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9 de junho de 2017
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11:17

Audiência marca prazo para Incra entregar estudos sobre Quilombo dos Machado

Por
Sul 21
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Moradores da Comunidade Sete de Setembro e do Quilombo dos Machado foram ao prédio da Justiça Federal para acompanhar audiência | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre

Luís Rogério Machado nasceu e se criou na antiga Vila do Respeito, hoje conhecida como Vila Minuano. Foi ali o lugar que a avó Laura Machado encontrou para morar com os filhos pequenos, recém-chegada de Santo Antônio da Patrulha, nos anos 1970. Quando criança, sem muito lugar para brincar dentro da vila que crescia na mesma medida em que crescia Porto Alegre, Luís, os irmãos, os primos e vizinhos costumavam correr para o terreno ao lado. Na grande grande área de terra, tomada de maricá – arbusto que cresce em áreas de solo muito úmido – passavam os dias pescando no arroio, jogando futebol e capoeira, até a hora de voltar para casa, a 20 metros dali.

Foi pela relação dele com a terra que, em 2012, Luís Rogério se juntou a mais de 160 famílias e ocupou a área fazendo dela sua nova casa. Enquanto a Minuano lotada já não comportava mais moradores, quem nasceu e se criou no local, seguiu a vida na área vizinha. “A família cresce, tenho um filho de 5 anos, sou casado e, como todo pobre, não temos para onde ir. Como sempre, o sistema te esmaga e te impõe na marra procurar um espaço. Nós não tínhamos dinheiro, então retomamos o espaço, com um objetivo único: morar”, conta ele.

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A retomada aconteceu no dia 07 de setembro de 2012. Além das 15 famílias quilombolas, outras 160 famílias sem teto construíram casas na área que fica ao lado do hipermercado BIG, da Avenida Sertório, na Zona Norte da capital gaúcha. Desde então, os donos do Walmart, empresa proprietária do supermercado, e as famílias brigam na Justiça pelo pedaço de terra. Nesta quinta-feira (08), uma audiência na Justiça Federal tentou buscar mediação para a disputa.

Luís Rogério cresceu na região onde está comunidade e é presidente do Quilombo dos Machado | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em abril de 2014, menos de dois anos desde a primeira ocupação, a Fundação Palmares publicou a portaria que reconhece o Quilombo dos Machado como área quilombola. Foi o único avanço da questão. Na audiência desta quinta, no entanto, a decisão judicial determinou que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Palmares têm 60 dias para entregar um cronograma da realização de estudos sobre a área, que irá determinar se ela pode ou não ser desapropriada como sendo de interesse social.

“São quase 300 famílias e tem um núcleo, que se auto-identifica como quilombola, que é praticamente quem dirige a ocupação e que envolve umas 70 famílias. Mas eles reivindicam todo o território”, explica Onir Araújo, da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul. “O processo que está aberto no Incra, que é o responsável por fazer o estudo de delimitação da área, número de famílias, até chegar a etapa final. Em se concluindo que realmente a comunidade tem aquele direito, se promove a desapropriação social e indeniza eventuais proprietários”.

Araújo frisa a palavra “eventuais” porque até o momento, nem a Real Empreendimentos – que representa o Walmart – nem um outro homem que se apresentou como proprietário de parte da área, depois da ocupação, apresentaram documentos que comprovem a propriedade. “Tem a questão de permuta, por índice construtivo, mas que não foi averbada no registro de imóveis. Não existe um documento que demonstre a propriedade, cabalmente, muito menos a posse”, afirma ele.

Advogado da Real. Eichenberg diz que empresa não reconhece área como quilombola | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O advogado da Real Empreendimentos, Lucas Eichenberg, diz que a empresa “não reconhece” a área como sendo quilombola. Ele conta que a Real já teria um empreendimento imobiliário previsto, assim que as famílias forem retiradas do local, mas não soube estimar o valor da área. “A discussão que se faz neste processo é exclusivamente quanto à posse. A Real teve sua posse esbulhada no final do ano de 2012 e desde lá tenta na Justiça, já com duas determinações judiciais, a desocupação do imóvel. A audiência foi boa, no sentido de pautar prazo para que isso ocorra, para levar esse processo com a seriedade que deve ser levado e cabe à Real aguardar os próximos 60 dias, que serão definidores”, declarou após a audiência.

Em cinco anos, famílias formaram comunidade

Os quase cinco anos de existência da Comunidade da Sete de Setembro – incluindo o Quilombo dos Machado – foram suficientes para formar um senso de comunidade nas mais de 300 famílias que vivem no local. O Sul21 acompanhou a história desde o início. Em 2014, a comunidade registrava 176 famílias e o Departamento de Habitação (Demhab), da Prefeitura de Porto Alegre, falava em 150. Metade do quanto ela cresceu hoje.

Tamires da Silva Antunes, mulher de Luís Rogério, também cresceu na Vila Minuano e tendo a região como seu lar. “A gente morava de aluguel e aquela área estava ali, sem nada construído, há mais de 40 anos. A gente ocupou por necessidade mesmo”, conta. Hoje, não se imagina morando longe das amigas e vizinhas com quem ela diz que pode contar “qualquer coisa”. “A gente se ajuda, pede coisas emprestadas. A gente não quer nenhum outro lugar, a gente quer onde a gente está”.

Sem poder entrar na audiência, dezenas de moradores da comunidade aguardaram em frente ao prédio da Justiça Federal. Com batuques e bandeiras, eles cantavam pela resistência dos quilombolas e da Sete de Setembro.

Moradores aguardaram em frente ao prédio | Foto: Guilherme Santos/Sul21

“Todos os que estão ali, sempre moraram ali”, diz Marcos Aurélio Costa Lima, presidente da Comunidade Sete de Setembro. Segundo ele, nem o poder público, nem a Justiça, nem a empresa que pede reintegração de posse do terreno, ofereceram alternativas para as pessoas que vivem no local. Se eles fossem retirados, teriam de viver na rua. “Estamos sempre lutando, não podemos nunca baixar a guarda. A gente nunca sabe quando vão mandar uma reintegração de posse. O poder público, que poderia nos ajudar, também não ajuda. A gente luta todos os dias e já dissemos, de lá, só vamos sair mortos”.

Luís Rogério, que viu o filho nascer já dentro da nova casa na comunidade, também vê com esperança a possibilidade de conseguir a terra por reconhecimento dos direitos dos quilombolas. “A gente não vai sair, nem que a gente tenha que resistir. Historicamente, para o povo pobre, que está sempre sendo esmagado pela sociedade, aquele espaço que tu consegue para criar teu filho, para dar um bom estudo para ele, para ele crescer e viver ali, o nosso objetivo ali é morar”.

Foto: Guilherme Santos/Sul21

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