Porto Alegre 2030: entre a cidade do futuro e os interesses ultrapassados
19 de julho de 2021
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09:17

Porto Alegre 2030: entre a cidade do futuro e os interesses ultrapassados

Ao longo de sete reportagens, especial 'Que Porto é esse?' debate as transformações em andamento na Capital
Por
Luís Gomes
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Porto Alegre é uma cidade em transformação. Um território em disputa onde convergem e divergem interesses distintos. A cidade que desaloja de suas casas comunidades vulneráveis para a ampliação da pista do aeroporto, colocando-as ainda mais longe na periferia, é a mesma em que os raios de sol convidam para um aprazível fim de tarde às margens do Guaíba. Se há regiões da Capital onde o tratamento de esgoto sequer existe, há outras que estampam anúncios do mercado imobiliário como “bairros privativos” ou “planejados”, com serviços próprios, ampla área de lazer e muito luxo.

Qual Porto Alegre está diariamente sendo construída? Qual Porto Alegre será legada para os moradores do futuro próximo?

A inauguração do trecho 1 da revitalização da Orla do Guaíba, em 2018, iniciou a reaproximação da cidade com a sua área costeira. Aos finais de semana e feriados, mesmo durante a pandemia de covid-19, milhares de pessoas costumam dirigir-se ao Parque Moacyr Scliar, como foi batizado o trecho, seja para a prática de esportes, para curtir o famoso pôr-do-sol ou aproveitar a estrutura de bares instalada no local.

Em breve, a cidade receberá mais uma etapa da revitalização, o trecho 3, que será dedicado à prática esportiva, com quadras de futebol, tênis, vôlei, academias ao ar livre, além da prometida maior pista de skate da América Latina.

O renovado interesse na ocupação da Orla, contudo, não se dá apenas por meio de espaços públicos, mas também por grandes empreendimentos residenciais e comerciais. Do Cais Mauá ao extremo sul, a cidade aos poucos vai sendo transformada, mesmo durante a pandemia.

A cidade tem se reencontrado com a orla, aproximação que agrada assim como também exige cuidados. Foto: Luiza Castro/Sul21

No primeiro semestre foi inaugurado o Cais Embarcadero, empreendimento voltado para a área de entretenimento e gastronomia que ocupa um trecho do antigo Cais Mauá, entre a Usina do Gasômetro e o Armazém A7. Em 2022, deverá ser inaugurado no antigo pontal do estaleiro, ao lado do Museu Iberê Camargo, o Pontal, que inclui um shopping center, um hotel de luxo, centro de eventos, torre multiuso, o centro de saúde Pontal Clínicas e um parque.

Alguns quilômetros ao sul, ao lado do Barra Shopping Sul, já começam as obras para a instalação do bairro planejado Golden Lake, um grande condomínio fechado com previsão de construção de 19 torres residenciais que terá, entre outros “atrativos”, uma praia artificial.

Ainda em fase de discussão e tramitação na Prefeitura e na Câmara de Vereadores estão outros dois projetos polêmicos de grandes empreendimentos a serem construídos às margens do Guaíba. Um deles prevê a edificação de duas torres, sendo uma delas o prédio mais alto do Rio Grande do Sul, com 130 metros de altura, no estacionamento do estádio Beira-Rio.

O outro projeto motivo de contestação prevê a construção de mais um bairro planejado, desta vez na antiga Fazenda do Arado, em Belém Novo, uma área de 426 hectares que hoje está, em sua maior parte, inserida no que é considerado zona rural da cidade ou em área de preservação ambiental.

Concomitante ao projeto de ocupação da Orla pelo mercado imobiliário, a Prefeitura decidiu, em 2020, que a recuperação econômica de Porto Alegre no pós-pandemia deve passar pela construção civil. Por meio do decreto nº 20.655, a gestão do ex-prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) determinou que mais de 100 projetos teriam o licenciamento urbanístico e ambiental priorizados. Nas contas da Prefeitura, os projetos tinham potencial de, somados, representarem R$ 6 bilhões em investimentos.

Os empreendimentos propostos abrangem projetos comerciais e residenciais, incluindo condomínios de torres naquele que é talvez o mais notório caso de bairro planejado da cidade, o Central Parque, um conjunto de quadras fechadas por muros pelas quais se espalham condomínios de alto padrão.

Em comum a todos esses projetos está o fato de que eles propõem uma Porto Alegre que não é aquela determinada pelo regramento urbanístico da cidade, o Plano Diretor, e por isso precisam passar por processos de licenciamento e mudanças na legislação.

Internacional planeja construir duas torres no estacionamento ao lado do Beira-Rio. Foto: Luiza Castro/Sul21

Pelas regras do Estatuto da Cidade, os planos diretores devem ser revisados, pelo menos, a cada dez anos. Como a última revisão ocorreu em 2010, ele deveria ter sido revisto em 2020. O processo de discussão começou a ser articulado pela gestão de Marchezan em 2019, mas foi interrompido em março de 2020 em razão da pandemia de covid-19 por determinação da Instrução Normativa nº 15, da então Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Urbanismo, hoje Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus).

Titular da pasta na época e o único remanescente da gestão Marchezan no primeiro escalão do governo de Sebastião Melo (MDB), Germano Bremm define o Plano Diretor como a “Constituição do Município”, por ser o ordenamento que define toda a política urbana da cidade. “Em função disso, nos preocupamos bastante em estruturar um projeto e uma metodologia que, de fato, colocasse Porto Alegre no século 21”, afirma o secretário.

Bremm explica que a gestão do ex-prefeito Marchezan buscou recursos, via financiamento, para “suportar” a revisão do Plano, diante da complexidade e necessidade de estudos técnicos que dão amparo ao trabalho. O recurso obtido foi de mais de R$ 13 milhões, além de firmar parceria com o programa de desenvolvimento das Nações Unidas para inserir na revisão do Plano Diretor os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), que devem ser perseguidos pelos países até 2030.

“A gente foi exitoso, no sentido de conseguir o financiamento, fechamos no final de 2019 essa cooperação internacional com o PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], e então programamos para fazer a revisão ao longo de dois anos. Naturalmente, em função da pandemia, o que seria nos anos de 2020 e 2021, tivemos que reprogramar para 2021 e 2022”, explica o secretário.

“Os ecossistemas não se conformam à cidade, eles colapsam”
Elaborados na Conferência Rio 2012, os 17 ODSs são: erradicação da pobreza; fome zero e agricultura sustentável; saúde e bem-estar; educação de qualidade; igualdade de gênero; água potável e saneamento; energia acessível e limpa; trabalho decente e crescimento econômico; indústria, inovação e infra-estrutura; redução das desigualdades; cidades e comunidades sustentáveis; consumo e produção responsáveis; ação contra a mudança global do clima; vida na água; vida terrestre; paz, justiça e instituições eficazes; e parcerias e meios de implementação.

“São diversos objetivos interligados e, a partir dessa cooperação, nós temos a segurança de que vamos conseguir internalizar em Porto Alegre esses objetivos e alcançar a nossa Porto Alegre de futuro, em 2030, inovadora, integrada, resiliente e sustentável”, projeta Germano Bremm.

Na prática, ele acredita que isso significará trazer a Porto Alegre o que é apontado como urbanismo mais contemporâneo. “Uma cidade mais compacta em regiões que tenham infraestrutura e não uma cidade tão horizontal, tão espraiada, que gera problemas de mobilidade e poluição. A gente quer criar um formato em que se consiga adensar a cidade nessas regiões que tenham infraestrutura mais qualificada e, com isso, afastar o espraiamento da cidade como um todo. Esse é um ponto que o urbanismo do mundo já fala e que a gente quer refletir dentro da revisão do Plano Diretor”, explica o secretário.

Contudo, para Rualdo Menegat, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, a ocupação da Orla do Guaíba não deveria fazer parte dessa cidade prevista para 2030. Ele defende que, desde Itapuã, onde está localizada a principal reserva ecológica da Região Metropolitana, até a região das Ilhas e do Delta do Jacuí, a Orla deveria ser considerada um corredor ecológico.

“Esse, para mim, é o projeto fundamental do Plano Diretor. A cidade deve se conformar a isso, não o contrário, os ecossistemas se conformarem à cidade, porque eles não se conformam, eles colapsam. Então, a cidade tem que se encaixar nos sistemas que estão ali”.

Menegat argumenta que a discussão sobre o que pode e o que não pode ser construído na cidade, em especial nas proximidades da Orla, precisa levar em conta o fato de que os recursos naturais são esgotáveis. Cita o exemplo de que a densificação de prédios ao longo das margens do Arroio Dilúvio, especialmente de sua foz, cria cada vez mais obstáculos para a circulação de ar. “Esse ar, que geralmente sopra às cinco horas da tarde, que é brisa lacustre que resulta das diferentes temperaturas, da taxa de resfriamento, é fundamental para a circulação de ar na cidade, para que o ar poluído não fique estagnado sobre a cidade”, explica.

Como veremos ao longo das próximas seis matérias deste especial, há uma série de discussões que atravessam o debate, não apenas da revisão do Plano Diretor, mas também das transformações urbanas em andamento na cidade.

Quais conceitos urbanísticos devem nortear a discussão? Qual o impacto ambiental dos projetos em andamento? Qual o impacto social da remoção de famílias para a implementação de novos empreendimentos? Quais os limites de um Plano Diretor que, a todo momento, é modificado para abarcar exceções? Qual é a lógica financeira que norteia os investimentos que têm chegado a Porto Alegre nos últimos anos?

Essas são algumas das perguntas que o Sul21 apresenta e tenta responder com este especial e que esperamos estejam na pauta de discussões, tanto da revisão do Plano Diretor como do debate sobre a cidade de Porto Alegre que queremos no futuro. Infelizmente, muitos temas acabam soterrados pelo interesse econômico ou ofuscados por questões menos importantes, como qual o limite de altura que um prédio deve ter em Porto Alegre — especificidade que pautou a cobertura da imprensa e também as discussões na Câmara em 2010.

Moldar a Porto Alegre do futuro é um desafio urbanístico, ambiental e social. Foto: Luiza Castro/Sul21

O conceito urbanístico é um dos pontos em debate. Na teoria, há o consenso de que a Capital deve ser mais compacta, uma cidade boa para caminhar, onde seja possível ir trabalhar, estudar e passear percorrendo curtas distâncias. Na prática, todavia, Porto Alegre segue permitindo a criação de grandes projetos na região central e nas franjas do município. A cidade que privilegia o pedestre e o pequeno comércio se relaciona com o modelo urbano europeu, enquanto a cidade mais afeita aos grandes empreendimentos na região central e que privilegia o uso do transporte individual segue o padrão de urbanização norte-americano.

Professor de Economia da UFRGS e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Economia Urbana (NEPEU), Fabian Domingues alerta que o padrão americano, ainda incentivado em Porto Alegre, está em decadência em outros lugares do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Ele acredita que essa decadência uma hora chegará a Porto Alegre.

“O pequeno comércio incentiva uma cidade em que as pessoas caminham na rua, o shopping e os grandes empreendimentos privilegiam o automóvel, haja vista os espaços de estacionamento que eles colocam. Isso muda o sentido do deslocamento e coloca a turma no ‘circuito do ar-condicionado’”, explica.

“As modificações que estão ocorrendo vão ser de priorização do capital”
As consequências ambientais dos grandes empreendimentos são outro elemento importante na complexa equação da Porto Alegre do futuro. Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), Rafael Passos define como “problemática” a visão de desenvolvimento sustentável que, em prol da geração de empregos a curto prazo, privilegia projetos de grande impacto urbano e ambiental a longo prazo.

“Primeiro, ou tem um entendimento muito curto do conceito de sustentabilidade, ou não consegue compreender que, quando se trata de grandes projetos que vão ter impacto na cidade durante 50, 60, 100 anos, não se pode olhar pra isso pelo impacto breve, passageiro, da geração de empregos a curto prazo”, afirma.

Um caso polêmico se desenrola na Capital desde 2015. Trata-se do projeto de urbanização da antiga Fazenda do Arado, em Belém Novo, às margens do Guaíba, em área equivalente a 11 vezes o tamanho do Parque Farroupilha. A proposta prevê a criação de um condomínio com 1.650 casas, aumentando em 70% a atual população do bairro.

A trajetória do projeto nos últimos anos revela o amplo apoio político ao empreendimento, com duas leis aprovadas na Câmara — uma suspensa pela Justiça e outra vetada pelo prefeito Sebastião Melo — para mudar o regime urbanístico da área. Apesar do veto, Melo já anunciou que a Prefeitura apresentará a terceira proposta de lei para tirar o projeto do papel. Moradores da região e ambientalistas acusam o poder público de formular a lei sob medida para viabilizar o negócio.

“A gente está descobrindo, cada vez mais, como são feitos os esquemas da Prefeitura com a Câmara de Vereadores, porque ali tem vereadores que são ‘testas de ferro’ desses grandes empreendimentos. Então temos que estar atentos, a população de Porto Alegre tem que estar atenta, porque essas modificações que estão ocorrendo vão ser de priorização do capital e comprometimento da qualidade de vida da população”, afirma Paulo Brack, professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O professor da UFRGS critica as seguidas tentativas de modificar o regime urbanístico para favorecer a construção do condomínio em área de banhado e de preservação ambiental. “Esses empreendimentos, quando são realizados, eles começam a decapar tudo, tiram toda a vegetação, passam a terraplanagem, é terra arrasada total, e depois vão fazer aterros, fazer laguinhos, e ali vai ficar a classe alta com suas mansões, isoladas da população por muros enormes. É um absurdo esses condomínios fechados que estão sendo construídos em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul”, avalia.

Cais Embarcadero foi inaugurado no primeiro semestre de 2021. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Toda a Orla está passando por transformações em âmbito de construção. São condomínios que, na planta, vão valer R$ 1 milhão, R$ 1,5 milhão. Quem é que vai ter condição de morar? São três mega empreendimentos, vai ter um condomínio fechado aqui ao lado do Barra que vai ter até praia artificial. Quem vai acessar esses espaços? Vão ser mais espaços vazios num município que já tem muitos espaços vazios.”

O questionamento é feito por Karen Santos, vereadora do PSOL. A parlamentar teme que a cidade esteja vendo o surgimento de “bolhas”, que se aproveitam da Orla para investir em imóveis e valorizar o dinheiro, em detrimento de espaços que poderiam ser para o lazer e a cultura da população.

“Não é essa perspectiva de cidade que a gente entende que vai agregar, porque vai criar cada vez mais barreiras sociais e vai impactar problemas estruturais do município, como esgoto, tratamento de água. A gente está numa cidade que é uma bomba relógio. Ela foi expandida para as beiradas e não pensou no tratamento de esgoto. Agora vai chegar o inverno e é a Vila Jardim, Vila Amazônia, Sarandi, Ponta Grossa, Vila Mapa transbordando esgoto. São essas as preocupações que nós estamos tentando trazer para a população”, explica.

Inclusiva, sustentável e viável economicamente é a Porto Alegre sonhada. Foto: Luiza Castro/Sul21

O Golden Lake, empreendimento ao lado do Barra Shopping Sul, e o Central Parque, nas imediações da Avenida Ipiranga, são exemplos do que arquitetos e urbanistas chamam de condomínios que “negam a cidade”. O conceito é o de bairro privativo, cercado por muros, com uma série de serviços em seu interior e descolados da vida da cidade. Proposta bem distinta da sonhada Porto Alegre do futuro, a cidade mista e caminhável, com comércio acessível à pé e que favorece o uso do transporte público.

“É um bairro que não é um bairro do século 21. Não é um bairro que deveria estar instalado em uma cidade que diz assinar uma agenda urbana internacional que é exatamente o contrário. Isso é sintomático do quanto o nosso planejamento está entregue à tomada de decisão, praticamente qualquer que seja, do empreendedor”, critica Rafael Passos, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS).

Quando for retomada, a revisão do Plano Diretor deve, necessariamente, cumprir uma série de etapas de participação popular, que incluem a realização de oficinas nos bairros, consultas online, seminários, conferências, audiências públicas, entre outras atividades. Será o resultado desses debates e disputas de interesses variados que decidirá qual Porto Alegre continuará sendo construída no presente e qual será planejada para o futuro.

*Colaborou Luciano Velleda

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