premissa”.

A Universidade também elencou aspectos que considera que deveriam ser “cláusulas pétreas”, entre eles “garantia da autonomia universitária”, “defesa da integralidade da Universidade, evitando a fragmentação da sua estrutura”, “garantia de financiamento público adequado” e  “garantia de preservação das carreiras públicas nas Ifes, com a manutenção dos concursos públicos e da contratação via Regime Jurídico Único, da estabilidade e também, no caso dos professores, a preservação da dedicação exclusiva”.

Por sua vez, a reitoria da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) divulgou nota favorável ao Future-se. A reitoria afirma que as IFES estão enfrentando desafios orçamentários e administrativos e que “é importante identificar como o FUTURE-SE pode ajudar a enfrentar tais desafios parcial ou integralmente. A Reitoria da UFSCar tem feito esforços no sentido de melhor compreender o programa e ajudar na proposição de ajustes e/ou adequações que possam ser favoráveis ao ambiente acadêmico”, diz.

A reitoria informa que, após analisar o programa, teve dúvidas e que procurou o MEC para saná-las. Na nota, a reitoria da UFScar disserta sobre os vários aspectos do programa e destaca que na captação de recursos “há potenciais vantagens para as instituições participantes do programa”. Por fim, a entidade faz sua avaliação geral sobre Future-se: “O programa tem potencial de fortalecer a Educação Superior do país e ajudar a UFSCar a enfrentar em melhores condições os desafios de gestão”.

Apesar da livre manifestação das universidades, o Ministério Público Federal aponta que no atual contexto a adesão pode não ser tão livre quanto parece. Recentemente, em evento realizado na UFCSPA que debateu o Future-se, o procurador da República Enrico Rodrigues de Freitas, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, ressaltou que há corte de recursos das universidades, o que pode deixar o Future-se como única opção.

Além disto, ele ressaltou que há decretos que têm afetado a autonomia das universidades, como um decreto de maio deste ano que estabelece que a nomeação de cargos como o de vice-reitor e pró-reitor terão que passar pelo crivo do Governo. “Neste contexto, passa a não ter garantia de funcionamento normal para as instituições que não quiserem aderir”.

 

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