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9 de dezembro de 2017
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10:24

A perenidade da arte de John Lee Hooker

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Sul 21
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A perenidade da arte de John Lee Hooker
A perenidade da arte de John Lee Hooker
The Healer (o curandeiro), fala do poder restaurador do blues, em especial da figura e da arte de John Lee Hooker. (Divulgação)

 zeca azevedo (*)

Por quase seis décadas, John Lee Hooker transformou a dura realidade do povo negro e pobre norte-americano em música. Compositor, cantor e guitarrista de blues que influenciou artistas de outros gêneros musicais como soul e rock, John Lee Hooker conheceu a pobreza e o racismo em primeira mão. Nascido em agosto de 1917, natural do sul rural e segregacionista dos Estados Unidos, John Lee Hooker aprendeu a tocar e cantar o blues com seu padrasto, William Moore. Hooker saiu de casa aos quinze anos para encontrar seu caminho na vida. Dividindo seu tempo e esforço pessoal entre trabalhos temporários e o blues, ele cruzou o país e chegou em Detroit em 1948. Na bagagem, trazia seu blues modal, áspero e duro como pedra, fechado e direto como punho pronto para desferir um soco.

John Lee Hooker queria ganhar a atenção dos ouvidos dos guetos e das ruas das cidades grandes e cinzentas, mas não estava disposto a fazer concessões musicais. Em nenhum momento o cantor, compositor e músico abriu mão da autenticidade de sua arte para agradar a quem quer que fosse. Ele conquistou seu espaço nos seus próprios termos. Em Detroit, Hooker trabalhou em fábrica de automóveis durante o dia e, à noite, apresentou seu blues sem enfeites em casas noturnas. A voz grave do bluesman, treinada na infância nos cultos dominicais de igreja e depois, na juventude e na fase adulta, nos bares e bordéis, era perfeita para registrar e transmitir sem perdas a experiência do sofrimento humano. O talento natural que ele possuía para contar histórias através de canções logo conquistou fãs e abriu para ele as portas dos estúdios de gravação. Antes de fazer seu primeiro registro fonográfico, Hooker trocou a guitarra acústica pela elétrica. Os acordes maciços e brutais que o músico arrancava do violão ganharam ainda mais força com a amplificação e anteciparam em algumas décadas os riffs pesados do rock. E mais: de acordo com o livro Pop Music and the Blues, publicado em 1972 pelo autor inglês Richard Middleton, John Lee Hooker usava intuitivamente dissonâncias ao estilo de Igor Stravinsky em algumas canções para realçar o caráter primitivo da música.

As primeiras gravações de John Lee Hooker são masterclasses de economia: sozinho no estúdio, com sua guitarra, sua voz lamentosa, mas nunca melosa, e com as batidas de pé no chão que marcavam o tempo das canções, ele extraía o máximo de emoção de gestos musicais mínimos. Ouvir essas gravações é como ver visão in loco pinturas rupestres da Pré-história, pois em ambos os casos entramos em contato com um conjunto de signos de “carnadura concreta” que oferece “educação pela pedra” (para citar explicitamente João Cabral de Melo Neto), isto é, que representa o núcleo duro da expressão e da experiência humanas. Por sua natureza elementar, pétrea, a música de John Lee Hooker (assim como a arte rupestre) comunica-se com indivíduos de períodos históricos mais “sofisticados” porque expressa algo permanente. Por tornar presente através de sua arte aquilo que está no cerne de nossa existência, John Lee Hooker foi uma espécie de griot.

Em 1948, John Lee Hooker lançou pelo selo Modern Records o sucesso “Boogie Chillen'”, que chegou ao primeiro lugar na parada de R&B da revista Billboard (hora da trivia: o selo do 78 rotações que contém “Boogie Chillen'” vem com o preço do disco impresso: setenta e nove centavos de dólar). Infelizmente, chegar ao topo da parada de R&B naquela época não significava ficar rico da noite para o dia. Para faturar uns trocados a mais, Hooker gravou dezenas de discos sob diferentes pseudônimos.

Na década de 1950, John Lee Hooker sobreviveu à margem do mercado fonográfico, que trocou o blues de acento rural pela urbanidade do rhythm & blues. Mesmo gravando com bandas, o som de John Lee continuava compacto e idiossincrático como pedra. Os anos 1950 foram difíceis para os operários do blues nos Estados Unidos, mas a década seguinte revelou a influência que esses artistas tiveram sobre uma geração inteira de garotos cabeludos britânicos. No Reino Unido, o som sem máscaras e sem firulas do blues cativou jovens que queriam mais realidade, mais sexo, mais bourbon, uísque e cerveja e menos escapismo na música. Os veteranos do blues viajaram para o reino encantado de Elizabeth II para receber o reconhecimento e o tratamento estelar que nunca haviam obtido no país natal. Com John Lee Hooker, um dos mais originais e influentes bluesman de sempre, a história não foi diferente. Infelizmente, o grande sucesso das duas primeiras turnês inglesas de Hooker não se repetiu na terceira visita dele àquele país. Diz o livro Boogie Man: The Adventures of John Lee Hooker in the American Twentieth Century, escrito pelo crítico inglês Charles Shaar Murray (tradução livre): “… o invejável status no pop inglês (de John Lee Hooker) evaporou-se tão rapidamente quanto surgiu. Alguns meses antes, Hooker fazia um sucesso modesto, mas respeitável, aparecendo nos programas de TV mais descolados e recebendo atenção da imprensa musical. Agora (em 1965) ele tinha um novo álbum feito na Inglaterra pronto para lançamento, mas não conseguia sequer publicá-lo no Reino Unido. Sempre haveria trabalho para Hooker na Grã-Bretanha e no resto da Europa — assim como sempre haveria trabalho para ele nos clubes de folk, nas universidades e nos festivais no país natal dele —, mas haveria menos glória e ainda menos grana”.

Apesar de atuar em um ambiente cultural restrito, John Lee Hooker tinha suficiente prestígio para continuar lançando discos nos Estados Unidos. Em texto publicado na contracapa do LP The Real Folk Blues, lançado em 1966 pelo selo Chess, Ralph Bass, produtor do álbum, escreveu sobre o estilo único de cantar de Hooker (tradução livre): “O blues não é nada além do que você sente… Não conte compassos, apenas ouça o que o homem diz. Lembro de gravar um cantor de blues que deixou os músicos que o acompanhavam aborrecidos porque ele não cantava no tempo certo… Um cantor de blues tem que se soltar. Cada vez que ele canta um blues em particular, ele pode mudar a letra ou cantar de modo diferente. O mais importante é — ouça o que o homem tem a dizer… John Lee Hooker é um desses cantores de blues. Os discípulos do “movimento pela liberdade” no jazz, como John Coltrane e Ornette Coleman, descartaram regras e progressões de acordes… John Lee Hooker tem feito isso por toda a vida dele”.

John Lee Hooker não cantava apenas para entreter, mas para alertar e informar. Mesmo as canções mais divertidas do seu repertório têm carga pesada de informação sobre a sociedade em que o cantor e compositor vivia. Os registros fonográficos de Hooker falam do ambiente social, racial e político conturbado dos Estados Unidos e se mantêm atualíssimos. Um exemplo dessa atualidade é a faixa “The Motor City Is Burning”, lançada no LP Urban Blues, de 1967, que descreve os cinco dias de confronto da população negra de Detroit com a polícia em julho daquele ano. A causa imediata da revolta popular foi a ação brutal da polícia durante uma batida em um bar sem licença para funcionar. Lá nos Estados Unidos, como aqui no Brasil, a polícia quase sempre espanca impiedosamente a população negra antes de perguntar qualquer coisa a ela.

Em 1967, cansados da violência policial e do tratamento subumano dispensado a eles pela sociedade norte-americana superafluente, os negros protagonizaram atos de fúria que deixaram em evidência sua insatisfação com o estado de coisas naquele país. O locus da revolta da população negra de Detroit era bem próximo do ponto de vista geográfico da sede da Motown Records. Cientes da importância da Motown para sua comunidade, os negros pouparam Hitsville, a sede original da companhia fonográfica fundada por Berry Gordy, dos atos de depredação, mas o episódio de violência e de instabilidade social foi decisivo para que a gravadora que lançou Stevie Wonder, Diana Ross e Marvin Gaye para o sucesso mundial deixasse Detroit e fosse para a ensolarada Los Angeles alguns anos depois. Em “The Motor City Is Burning”, John Lee Hooker descreve o cenário de guerra que se instalou em Detroit nos cinco dias de sublevação da população negra. Hooker abriu a porta de sua casa em uma manhã de julho de 1967 e viu a rua em que morava ardendo em chamas. A letra de “The Motor City Is Burning” chega a dizer que a barra em Detroit estava mais pesada que no Vietnã. O presidente Lyndon Johnson enviou o exército a Detroit para tentar conter a rebelião. Ao final do embate, os números revelaram o tamanho da tragédia: quarenta e três mortos, mais de mil e cem feridos e cerca de sete mil e duzentos presos. O caldeirão racial norte-americano fervia e John Lee Hooker, arguto cronista, colocou tudo em disco. Em 1969, o grupo de rock de Detroit MC5 apresentou sua versão de “The Motor City is Burning” no histórico LP Kick Out The Jams, mas nem mesmo a fúria política e sonora do grupo de rock proto-punk conseguiu alcançar a intensidade e a dramaticidade do registro original de John Lee Hooker.

No início dos anos 1970, John Lee Hooker conheceu os garotos da banda de rock norte-americana Canned Heat. A sintonia foi imediata e Hooker decidiu gravar um LP com a banda. O resultado é mais uma joia da discografia do bluesman. A parceria do veterano do blues com os cabeludos do rock foi simbiótica. John Lee Hooker trouxe para o disco duplo Hooker N’ Heat, de 1971, sua voz sombria e o som áspero de sua guitarra. Em contrapartida, a banda Canned Heat acompanhou o mestre com inteligência, acrescentando energia roqueira à performance musical de John Lee Hooker na dose certa. Hooker N’ Heat é uma das melhores colaborações entre um músico veterano do blues e um grupo de rock, se não for a melhor. O destaque do álbum é a faixa “The World Today”, que traça com precisão o panorama de convulsão social que o mundo enfrentava há mais de quarenta anos. Diz a letra de “The World Today” (tradução livre): “Eu me pergunto por que esse mundo é um inferno/Eu me pergunto por que esse mundo está tumultuado/Todos os dias lemos sobre um novo fato/Eles estão lutando por todo o mundo/Pessoas em luta por todo o mundo/Raça contra raça, a luta é diária/Eu me pergunto quando o desastre chegará ao fim/Eu me pergunto quando, eu me pergunto quando/ Este pesadelo terminará/Não posso acreditar que vai durar para sempre”. Como todos sabemos, os conflitos descritos pela canção não apenas continuam, como estão ainda mais intensos.

Em 1972, John Lee Hooker convidou Van Morrison para cantar na faixa-título do LP Never Get Out of These Blues Alive, de 1972. Morrison, fã incondicional da música negra norte-americana, amava a arte e a figura de John Lee Hooker. Os dois haviam se encontrado pela primeira vez nos anos 1960, em uma das visitas de Hooker à Inglaterra. Van Morrison passou da condição de fã para a de amigo e colaborador do bluesman. O já citado livro Boogie Man: The Adventures of John Lee Hooker in the American Twentieth Century descreve a amizade dos dois (tradução livre): “Para Hooker, o sensível e solitário Morrison era completamente transparente. Não apenas os dois entendiam um ao outro, mas, no sentido mais profundo do termo, eles reconheciam-se um no outro”. Outros belos duetos de Hooker com o irlandês vieram nas décadas seguintes: “Wasted Years” e “Gloria” (canção escrita por Morrison e gravada originalmente em 1965 por ele como integrante do grupo Them), ambas lançadas no álbum de Van Morrison Too Long in Exile, de 1993. Don’t Look Back, disco de John Lee Hooker publicado em 1997, foi coproduzido por Morrison — e ganhou dois prêmios Grammy, o de “Melhor Álbum de Blues Tradicional” e o de “Melhor Colaboração Pop com Vocais” pelo dueto de Hooker e Morrison na faixa título.

Hooker também não precisou fazer nenhum tipo de lobby para fazer parte do filme Os Irmãos Cara-de-Pau (The Blues Brothers, 1980). Os comediantes Dan Ackroyd e John Belushi criaram os personagens Elwood e Jake Blues para o programa televisivo semanal Saturday Night Live. O quadro de Ackroyd e Belushi no SNL prestava homenagem sincera e divertida ao blues e à soul music. O sucesso na TV e no disco (publicado em 1978, o primeiro LP dos Blues Brothers, Briefcase of Blues, alcançou o topo da parada de sucesso e ultrapassou largamente a marca de um milhão de cópias vendidas nos Estados Unidos) incentivou os dois comediantes a fazer um filme com seus personagens desajustados. Dirigido por John Landis, Os Irmãos Cara-de-Pau reúne números musicais de estrelas da música negra norte-americana que naquele momento estavam à margem do mainstream cultural: Cab Calloway, Ray Charles, James Brown e Aretha Franklin. John Lee Hooker foi especialmente convidado para participar do filme porque Ackroyd e Belushi eram grandes admiradores dele. Quando foi apresentado a John Belushi, Hooker, que não estava familiarizado com o quadro televisivo dos Blues Brothers, perguntou: “Você é um dos Muppets?”. No filme, Hooker interpreta um dos seus maiores sucessos, “Boom Boom”, lançado originalmente em 1962.

A despeito do endosso que recebeu de figuras conhecidas do rock e da TV, John Lee Hooker permaneceu à margem do mercado fonográfico de meados dos anos 1960 até o final da década de 1980. Em 1989, o álbum The Healer, repleto de convidados como Charlie Musselwhite, Bonnie Raitt, Robert Cray e Los Lobos, deu ao bluesman seu primeiro disco de ouro e também o primeiro Grammy. O destaque do disco é a faixa-título, que tem participação de Carlos Santana e acrescenta um caloroso acento latino à música de John Lee Hooker (detalhe: a gravação que está no LP é a do primeiro take). O título do álbum, The Healer (o curandeiro), fala do poder restaurador do blues, em especial da figura e da arte de John Lee Hooker, que promove a catarse (ou purificação) a partir da apresentação direta e intensa da realidade através da música. Com o dinheiro recebido pelas vendas do LP The Healer e dos shows subsequentes, Hooker pode finalmente comprar uma casa para si mesmo. Isso aos 72 anos de idade.

Na biografia de John Lee Hooker escrita por Charles Shaar Murray, há um trecho em que o artista fala do seu prestígio junto aos colegas músicos (tradução livre): “Todo mundo queria ser parte da minha história. Eu não sabia que era tão grande ou tão importante, realmente não sabia… Eu estava trilhando meu caminho, viessem eles ao meu resgate ou não. Eu estava em movimento ascendente e eles queriam estar comigo. Não pelo dinheiro, mas pelo amor que sentem por mim. Eles sabem que eu sou uma pessoa de verdade e um bluesman de verdade. Eles não precisavam de grana, eles queriam o meu amor. Eles queriam trabalhar comigo e é por isso que nos unimos”.

O sucesso tardio deu novo gás à carreira e à vida de John Lee Hooker, que se manteve na ativa até sua morte em 2001, aos 83 anos de idade. Em tempos duros como os que vivemos, em que a violência e o egoísmo se sobrepõem à harmonia social e aos espírito coletivo, a arte de John Lee Hooker faz-se necessária.

(*) zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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