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26 de outubro de 2012
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07:15

Portugal: Um solo de clarineta

Por
Sul 21
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O mundo é o que Roma deseja que seja. E Roma o que seus imperadores desejam” (Nero)

Querias um concerto de jazz. Eu te dei um solo de clarinete…” (Érico Veríssimo, in Solo de Clarineta)

A Península Ibérica está mesmo fadada a ter um destino comum em seus dois países: Portugal e Espanha. O rosto humano do mal sempre a lhes perseguir…Ambos vítimas da mais cruel Inquisição que perdurou desde a Idade Média, até a ocupação napoleônica, que a extinguiu; ambos, precoces na formação de seus respectivos Estados Nacionais que comandou as Grandes Navegações, levando ao reparto do mundo no Tratado de Tordesilhas; ambos Impérios Coloniais prósperos e náufragos na aventura de fazer do mercantilismo um salto para a modernidade; ambos prisioneiros, no século XX, de duradouras e retrógradas ditaduras, aliadas de Hitler; ambos eufóricos com a europeização recente e ambos retóricos, agora, diante de uma crise que abala não só as famílias, mas o próprio Estado. Exaltam-se os ânimos contra o centro governamental, falando-se cada vez mais em autonomia de regiões e até em separação, a monarquia claudica na Espanha, depois de flagrada em diletante safári na África e a Igreja, ainda poderosa, é alvo de críticas contumazes pelos elevados custos que implicam aos contribuintes. Talvez, por isso mesmo, aqui em Portugal, a Igreja tenha estado atenta de forma a evitar o pior. E se manifestado na Páscoa passada afirmando que há “demasiadas mãos sujas com a iniquidade, com a exploração dos fracos ou com as conjunturas de interesses. E isto acontece porque há mãos limpas mas atadas pelo ‘deixar correr’, não querer comprometer-se, ter medo do que poderá acontecer ( registrado por Antonio Barbosa Filho, em “A Face Desumana da Crise”, publicado no Boletim Outras Palavras.)

Mas não vou falar dos números da Crise Econômica, presentes em inúmeros relatórios nacionais e internacionais, todos unânimes em evidenciar paralisação dos investimentos produtivos, queda do PIB, déficits públicos gigantescos e políticas de austeridade. Apenas salientar que a ilusão da fusão na União Européia com a adoção do Euro como moeda única já se desfez, levando muitos analistas a proclamarem, como saída, o retorno de Portugal à comunidade lusofônica, como Renato Epifania, da Revista Nova Águia – http://novaaguia.blogspot.pt/ .

O rumo desta profunda crise económica e social em que estamos mergulhados tem responsáveis, traduzida numa crescente e preocupante perda de soberania. Demonstrativo no saldo das transferências financeiras da União Europeia desde 1996 e 2011, foi já ultrapassado neste mesmo período pelo saldo de dividendos, lucros distribuídos e juros. Ou seja, a UE já recebeu neste período mais de Portugal do que aquilo que para cá enviou de fundos comunitários. Este é o resultado de centenas de operações de alienação de capitais nacionais que colocaram em mãos estrangeiras a maioria do capital dos nossos principais grupos económicos e financeiros e que agora se reflete na cada vez maior saída de dividendos e lucros distribuídos e também fruto do crescente endividamento do nosso sistema financeiro, na cada vez maior fatura de juros a pagar.

(Honorato Robalo , PCP – http://www.ointerior.pt/noticia.asp?idEdicao=676&id=37292&idSeccao=8796&Action=noticia)

Deixemos, pois , os números , sob os escombros da unificação monetária apressada e detenhamo-nos no impacto da Crise sobre os segmentos vulneráveis da população: os mais velhos, os jovens e , enfim, os próprios desempregados. E falemos da reconcentração de renda que aqui vai se processando como se fosse “natural”.

A questão do desemprego é grave. Cada vez mais as pessoas estão procurando saídas, ou para o exterior, ou para o interior do país, onde têm famílias, propriedade e alguma estabilidade social. E recorrem ao seguro-desemprego como um paliativo. Agora, porém, o Governo anuncia que irá diminuir o valor deste subsídio, colocando-o 150 mil trabalhadores abaixo do nível considerado como de pobreza, fixado em 421 euros:

Um beneficiário do subsídio de desemprego recebe, no mínimo, 419,22 euros, mas o Público avança hoje que o Governo quer reduzir esse montante em 10 por cento, fixando-o nos 377,29. A ser aprovada esta proposta, já enviada aos parceiros sociais, mais de 150 mil beneficiários do subsídio irão passar a viver abaixo do limiar da pobreza, nivelado nos 421 euros.

A Lusa acrescenta que a medida é espelhada no subsídio social de desemprego, mas com um corte ainda mais severo no caso do beneficiário não ter agregado familiar, passando a corresponder a 72 por cento do Indexante de Apoios Sociais. Um desempregado nestas situações irá receber apenas 301,83 euros, enquanto um desempregado com agregado familiar irá receber 377,29 euros.

(http://www.ptjornal.com/2012102411598/geral/sociedade/governo-propoe-colocar-beneficiarios-do-subsidio-de-desemprego-abaixo-do-limiar-da-pobreza.html )

Os idosos estão, também, pagando um preço alto pela crise. Suas aposentadorias vêem sendo cortadas de forma inapelável e muitos dos benefícios sociais que lhes protegiam, suspensos. O complemento solidário que recebem deve ter um corte de 2,25 por cento para beneficiários individuais, com o valor mínimo descendo de 5022 para 4909 euros anuais. Contudo, este complemento cessa para os pensionistas cuja aposentadoria supere os 600 euros mensais.Um depoimento, de Eugênio Lisboa, enviado ao Primeiro-Ministro e publicado no Jornal do Fundão, uma cidade perto de onde moro, me comoveu:

Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. (…) Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões apontam na mesma direção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi desejando longínquo. Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo favorito do tiroteio fiscal (…)”

Sobre os jovens o comovente é vê-los partir, em número impressionante para o exterior. E sentir o sarcasmo de alguns analistas que vêem isto como positivo, tal como este jornalista que responde `a grande repercussão ao lamento de um emigrante – Pedro Marques – lamentando-se pelo exílio econômico:

Alguém questionou Pedro Marques sobre se trabalhar no estrangeiro não ia melhorar a sua formação?

([email protected])

Aqui, realizou-se, semana passada , o IV Congresso Português de Demografia que juntou duas centenas de especialistas na Universidade de Évora. Eles concluíram que um milhão de jovens deixarão o país nas próximas duas décadas. Um número assombroso para uma população de pouco mais de 10 milhões de almas. Seria o mesmo que drenar 20 milhões de brasileiros para o exterior.

O secretário de Estado das Comunidades, José Cesário, admite, que por causa do desemprego este ano se podem repetir os números do ano passado, em que o Governo calcula que emigraram perto de 100 mil portugueses. Eles são, em grande maioria, jovens recém formados que partem para uma viagem sem retorno para Alemanha, Suiça, Bélgica ,França, Austrália e Brasil, deixando o país cada vez mais velho e depauperado. Em alguns desses países há até um inédito chamamento, através das redes, aos jovens portugueses:

Porque está com dificuldade em preencher as vagas no sector das engenharias e tecnologias, a Bélgica decidiu começar a contratar em países onde há diplomados desempregados nestas áreas como Portugal, Espanha e Grécia. Para se candidatar a estes lugares pode enviar o seu currículo em inglês ou francês para [email protected]. Ou então contactar directamente as dezenas de empresas que vêm a Portugal participar na Feira de Emprego para engenheiros que se realiza nos próximo dia 10 e 11 de Maio, nas instalações do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL). A iniciativa, organizada pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, trará a Portugal dezenas de empresas que procuram engenheiros também da Noruega, Suécia, Reino Unido e Dinamarca.

(http://economico.sapo.pt/noticias/belgica-procura-portugueses-para-oito-mil-empregos_142589.html )

Pesquisas do Instituto Nacional de Estatística de Portugal revelam que a perda de população ativa em Portugal é muito forte, sobretudo nas idades de 25 a 34 anos: entre Junho de 2011 e Junho de 2012, desapareceram das estatísticas 65 mil deles; e nos primeiros seis meses deste ano , 40 mil .

Na Espanha convulsionada, o drama é o mesmo e chegou a merecer um Editorial no dia 16 de outubro : “Los que se ván”. Informa este Editorial que entre 1950 e 1973 um milhão e meio de espanhóis emigraram, mas que, no curto espaço de 01 de janeiro de 2011 até a presente data, 927.890 já deixaram o país. Ressalta que esta drenagem foi em parte compensada por 117.000 imigrantes que chegaram à Espanha no mesmo período, mais os nacionais que retornaram. Mas adverte:

La descapitalización es evidente. El perfil del nuevo emigrante es el de un adulto de entre 28 y 45 años que elige por destino Reino Unido, Francia, Alemania, EE UU y algunos países sudamericanos. (…)El impacto demográfico de la nueva coyuntura es la primera reducción en términos absolutos del censo de población.

A conseqüência desta vulnerabilidade das populações mais idosas e jovens é a insegurança crescente. Dados já revelaram que na Grécia falida os suicídios aumentaram 17% entre 2007 para 2009 e que teriam subido 25% em 2010.

Em Portugal , onde as informações são mais difíceis – o suicídio é estigmatizado por aqui- , há apenas uma informação da base de dados Pordata, registrando que 1098 pessoas se suicidaram-se em 2010, ou 84 a mais do que no ano anterior, mas sem avaliação das causas destas mortes. Mas pode-se imaginar o quanto o desemprego, os cortes em aposentadorias e suspensão de serviços sociais do Estado afetam as estruturas psicológicas dos indivíduos, levando-os à medidas extremas.

A Crise assemelha-se, pois, a um grande incêndio que devasta não só a nossa morada, mas o que ela guarda de mais caro: parte da nossa alma guardada nos álbuns de família…Ela dilacera famílias, esperanças, raízes. Ela compromete o tecido social fazendo os mais pobres pagarem pela conta da irresponsabilidade dos governantes. E se torna mais infame quando as diferenças sociais são muito profundas, como em Portugal e Espanha, justamente quando se esperava, com a unificação européia, que eles se aproximariam dos modelos socialmente mais equilibrados da Europa do Norte. O conhecido índice de concentração de renda, aqui, mudou muito pouco nos últimos anos, passando de 0,347 , em 1994, para 0,373 em 2005.

(Essa) concentração do rendimento no grupo do topo da distribuição pode ser consubstanciada na comparação do rendimento total detido pelos 20% mais ricos face ao apurado para os 20% mais pobres (S80/S20): neste plano, verifica-se que Portugal é a par da Espanha o 4º país mais desigual da UE.

É tão gritante este resquício do subdesenvolvimento em Portugal que hoje abunda uma literatura de denúncia dos troncos patrimoniais lusitanos em sua articulação com o Estado, que opera como mecanismo reconcentrador da riqueza em plena Crise:

Apesar das desigualdades em Portugal serem já superiores à média comunitária, e apesar do congelamento de salários e pensões e também recessão económica que atira diariamente muitos portugueses para o desemprego e para a miséria, o actual governo pretende fazer uma gigantesca redistribuição dos rendimentos (mais-valia), em beneficio da minoria já privilegiada.

(Eugénio Rosa – http://resistir.info/e_rosa/redistrib_rendimento.html )

Daí chamarem estas famílias tradicionais como os “Donos de Portugal”, título de um livro e um documentário, nele baseado, recentemente vindo a público. Ei-los, para os interessados, encerrando o amargo solo de clarinete de hoje:

O LIVRO

Os Donos de Portugal – Cem anos de poder económico

de Fernando Rosas, Francisco Louçã

Edição/reimpressão: 2010

Páginas: 400

Editor: Edições Afrontamento

Sinopse

Este livro apresenta os donos de Portugal e faz a história política da acumulação de capital ao longo dos anos que vão de 1910 a 2010. Descobre-se a fortuna nascida da protecção: pelas pautas alfandegárias contra a concorrência, pela ditadura contra as classes populares, pela liberalização contra a democracia na economia. Esta burguesia é uma teia de relações próximas: os Champalimaud, Mello, Ulrich, entre outros, unem-se numa mesma família. Os principais interesses económicos conjugam-se na finança. Esta burguesia é estatista e autoritária: o seu mercado é o Estado e depende por isso da promiscuidade entre política e negócios. Os Donos de Portugal retrata também um fracasso monumental: o de uma oligarquia financeira incapaz de se modernizar com democracia, beneficiária do atraso, atraída pela especulação e pelas rendas do Estado e que se afasta da produção e da modernização. Ameaçada pelo 25 de Abril, esta oligarquia restabeleceu-se através de um gigantesco processo de concentração de capital organizado pelas privatizações. Os escândalos do BCP, do BPN e do BPP revelaram as faces da ganância. Este livro demonstra como os donos de Portugal se instalam sobre o privilégio e favorecimento.

O FILME

Donos de Portugal é um documentário de Jorge Costa sobre cem anos de poder económico. O filme retrata a proteção do Estado às famílias que dominaram a economia do país, as suas estratégias de conservação de poder e acumulação de riqueza. Mello, Champalimaud, Espírito Santo – as fortunas cruzam-se pelo casamento e integram-se na finança. Ameaçado pelo fim da ditadura, o seu poder reconstitui-se sob a democracia, a partir das privatizações e da promiscuidade com o poder político. Novos grupos económicos – Amorim, Sonae, Jerónimo Martins – afirmam-se sobre a mesma base.

No momento em que a crise desvenda todos os limites do modelo de desenvolvimento económico português, este filme apresenta os protagonistas e as grandes opções que nos trouxeram até aqui. Produzido para a RTP 2 no âmbito do Instituto de História Contemporânea, o filme tem montagem de Edgar Feldman e locução de Fernando Alves.

A estreia televisiva teve lugar na RTP2 a 25 de Abril de 2012. Desde esse momento, o documentário está disponível na íntegra em www.donosdeportugal.net.

Donos de Portugal é baseado no livro homónimo de Jorge Costa, Cecília Honório, Luís Fazenda, Francisco Louçã e Fernando Rosas, publicado em 2010 pelas edições Afrontamento e com mais de 12 mil exemplares vendidos.

(http://www.donosdeportugal.net)


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