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7 de dezembro de 2017
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10:26

‘O João e a Maria têm que participar sim’, conselheiros municipais rejeitam projeto de Marchezan

Por
Luís Gomes
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Audiência pública na Câmara debateu projeto de lei que altera regulamentação dos conselhos municipais | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Graças à experiência do Orçamento Participativo e de outros mecanismos de democracia direta, a cidade de Porto Alegre até hoje é considerada uma referência no Brasil e no mundo de participação social na deliberação sobre políticas públicas. No entanto, representantes dos 29 conselhos populares da cidade — responsáveis por deliberar sobre temas que vão desde saúde e educação a políticas para pessoas com deficiência –, reunidos no Fórum Municipal de Conselhos da Cidade (FMCC), se juntaram nesta quarta-feira (06) em audiência pública na Câmara de Vereadores para denunciar que a gestão de Nelson Marchezan Jr. (PSDB) que reduzir o papel de decisão e a autonomia desses órgãos e subordiná-los aos interesses de sua gestão

O tema da audiência foi o debate do Projeto de Emenda à Lei Orgânica (PELO) nº 09/2017, que altera o artigo 101 da Lei Orgânica do Município. Atualmente, a redação desse artigo diz: “Os Conselhos Municipais, cujas normas gerais são fixadas em Lei Complementar, são órgãos de participação direta da comunidade na Administração Pública e têm por finalidade propor e fiscalizar matérias referentes a setores da Administração, bem como sobre elas deliberar”. A proposta do governo é mudar o texto para: “Os Conselhos Municipais são órgãos de participação direta da comunidade na Administração Pública e têm por finalidade propor, fiscalizar e deliberar, no que couber, matérias referentes a setores da Administração, nos termos da lei”.

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A interpretação da assessoria jurídica do FMCC, proponente da audiência, à nova redação é de que a expressão “no que couber” delegará à Prefeitura dizer quando cabe a deliberação dos conselhos e quando a gestão poderá tomar decisões que ignorem a autoridade atual dessas entidades.

Angela Maria de Aguiar Silva, conselheira do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) ressalta que este papel deliberativo, no caso do órgão do CMAS, significa a responsabilidade sobre as políticas de assistência social do município, como a alocação de verbas. “Tudo que diz respeito ao Fundo Municipal de Assistência Social — que recebe repasses da União — deve passar por deliberação do CMAS”, diz, salientando que, atualmente, a Prefeitura já vem tentando utilizar esses recursos em contrariedade com as decisões do CMAS. Para ela, se aprovado o projeto, isso significará uma redução na autonomia dos conselhos. “Ele está encaminhando uma alteração que deixa em dúvida o papel deliberativo do conselho”.

Luiz Gomes, presidente do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), diz que, hoje, o conselho — responsável, por exemplo, projetos especiais e empreendimentos imobiliários de grande porte — é composto por um terço de representantes de moradores das regiões da cidade, um terço de representantes de entidades civis e um terço de representantes governamentais. Ele pondera que essa composição permite a discussão e aperfeiçoamento dos projetos. Já caso a composição passe a ser 50% de representantes do governo e 50% de usuários e entidades, com a aprovação da lei, os projetos passarão a ser debatidos com menor profundidade, uma vez que o governo terá menos trabalho para impor seus interesses. “Se tiver a paridade, não vai mais ter espaço para a discussão. O que vem do governo com posição está resolvido. Corta a possibilidade de diálogo. É o grande mal que essa lei vai trazer para os conselhos”.

Audiência contou com a presença de representantes de diversos conselhos municipais | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Representante do governo na audiência, o secretário-adjunto das Relações Institucionais, Carlos Siegle de Souza, destacou em sua fala que a atual gestão reconhece a importância que Porto Alegre tem para o Brasil e para o mundo como referência de democracia participativa e que “não há qualquer possibilidade de cercear ou reduzir os instrumentos de participação sem ter uma forte reação da população de Porto Alegre”. Segundo ele, a proposta trata-se de uma adequação à legislação federal sobre conselhos populares, que determina que estas entidades devem ter composição paritária (50/50) entre representantes da sociedade civil e governamentais. Contudo, destacou que as alterações serão feitas caso a caso e que as composições de cada um dos 29 conselhos deverão ser votadas individualmente na Câmara.

Um questionamento feito ao projeto, contudo, é o de que também buscar reduzir o número de votos necessários na Câmara para fazer alterações na composição dos conselhos dos atuais 24 votos (maioria qualificada) para 19 votos (maioria simples).

Joãos e Marias

Para a vereadora Sofia Cavedon (PT), que presidiu a audiência pública, a legislação representa sim um enfraquecimento da soberania popular em Porto Alegre, mas diz que essa posição não surpreende vinda da atual gestão. “Combina com as falas públicas, claras, nítidas que o prefeito Marchezan faz, em que não esconde a sua visão de que as elites vão decidir os destinos da cidade, elite da mídia, elite empresarial e elite política, e que ele acha uma irresponsabilidade delegar ao João e à Maria. E é nos conselhos municipais que estão representandos os Joãos e as Marias, que lutam por habitação popular, por saúde, por educação, por assistência social”, disse a vereadora, que lembrou ainda que outro instrumento de participação popular, o orçamento participativo, foi suspenso nesse ano pelo prefeito sob o argumento de falta de capacidade da Prefeitura em atender demandas já existentes, que então seriam priorizadas.

Sofia Cavedon avaliou que projeto reduz a autonomia dos conselhos municipais | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Na mesma linha de Sofia, diversas falas durante a audiência lembraram a manifestação de Marchezan na entrega do 34º Troféu Carrinho Agas, em 17 de novembro, quando ele afirmou: “Não será ninguém mais do que a elite da comunicação, a elite empresarial e a elite política que farão as reformas tão necessárias. Delegar isso ao ‘seu João’ e à ‘Dona Maria’ é irresponsabilidade”. Estas frases foram entendidas como um ataque do prefeito à participação popular nos rumos da cidade.

“Eu não admito que um prefeito diga que o seu João e a dona Maria não sabem administrar, uma pessoa que vive com 900 reais por mês pode dar aula para ele”, disse Djanira Corrêa da Conceição, vice-presidente do Conselho Municipal de Saúde (CMS). “O que está em risco é o protagonismo dos Joãos e das Marias”.

“O que está em risco é o protagonismo dos Joãos e das Marias na administração pública. Alterar a redação para colocar “no que couber” a participação dos conselhos e passar de maioria absoluta para simples a aprovação de alterações das leis que tratam dos conselhos permite o governo decidir autoritariamente a composição dos órgãos”, disse em outro momento Mirtha da Rosa Zenker, presidente do CMS e do FMCC, que entregou uma carta aos vereadores pedindo a retirada imediata do projeto de tramitação.

Para o professor do Departamento de Sociologia da UFRGS, Marcelo Konrath, que fez relato histórico sobre o desenvolvimento das políticas públicas de participação social em Porto Alegre e no Brasil, Marchezan transparece uma visão de democracia em que o cidadão não tem capacidade cognitiva para exercer seu papel de participação, no máximo tem competência para eleger o governante. “Mas quem decide quem é capacitado para participar das decisões? Em geral, é o governo. Quem concorda com ele é competente, quem discorda é incompetente e desqualificado”, pondera. “O bloqueio a qualquer tipo de conflito é a raiz de governos autoritários de direito e de esquerda no mundo inteiro”, complementa. Diversas outras falas também alertaram para o caráter autoritário do prefeito, que foi chamado de “rei”, “monarca” e “imperador” por alguns dos participantes da audiência.

Professor Marcelo Konrath fez uma apresentação sobre a história da participação social | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O professor destacou que a participação social é um elemento importante para a qualificação das políticas do Estado, para o controle das instituições, para o respeito da diversidade de saberes existentes na sociedade, como instrumento pedagógico de construção de uma cultura de cidadania, etc. “Num País em que a maioria da população está excluída da política, isso é fundamental”, diz.

O vereador Clàudio Janta (SD) salientou ainda que o governo não tem interesse apenas em reduzir a participação popular, mas em ter maior poder sobre as verbas e recursos administrados pelos conselhos. Segundo ele, somente o Conselho Municipal de Acesso a Terra e Habitação (Comathab) teria em caixa R$ 50 milhões para serem administrados, mas que não são utilizados pela falta de políticas públicas para a área na atual gestão, e o mesmo valeria para outros conselhos. Citando manifestação anterior da representação da Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Apedema-RS) na audiência, o vereador salientou ainda o caso no qual o governo editou decretos para utilização de R$ 4,3 milhões em recursos que deveriam ser utilizados conforme diretrizes do Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam), que ainda não foi convocado para se reunir na atual gestão — uma realidade que acontece em diversos dos outros conselhos. “Cada conselho tem uma grana disponível e o governo quer meter a mão lá dentro”, disse Janta.

Ao final, a audiência deliberou que o governo deverá se reunir com representantes do FMCC — conforme se disponibilizou Siegle — e que os vereadores presentes tentarão priorizar a votação da criação de uma frente parlamentar em defesa dos conselhos municipais.


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