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23 de outubro de 2012
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20:19

Depois de 40 anos, vítimas da ditadura voltam a local de tortura em Porto Alegre

Por
Sul 21
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Diante das celas, ex-presas lembram como era dormir e viver na escuridão. “Até hoje só durmo de luz acesa”, contou uma delas | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Rachel Duarte

“Era uma noite de final de maio de 1970. Eu não lembro o horário exato, porque quando estamos face à tortura, o tempo parece não ter fim”, recorda a ex-presa política Ignez Maria Ramminge. Quatro décadas depois, ela e outras mulheres que lutaram pelo regime democrático no Brasil durante a Ditadura Militar retornaram ao local onde foram presas e torturadas. Nesta terça-feira (23), as primeiras vítimas do período de exceção no Rio Grande do Sul que estiveram na Penitenciária Feminina Madre Pelletier deram outro significado às celas em que viveram parte da sua juventude. O ato foi promovido pelo Comitê Carlos de Ré – da Verdade e da Justiça e demarcou o presídio como um espaço de repressão no país.

Ignez Maria, conhecida como Martinha, fazia parte do grupo Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, o mesmo em que militou a presidenta Dilma Rousseff. Seus crimes foram, diante dos agentes do estado à época, subversão e ameaça a segurança nacional por causa das ideias contrárias ao regime militar e o combate à ditadura. “Participei de atos contra a ditadura. Eu vim a conhecer Dilma quando o Carlos Araújo estava preso e ela veio para Porto Alegre. Nós lutávamos por democracia. Gostaríamos de ter alcançado uma sociedade mais justa e igualitária, não conseguimos. Mas eu continuo socialista”, afirma.

Ex-presa Martinha relatou noite de tortura em que foi espancada por militares | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Ela recordou detalhes do período em que esteve presa, como o veículo em que foi transportada, o capuz negro que vestiram em sua cabeça e características dos autores da tortura que sofreu. Foi visível, porém, que as práticas violentas dos militares ficaram na sua memória. “Eu não consigo mais”, desculpou-se, diante de algumas autoridades e ativistas de Memória e Direitos Humanos que estavam presentes.

Algumas ex-presas políticas daquela época não compareceram, mas enviaram relatos. “Lembro de todas as coisas que sofri dentro desta cadeia, mas lembro de coisas boas também. Das tangerinas e caquis que furtivamente eram passados pelas presas comuns a nós, consideradas ‘terroristas perigosas’, por cima do muro que nos separava. Até hoje, quando estou triste, recorro ao pão dormido com mel e café preto que era nos dado como refeição”, disse uma das presas em depoimento ao Comitê.

Outras enfrentaram pela primeira vez as emoções de compartilhar a tortura sofrida. “Até quando? (suspiro) Eu tenho orgulho de ter feito parte daquela geração. Valeu a pena”, foram as poucas palavras sobre a época que a ex-presa Helena Hudof falou em público.

Ativistas de Direitos Humanos e ex-vítimas da ditadura colam adesivos para identificar Madre Pelletier como local de tortura | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Emocionada ao ouvir os depoimentos das colegas de sua mãe, Gorete Losada – filha de Sônia Venâncio Cruz e Antonio Losada, militantes do Sindicato dos Metalúrgicos – chorava ao ouvir relatos dos atos de brutalidade sofridos por elas. Mulheres que tiveram coragem de relatar os socos, tapas, pontapés, choques e sessões de pau-de-arara que sofreram para entregar informações sobre os companheiros. “Eu tinha uns 10 anos de idade quando os militares invadiram a minha casa pela primeira vez e levaram meus pais para o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social)”, contou Gorete. “Minha mãe foi solta e depois de um ano presa outra vez, por um julgamento à revelia. Passou mais de 10 anos na prisão”, disse, lembrando que vinha ao presídio Madre Pelletier visitar a mãe.

Celas de tortura poderão virar espaço cultural e de preservação da memória

A manifestação em frente à prisão feminina deu prosseguimento ao processo de identificação de espaços de repressão e resistência na ditadura em Porto Alegre, promovido pelo Comitê Gaúcho da Memória Verdade e Justiça (Comitê Carlos de Ré). Na ocasião, foi proposta uma ressignificação do local pelas mulheres que atualmente estão privadas de liberdade. Duas apenadas elaboraram um projeto para utilização das quatro celas utilizadas como local de tortura na ditadura, em que hoje funciona um canil.

Com 21 anos de pena, Roselaine diz que lutará pelos direitos das mulheres porque a discriminação de gênero ocorre em todos os lugares | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

“Queremos reconstruir por nossas mãos este espaço de dor e luta. Podemos utilizá-lo como espaço cultural e de preservação da memória do que ocorreu aqui com estas mulheres. Poderemos utilizar o local para expor nossos trabalhos manuais que fizemos aqui e oficinas de livre expressão cultural”, propôs a presa Roselaine Magnos. Segundo ela, é importante preservar a história das ex-presas políticas para combater à tendência torturante ainda presente no sistema prisional. “Todas que relataram histórias aqui são iguais a nós e iguais a vocês que estavam ouvindo. Porque é a mesma sociedade em que vivemos. As ditaduras hoje estão disfarçadas de racismo, homofobia, de julgamentos de dois pesos e duas medidas sobre nossos erros e acertos”, falou.

Em defesa do trabalho de reforma do sistema prisional gaúcho, a agente penitenciária e coordenadora da recém criada Coordenadoria Penitenciária da Mulher, Maria José Diniz, disse que desde 1999 foi extinto o castigo existente na penitenciária feminina e foram liberadas as visitas íntimas. “Era algo que apenas uma presa tinha e por critério de merecimento pelo trabalho que prestava. Hoje temos uma política pública para garantir estes direitos. Não é também só liberar para o companheiro vir aqui. É fazer a devida orientação sobre o direito ao prazer, o cuidado com o corpo e sua sexualidade”, explica.

Em junho, o Comitê já havia realizado a identificação do Palácio da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. O espaço abrigou o Departamento de Ordem e Política Social (Dops) na capital gaúcha e é o primeiro prédio público em funcionamento a ser identificado como local de tortura no Brasil. As identificações são realizadas com base no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNH3), que possibilita a identificação do patrimônio público onde foi comprovada a prática de tortura e crimes de violação dos direitos humanos em 1964.

Local de tortura na ditadura militar hoje é canil dentro do Madre Pelletier | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Na memória das mulheres torturadas durante a ditadura estão atos violentos e nomes de agentes que permanecem impunes até hoje | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Por sua vez, o Dopinha, outro espaço de Porto Alegre ligado ao Dops nos tempos de ditadura, deverá abrigar um Museu de Memória e Justiça. A pedido do Comitê Carlos De Ré, o governador Tarso Genro despachou a liberação de investimento em metade dos recursos necessários para reformar o prédio. A outra metade caberá ao governo municipal de Porto Alegre. “O prefeito José Fortunati nos recebeu e se comprometeu com a desapropriação da área e a entrada com os outros 50%”, disse a membro do Comitê Cristiane Rondon. Na próxima segunda-feira (29), o grupo terá uma audiência com a ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário para discutir uma administração compartilhada entre membros do governo, do Comitê e sociedade civil para o futuro museu.

Vítimas da ditadura querem punição dos torturadores

Emoção no reencontro de vítimas e em recordar os fatos do passado | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Apesar da identificação dos locais de tortura e de nutrirem boas expectativas com as revelações da Comissão Nacional da Verdade, as vítimas da ditadura militar desejam a penalização dos torturadores. “Infelizmente eles não serão presos, mas os torturadores que foram anistiados pela Lei de Anistia deveriam ser julgados. Isso é justiça”, diz a ex-presa Martinha. “Uma pessoa com 18 anos ser amarrada e apanhar de sujeitos armados é muita covardia. Eu acredito que deveria haver punição”, disse outra ex-presa Jane Argolo.

“Hoje eles ainda não estão na cadeia. Nós lutamos para que estejam. Não importa as reinterpretações da Lei de Anistia que fazem, não desistiremos. Queremos identificá-los, dar o direito à defesa que eles não nos deram e queremos ver eles cumprindo a devida punição”, defende a filha de uma ex-presa política e membro do Comitê Popular, Marta Cica.


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