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5 de junho de 2018
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11:09

2013 (1968), 2018- é preciso tentar dizer

Por
Sul 21
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2013 (1968), 2018- é preciso tentar dizer
2013 (1968), 2018- é preciso tentar dizer
“No final do mês de maio nos deparamos com outra surpresa: o movimento dos caminhoneiros parou o país”. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Robson Pereira (*)

Nos últimos tempos os acontecimentos se sucedem com tal velocidade que nos vemos inclinados a repetir um adágio antigo. Quem não está confuso é porque está mal informado. Ele vem da década de 90, é “velho”, porém , guardadas as proporções podemos dizer que continua atual. Talvez pudéssemos parafrasear e escrever: quem não tem dúvidas, está desesperado ou mal-intencionado.

Desde 2013 vivemos estes sobressaltos. Afinal, há cinco anos (parece que foi ontem), neste mês de junho, o Brasil foi tomado por manifestações que fugiam ao controle e análises de toda ordem, quaisquer que fossem seu aspecto conceitual ou ideológico. As festas juninas foram políticas e ninguém estava preparado para dançar uma “quadrilha” diferente ou fazer outro “caminho da roça”. Ainda não sabíamos que a vaca iria pro brejo muito rapidamente. O que tentamos enfatizar é o caráter diversificado, multifacetado e fora dos padrões de manifestação e reivindicação política tradicional. Lembremo-nos que os partidos da oposição e situação, assim como a grande mídia eram hostilizados abertamente, abrigando o surgimento de um outro tipo de cobertura, mais direta, espontânea, majoritariamente amadora e viralizando nas redes sociais (mídia ninja é um dos  exemplos mais crassos). Um celular na mão e uma imagem na frente para ser transmitida. Paráfrase para Glauber Rocha e o cinema novo:  “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” bastavam para fazer um filme.

Mais tarde, soubemos que as esperanças que se estivesse gestando uma nova cultura política, foram exageradas (vide artigo de Francisco Bosco, FSP 03/06/18); pois  a antiga política e, mais do que isto, um reacionarismo tosco e violento, cuja demanda da volta dos militares é sua face mais visível, pareceu ressurgir das cinzas. Ou melhor, os novos movimentos que brandiam a expulsão do velho fosse em termos de política ou economia deram espaço para o ressurgimento de um maniqueísmo acentuado: afinal, de quê lado você está? O mundo voltava a ser plano, a geometria só tinha duas dimensões. E boa parte da população acreditou que simplesmente retirar a presidente eleita do poder resolveria as coisas. Ou pelo menos seria uma catarse lenitiva. A nação absorveria o trauma com facilidade e se uniria em torno do bem comum (coisa que até hoje nenhuma pesquisa conseguiu definir).  Lêdo engano, erro de cálculo de quem achou que um luto pode ser feito apenas com medidas materiais, ou demandas de mais sacrifícios.

Porém, nem tudo se perdeu; o confronto aberto possibilitou que os movimentos de gênero, a defesa dos direitos LGBT, a luta contra o racismo pudesse ter maior  espaço. Insisto;  mesmo com todos os ataques contra as artes, ou ainda manifestações explícitas de preconceito sexual e racial que tivemos recentemente.

Isto nos leva as memórias de 1968 que completam 50 anos. Período cheio de controvérsias também. Porém, inegável reconhecer que as movimentações que citamos acima tiveram suas primeiras defesas naquele 68 longínquo. Assim como a exigência e os ensaios de que a política era importante demais para ficar somente nas mãos de políticos profissionais. Embora o Brasil “não seja para amadores”.  Paradoxo daquela época: no Brasil, apesar ou por causa das manifestações, o final do ano viu nascer o AI-5 e o recrudescimento da repressão explícita e “autorizada pela lei” – sim, porque suprimir as liberdades políticas exigiu um ato institucional assinado por “eminentes” juristas, além dos donos do poder.

Ao longo da história, as medidas de exceção sempre precisaram de um ordenamento jurídico que buscasse (e não conseguisse) assegurar sua legitimidade. Vide Hitler e seu nacional-socialismo que rasgou a Constituição de Weimar para justificar juridicamente o antissemitismo das leis de segregação racial. Outro paradoxo: a revolução cultural chinesa (67) que inspirou boa parte das manifestações de 68, também serviu como “fonte de inspiração” para experiências catastróficas tanto na China quanto no Cambodja. Com este fato, vamos tentar fazer tábula rasa da experiência dos jovens dos anos 60 e 70? Nada disto. Temos que fazer o reconhecimento (muitas vezes doloroso) de que não há garantias. Nenhuma concepção da realidade assegura resultados. Quanto mais simplistas, mais fantasiosos ou delirantes podem levar ao pior – sabemos que as soluções mágicas trazem uma violência embutida que logo mostrará seus efeitos.

Freud escreveu sobre isto em diversos momentos; lembremos de dois: “considerações sobre a guerra e a morte” (1915), onde perguntava se não teríamos idealizado demasiadamente as condições civilizatórias do mundo ocidental que se lançou na barbárie da I guerra mundial. E, “o mal-estar na cultura” (1930), onde às vésperas da tomada do poder pelos nazistas, apontava que entre as fontes de mal-estar que estruturam nossa relação com o mundo está a relação com os semelhantes,  talvez a mais difícil de enfrentar. Além disso, entre outras interpretações, nos lembrava que frente ao desamparo de nossa condição, podemos recorrer a estas formações fantasiosas (ou delirantes, já dissemos) onde demandamos o retorno de uma autoridade que reorganize o mundo caótico no qual vivemos.  Jacques Lacan em suas discussões com os estudantes universitários ao final dos anos 60, não se furtava de dizer que a violência política e segregação racial (e social) estavam longe de ser varridas de nosso horizonte. Afinal, o mal-estar é impossível de ser eliminado por completo, assim como os riscos que enfrentamos cotidianamente.

Neste 2018, ao final do mês de maio tão emblemático e início de junho, nos deparamos com outra surpresa. O movimento dos caminhoneiros parou o país. As discussões a respeito se era greve, parada patronal ou protesto autônomo só mostraram a amplitude e, mais uma vez, a novidade do acontecimento provocando o desconcerto dos analistas em geral. Solidariedade ao movimento pela maioria da população, mesmo sob o risco de desabastecimento de combustível, alimentos e gás de cozinha.  A corrida aos postos, aos supermercados e mercadinhos foi uma consequência da insegurança geral da nação, mas não um sinal de contrariedade com as reivindicações. Os discursos do governo para que os hospitais não ficassem sem itens necessários foram tomados como oportunismo . Ninguém acreditava que os manifestantes seriam mais desumanos que os atuais cortes na saúde e educação. Muita gente foi prestar solidariedade, levando água, café, comida. Alguns partidos à esquerda, bem poucos, também se fizeram presentes. Nada dos grandes partidos, ou aqueles da base aliada, nem os mais evangélicos.

O governo federal, mesmo convocando o exército, mostrou sua pouquíssima legitimidade. Precisou das lideranças regionais – notadamente São Paulo, para sair do impasse. A fragilidade política, incentivou o ressurgimento dos pedidos explícitos de volta dos militares, “pra acabar de vez com a corrupção e botar ordem nas coisas”. A demanda pelo retorno do autoritarismo parece seguir a  lógica enunciada por Freud: frente ao desamparo, optamos pela solução mágica por credulidade, conveniência, ou apagamento da memória. Teremos mais impasses pela frente. Talvez, para não cairmos no sentimento de impotência ou optarmos pelo apagamento da memória, tenhamos que deixar algumas idealizações de lado e reconhecer que tempos caóticos não prenunciam o fim do mundo, mas um mundo  conhecido até recentemente. O de hoje, conhecemos em parte, é preciso dizer. Daí a necessária solidariedade para tatearmos junto com outros que se disponham a compartilhar as incertezas e também as descobertas.  Um outro sentido para o mito de Sísifo: não só o castigo, porém, simultaneamente, a possibilidade de recomeçar a rolar as pedras.

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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