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9 de fevereiro de 2020
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22:53

Mergulhar os remos no debate: com o Sardo e com Benedetti  

Por
Sul 21
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(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Tarso Genro (*)

A matéria que foi publicada no UOL – com honesta produção editorial – reproduz de maneira sintética um conjunto de opiniões que venho sustentando – aqui e no exterior – sobre a crise da esquerda e da ideia do socialismo contemporâneo. São temas que venho debatendo há mais de  trinta anos através de livros, artigos e entrevistas, com um enfoque que privilegia a importante experiência democrática do PT, que tem sido observada -no país e fora dele- como original e altamente positiva para as forças progressistas, em especial, da América Latina. Nos últimos 20 anos publiquei muitos materiais sobre o tema, que paulatinamente foram mudando a minha concepção de partido, originária das leituras mais tradicionais do marxismo escolástico -partido como organismo fechado e centralizado, dos melhores “filhos do povo”- para uma visão mais fundada numa concepção de “parte” organizada e ampliada, na luta político social.

Digo “parte”, ao mesmo tempo orgânica e centralizada em matéria de princípios, mas “aberta” -na esfera política- a uma sucessão de relações na sociedade civil, que considere, não só os seus filiados como integrantes do seu corpo político deliberante, mas também considere os ativistas conscientes -intelectuais de todas as “confissões filosóficas” democráticas- militantes de vanguarda, “representantes” auto-construídos do movimento social, considere-os não só como “seguidores”, mas também como fontes de produção de ideias e de políticas. Com as novas tecnologias de informação e comunicação estas fontes do ” bom senso comum” (mais, ou menos elaboradas) estariam aptas a ajudar nas decisões do partido, nas difíceis condições desta nova sociedade, cujo  mundo do trabalho foi totalmente transformados pelas novas tecnologias produtivas, e cujo  “modo de vida” -abrigado nas redes e no celulares- não mais lhes estimula serem sujeitos passivos das convocatórias dos partidos das experiências históricas do Século XX.

O PT, como confluência de um conjunto de forças marxistas, cristãs, progressistas e reformistas democráticas, tornou-se um grande aparato político que impulsionou e coordenou, através de liderança de Lula, o mais formidável conjunto de políticas públicas humanistas, protetivas e distributivas da história da República. Elas se tornaram exemplos para o mundo. Não é necessário dizer que, para processar estas reformas, às quais apoiei  e contribuí para a sua implementação, nossos governos acolheram (e o nosso Partido chegou a “recrutar”) pessoas sinceras que nada tinham a ver com a tradição libertária da esquerda, bem como outras que, mais tarde, se revelaram meros interessadas em manipular políticas de Estado para seus projetos de acumulação pessoal. Nos últimos 15 anos publiquei, entre muitos outros textos que envolviam concepções sobre socialismo e seus partidos, “Modesta utopia contra a barbárie”, 1995, “in” “Utopia possível”, Editora Artes e Ofício; “Democratizar as relações entre Governo e Sociedade”,2003, “in “Novos espaços Democráticos”; “Demarcação e Hegemonia”, 2003, Revista “Teoria e debate”, n.53; “O PT perante uma solução prática e um enigma teórico”, 2O15, Revista “Interesse Nacional”.

Os tormentos da persecução judicial contra Lula e outros quadros partidários, que detinham a confiança de Lula e do PT, aguçaram algumas contradições em nosso meio, mas -em benefício da unidade e da solidariedade- relativizamos e amaciamos nossas polêmicas internas, sempre com vistas a não dar armas ao inimigo. Neste quadro assumimos (os principais quadros do Partido), posições diferentes em relação ao futuro do PT, em relação à autenticidade da nossa maioria dirigente e em relação à própria natureza da grande liderança do Presidente Lula, vitimado por uma perfeita armação político-jurídica da República de Curitiba. Acabei concentrando minhas convicções, dentro do grande partido democrático que se tornou o PT -espremido entre a neo-liberalização da socialdemocracia européia e as tentativas tardias de sua bolchevização- na seguinte sentença do Sardo: “(o partido) como o anunciador e organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular, no sentido da realização de uma forma superior e total de civilização moderna.”  Um partido que disputa a hegemonia, não “uma divindade”, um partido que “trabalha para uma completa laicização de toda a vida”

Da minha parte, no relacionamento com Lula, sempre mantive com ele uma fidelidade política de princípios -enquanto estive nos seus Governos e fora deles- e aceitei as suas principais orientações porque entendia que a sua condução concreta do Governo e do Partido salvava vidas que seriam esmagadas pela fome, reestruturava a sociedade de classes de forma mais democrática e abria perspectivas republicanas mais sólidas dentro da formação social capitalista. E o fiz também porque o considero a mais importante liderança democrática e social da nossa história recente, porque acredito na sua inocência penal e na sinceridade dos seus propósitos. Lula é a figura de maior destaque na América Latina na defesa dos oprimidos de todos os tipos, no contexto de crise do sistema do capital e de assédio fascista contra as principais conquistas democráticas do país. Isso nunca quis dizer, da minha parte, perda do senso crítico em relação às suas orientações e muito menos perda do senso crítico em relação ao meu papel nos seus Governos.

Passo ao ponto chave deste artigo. Aos companheiros que se surpreenderam com a matéria do UOL, informo que o material nele contido está escrito de maneira mais contundente num texto que foi redigido há mais de um ano -distribuído para as principais lideranças partidárias, parlamentares, membros da Direção Nacional, Presidente Gleisi e entregue ao próprio Presidente Lula, depois da sua saída da prisão. Ao final, o texto foi publicado na íntegra  no Blog “terraredonda”, depois que Lula saiu do cárcere e impulsionou as matérias na imprensa tradicional. Evidentemente este texto teve pouca ou nenhuma influência nos debates internos da nossa direção, que deu centralidade -corretamente ou não- a outros temas que entendeu relevantes na conjuntura nacional e internacional. Defendo que, obtida a liberdade de Lula, estamos todos liberados para aprofundar nossas discussões sobre o futuro da esquerda e do PT e continuar na defesa das nossas lideranças políticas, especialmente a liderança (não infalível) de Lula, junto com outras figuras da esquerda, e assim expondo os nossos pontos-de-vista com desembaraço e transparência. É o que fiz e vou continuar fazendo, sem qualquer sentido provocativo ou manipulatório, que às vezes caracterizam as lutas intestinas do campo da esquerda.

Entendo que as reações que a matéria do UOL causou foram positivas, que os textos de resposta foram -na sua maioria-  oportunos, mas alguns (poucos) é verdade,  podem revelar um outro sintoma no petismo, que dão sinais alarmantes da nossa problemática política. Não falo aqui das manifestações fundamentadas, como as do companheiro Valter Pomar que –com sua reconhecida elegância bolchevique– tem sido uma espécie de corregedor dos meus (não dos do Lula) “desvios direitistas”; ou dos companheiros que criticaram a minha publicação “por inoportuna”, pois “isso não poderia ser feito no momento do nosso aniversário”, como disseram alguns; ou mesmo não refiro à crítica daquelas figuras que existem em qualquer partido, que não gostam de ver a sua organização política sob exame público, porque a consideram mais próxima de uma divindade (ou de uma comunidade de ungidos por uma verdade intrínseca) do que propriamente uma forma histórica de organização da política.

Refiro-me às denúncias de “traição”, aos pedidos da minha “expulsão” do PT e até a observações “eugênicas”, que se reportaram às posições da minha filha Luciana -considerada inimiga do povo por ter dissentido do PT e optado por outra organização política-  posturas que indicam que o “vírus” da uniformidade fascista ou da simplificação stalinista podem instalar-se em nosso meio.Todos os grandes debates que formaram a esquerda democrática contemporânea -seja ela socialista, socialdemocrata, democrático-radical ou democrata-cristã-  foram debates públicos que, ao mesmo tempo que demostraram a que vieram as ideias dos que nos precederam -em cada um destes campos políticos- também evidenciaram as resistências perversas com tentativas de unidade pela via do enquadramento burocrático.

Ao longo deste período que fiquei afastado da nossa Direção Nacional permaneci, como militante da base partidária, participando de intensas discussões -em seminários, conferências, reuniões coloquiais com grupos do PT, do PCdoB, do Psol, de intelectuais independentes, movimentos sociais, pessoas “sem” e “com”  partido -aqui e no exterior- aprendendo, discutindo, informando, organizando manifestações em defesa do Presidente do Lula e esclarecendo sobre a emergência do fascismo no  Brasil, bem como sobre a necessidade da renovação do projeto da esquerda de forma unitária. Sempre fiz isso respeitando a nossa direção legítima e informando diretamente o Presidente Lula, às vezes pessoalmente, outras vezes por carta, ou passando informações através dos seus assessores mais próximos e afetivos. Este texto do UOL reflete estas discussões conjuntas, que percorreram tanto a imprensa tradicional, como as formas alternativas de comunicação, em redes ou impressas, existentes em nosso meio.

Os processos de Moscou foram de Stálin, não de Lenin; a socialdemocracia inflexionou para o neoliberalismo na Europa, porque fez da “necessidade” de convívio com o capital financeiro uma “virtude”, não uma opção mediadora de resistência, discutida de forma aberta e pública na base da sociedade; a transformação dos governos revolucionários anticoloniais, na África -em Governos autoritários, às vezes corruptos -sem socialismo e sem democracia- ocorreu pela força da  autoridade “uniforme” do partido, não pelo convencimento produzido no debate em cena aberta. O interessante é que todas as correntes de poder no movimento político da esquerda, que sufocaram ou sufocam as discussões num âmbito presumidamente “interno” -que na sua prática são divulgadas depois como resoluções acordadas ou “unânimes”- usam sempre os argumentos da “inoportunidade” e da “pressão externa do inimigo”, para proteger o Estado ou o próprio Partido. A partir desta postura não se discute mais o mérito das posições em confronto, mas a eliminação da própria discussão -por expulsões ou denúncias de traição- sem o contraste fundamentado pelos argumentos.

Confesso que o que me preocupa não é a opinião destas pessoas sobre o que o Partido deve fazer comigo, no caso concreto, mas sim o reflexo que as suas opiniões -divulgadas em rede- terão numa ampla base de apoio de esquerda -interna ao Partido e fora dele- que aposta no PT como partido de referência nas lutas sociais e democráticas em curso no Brasil, mas que não mais aceitam a imposição de pratos feitos, hegemônicos por “natureza”. Não há uma missão “redentora” e inevitável, em defesa da democracia e do socialismo, já outorgada a alguém, pela História. O credenciamento precisa ser construído e passar pelo crivo da pluralidade de novos sujeitos, que sequer se sentem devedores daquilo que legamos, até agora, de bom ao Brasil e ao seu povo trabalhador. Não estou concorrendo a nenhum cargo eletivo nem pretendo exercer nenhum cargo partidário de direção ou atingir, em termos pessoais, qualquer dirigente partidário -atual o pretérito- mas vou continuar colocando publicamente as minhas idéias, adquiridas na experiência e na leitura,em todo o espectro da esquerda para contribuir com meu país.

Recebi dezenas de mensagens de membros do PT com apreciações positivas do meu texto e recebi também, dezenas de outras mensagens de intelectuais, quadros de Estado, professores, dirigentes políticos -integrantes do PT e de fora do PT-  e de dirigentes de outros partidos de esquerda, que apoiaram e apreciaram os termos da discussão proposta. Estou organizando-as para publicá-las, com a permissão dos seus autores. O que precisamos é mais debate, não menos debate.

A observação normativa de que “esta não é a hora de debater em público” questões internas, devemos responder que não existem mais questões importantes, de natureza política ou econômica, que sejam só “internas”, reservadas às direções ou aos filiados. Todas elas, na disputa pela hegemonia, interessam a todos! E mais: nunca teremos das cúpulas burocráticas de qualquer Partido o sinal para dizermos qualquer coisa, publicamente, que possa desacomodar as relações de poder estabelecidas nos mecanismos internos dos Partidos, por mais legítimas que elas sejam. Disse Benedetti numa poema magnífico:  “que esplendida laguna é o silêncio\  lá na margem um sino nos espera\  mas ninguém se anima a mergulhar um  remo\  no espelho quieto destas águas.” Mergulhemos, sem medo de tocar os sinos do debate.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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