Opinião
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5 de outubro de 2012
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22:00

A Porto Alegre que queremos e a cidade que nos oferecem

Por
Sul 21
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Por Alexandre Haubrich

A disputa pela Prefeitura de Porto Alegre vai além dos candidatos e de seus partidos. Tem, na verdade, um foco importante nas coligações formadas para o embate e para um possível governo, assim como tem em diferentes visões sobre a cidade e sobre a sociedade um ponto nevrálgico, ainda que tenha sido debatido de forma rasa durante a campanha do primeiro turno.

Na propaganda de televisão, nos debates e na ascendente campanha de internet, as diferenças entre os projetos de cidade dos sete candidatos foram pouco exploradas e, em uma ânsia de disputarem fatias semelhantes do eleitorado, as candidaturas acabaram por expor mais semelhanças do que diferenças. Mas isso não significa que há, nos pontos fundamentais, na visão estrutural, mais convergência do que divergência. Significa apenas que as campanhas foram formuladas com focos similares, talvez por um erro de cálculo dos seis opositores ao atual prefeito, José Fortunati. Para este, a pasmaceira da campanha e a falta de questionamento concreto ao projeto que vem sendo implantado em Porto Alegre tem feito com que navegue em águas calmas rumo à continuidade de seu mandato.

A candidatura de Fortunati traz duas guinadas à direita: do prefeito e de seu partido. O PDT gaúcho, dividido, está hegemonizado por setores que abandonaram a visão brizolista do trabalhismo como caminho ao socialismo – e essa hegemonia é representada pela aliança eleitoral. Ao mesmo tempo, o próprio Fortunati tem raízes políticas no PT, mas andou à direita, e seu mandato de dois anos à frente da Prefeitura é a demonstração mais palpável disso.

São exemplos dessa linha o ataque à cultura na Cidade Baixa, a remoção sem inclusão da Vila Chocolatão, o encolhimento do Orçamento Participativo (problema herdado da gestão de seis anos de José Fogaça, do PMDB, com o qual Fortunati elegeu-se vice), a manutenção dos aumentos abusivos nas taxas do transporte público sem a realização de novas licitações e o avanço esmagador da privatização (ou concessão a empresas privadas) de espaços públicos, do Largo Glênio Peres aos parques, passando pelo auditório Araújo Vianna e pelo projeto que aponta destino igual para a orla do Guaíba.

Nas diretrizes programáticas apresentadas por Fortunati ao TRE, referências a realizações de prefeituras anteriores, em especial as do PT (Orçamento Participativo, Fórum Social Mundial), ou do governo federal (metrô, Copa do Mundo), todas colocadas ali como se fossem realizações dos últimos anos e da prefeitura. É a mesma linha seguida pelo grande fluxo de inaugurações das últimas semanas, apresentadas como conquistas de todo um mandato, quando, na verdade, estão sendo entregues com grande atraso (caso da Unidade de Pronto-Atendimento da Zona Norte e do Araújo Vianna) e de uma forma que favorece mais determinadas empresas do que o conjunto da população (e o Araújo Vianna também se encaixa nesse item).

A coalizão que defende a reeleição de Fortunati é outro espelho que mira à direita, significando esta mirada a falta de diálogo e de preocupação com as pessoas, com a vida da cidade para além das grandes empresas. Financiada violentamente por empreiteiras, a coligação tem oito partidos, além do PDT: PRB, PP, PTB, PMDB, PTN, PPS, DEM, PMN.

O PP, antigo partido da Ditadura Militar quando seu nome ainda era Arena, transformado atualmente em partido dos latifundiários, debateu até os últimos momentos a quem daria seu questionável apoio. Fortunati acabou levando o partido, mas a principal liderança estadual do ex-Arena, a senadora Ana Amélia Lemos, foi parar no palanque da candidata do PCdoB, Manuela D’Ávila.

Manuela traz um projeto de centro. A candidata carrega uma trajetória de centro-esquerda, mas a coligação, que inclui PHS, PSC e PSD, além do centrista PSB e do PCdoB, que encabeça a chapa, carrega ao centro o corpo da candidatura. Com mandatos de vereadora e deputada marcados por pautas progressistas, como demandas estudantis e de setores LGBT, além de uma preocupação constante com o uso das “novas tecnologias” pela política institucional, Manuela apresentou ao TRE diretrizes programáticas que seguem por esse caminho.

Em sua campanha tem procurado apresentar-se como gestora competente, e é na “melhoria de gestão” que estão os fundamentos dessas diretrizes, com fortes tons de “modernização administrativa”. Seu programa está estruturado em três eixos: “reposicionamento estratégico, modernizar e democratizar a gestão e capital da qualidade de vida”. Entre suas propostas estão a valorização de atividades de “economia criativa”, a descentralização da cidade e a criação de um “Gabinete Digital Municipal”. Tanto nas diretrizes programáticas quanto na campanha são muitas as referências à “novidade” e à “gestão”, ou seja, à “mudança responsável”, “modernização”. “Essa cidade que nós queremos deve ser desenvolvida e conectada, eficiente e sustentável, criativa e inovadora, culta e divertida, aberta e integrada”, diz o documento entregue ao TRE.

O apoio de Ana Amélia Lemos, se reduz as críticas e preconceitos das fatias mais conservadoras do eleitorado, afasta a candidatura de Manuela de uma imagem e de uma projeção de esquerda. Ao longo de sua carreira como comentarista política no maior conglomerado de mídia do Rio Grande do Sul, Ana Amélia sempre atuou como defensora dos latifundiários, sentido sobre o qual continuou atuando nestes dois anos como senadora pelo PP.

A parceria entre Manuela e Ana Amélia não pode ser avaliada sem levarmos em conta o cenário de disputa pelo governo estadual em 2014. O atual governador Tarso Genro deverá ser candidato à reeleição, enfrentando a senadora do PP e, ao que tudo indica, um concorrente do PMDB (Ibsen Pinheiro e Mendes Ribeiro são dois nomes especulados). Mesmo com a tradição recente de polarização entre PMDB e PT (quebrada apenas pela estranha confluência de fatos que levou Yeda Crusius, do PSDB, à vitória em 2006), Ana Amélia Lemos entra na disputa com o apoio dos grandes produtores rurais, com a estrutura do partido que detém o maior número de prefeituras no Rio Grande do Sul, e com o suporte do grupo empresarial que controla a mídia no Estado. Com Manuela eleita prefeita, a senadora pode ter em Porto Alegre mais um espaço de sustentação à sua candidatura ao Piratini. Esse contexto preocupa, apesar dos avanços progressistas de que um mandato de Manuela pode ser capaz.

Caminhando por sobre a linha do espectro político, temos no campo da centro-esquerda a candidatura de Adão Villaverde, com o PT à frente acompanhado de PR, PTC, PV, PPL, PRTB e PT do B. Se é verdade que nacionalmente o projeto petista está enrascado em coligações esdrúxulas e quadros e práticas que abandonaram as pautas sobre as quais nasceu o Partido dos Trabalhadores, em Porto Alegre ainda está montada resistência, ainda que parcial. Villaverde vem tentando superar sua pouca habilidade para “vender-se” como candidato, mas as diretrizes que apresentou ao TRE vão além da política como mercado de consumo. É, para os novos padrões do PT, um projeto de esquerda, que, se não chega ao bom radicalismo do Programa de Governo de Lula em 1988, também não vai à capitulação de 2002.

O projeto apresentado por Villa traz diretrizes à esquerda, com foco interessante na participação popular, com referência até mesmo à possibilidade de plebiscitos. Citações destacadas à construção de “democracia participativa e popular”, e foco na integração com organizações e movimentos sociais e no fortalecimento do serviço público (“nem privatizações, nem concessões ou terceirizações”).

Buscando disputar as mesmas fatias do eleitorado de Fortunati e Manuela, também Villaverde procura se colocar como um bom gestor, e acrescenta a isso sua coincidência partidária com os governos federal e estadual. Tanto Manuela quanto Villaverde, porém, pecam como alternativas de oposição por não terem colocado na linha de frente de suas campanhas a discussão sobre o projeto de cidade que vem sendo levado a cabo pelo atual prefeito.

A campanha toda, por sinal, tem sido de calmaria para Fortunati. Na tentativa de convencer o eleitor, a oposição derrapa em colocar seus candidatos como mercadoria, reproduzindo a lógica que já está posta em Porto Alegre. Se tirar Fortunati da Prefeitura é trocar um projeto por outro semelhante, por que mexer? Apenas para que um gestor melhor assuma? A maior parte dos problemas de Porto Alegre não é de gestão, mas de opção política. Precisamos de mudança nas escolhas políticas, não apenas nas decisões técnicas. O PT e seu candidato têm condições de oferecer esse debate, mas até aqui pouco o fizeram.

São duas candidaturas à esquerda da petista: Roberto Robaina, do PSOL, e Érico Correa, do PSTU. O segundo sai em uma “chapa pura”, com diretrizes de mudança radical e imediatas na forma sobre a qual está estruturada a cidade, com ataque frontal à especulação imobiliária, aos projetos da Copa do Mundo de 2014 e ao uso do transporte público como instrumento de lucro. Os projetos do PSTU são de rompimento estrutural, e dialogam com a perspectiva do PSOL, embora este, representado por Robaina e coligado com o PCB, proponha mudanças mais paulatinas e um caminho menos abrupto, talvez mais dialogado, consciente da necessidade de, junto com as modificações estatais, trabalhar a percepção social como trilha à mudança.

O PSTU não foca sua atuação política no processo eleitoral, tem pouco tempo de televisão, poucos recursos financeiros e, por não ter representação no Congresso Nacional, não tem garantida sua participação nos debates. Tudo isso enfraquece sua candidatura pura, mas não reduz a importância das pautas que propõe.

Robaina, por sua vez, manteve durante toda a campanha o discurso baseado na transferência de recursos públicos para áreas prioritárias e no “combate aos privilégios”, “Corte de 70% de cargos de confiança e redução drásticas das verbas publicitárias aos grandes meios de comunicação. Utilização destes recursos para aumentar a capacidade de investimento nas áreas sociais”, dizem as diretrizes programáticas, que falam ainda em “consultas populares e plebiscitos para que a população decida sobre os principais assuntos da cidade”.

A campanha de Robaina dedicou-se a desconstruir os projetos de seus adversários, o que, somado à falta de tempo de propaganda eleitoral e de espaço na mídia tradicional, fez com que projetos interessantes, presentes em seu programa, ficassem de fora ou com pequeno espaço na divulgação de sua candidatura. É o caso do projeto “Porto Alegre no Guidom”, através do qual, segundo o documento entregue ao TRE, “os ciclistas junto à Prefeitura planejarão as ciclovias, bicicletários e campanhas de incentivo ao ciclismo, fazendo de Porto Alegre um exemplo nacional nesta modalidade de transporte.”

Jocelin Azambuja (PSL / PSDC) e Wambert Di Lorenzo (PSDB / PRP) são os dois candidatos nanicos da direita. Jocelin é um político desconhecido, em um partido desconhecido, mas a leitura de seu programa não deixa dúvidas. Fala em atuação “dentro dos princípios cristãos”, o que vai contra a laicidade do Estado, e a seguir confirma: “A junção do trinômio ‘social-liberal-cristão’ embasa os princípios dessas doutrinas”. Pior: faz uma defesa violenta do empresariado e do Estado mínimo. Chega a falar em “deixar com eles (empresários) a responsabilidade de fazer crescer a nossa cidade e País”. E mais: “Na economia a regra liberal é ainda mais verdadeira, pois quem quiser administrar a economia, certamente não governa. O Estado é mero prestador de serviços públicos e deve se afastar por completo da competição empresarial”.

Wambert é o candidato alçado a essa condição por interferência direta e apaixonada da ex-governadora Yeda Crusius, talvez ela o maior erro que o eleitorado gaúcho já cometeu. O PSDB fez oito anos de governo federal em que implantou políticas neoliberais que enfraqueceram o Estado em favor de empresas multinacionais, e fez quatro anos de governo estadual em que os serviços públicos foram enfraquecidos e a polícia militar usada inúmeras vezes como arma contra a população. É tudo isso o que Wambert representa. Mesmo que ele tente encarnar o anti-petismo puro, na verdade representa o pró-PSDB, algo que o Rio Grande do Sul nunca quis para si, e mais uma vez irá rejeitar.

Durante a campanha circularam informações (ou boatos?) de que haveria pressão de uma corrente do PSDB para que Wambert abandonasse a disputa em favor de Fortunati. Nada seria mais natural. Suas candidaturas representam projetos semelhantes, e estão com Fortunati aliados históricos do PSDB, como PP e DEM. Temos, então, pensando projetos de cidade e sociedade, três grandes blocos de candidaturas: Fortunati / Wambert / Jocelin; Manuela / Villaverde; Robaina / Érico. Manuela e Villaverde trazem candidaturas ainda com algum fôlego para chegar ao segundo turno, e com contradições internas fortes (especialmente no caso das alianças da candidata do PCdoB), mas cujo espaço em um possível mandato poderia ser disputado pela esquerda. Robaina e Érico apresentam ideias obviamente mais à esquerda e, apesar de não terem conseguido alcançar uma base eleitoral realmente significativa, serviram, durante a campanha, para desacomodar o debate – ainda que pudessem tê-lo feito de forma mais efetiva.

O cenário mostrado pelas pesquisas é, portanto, aterrador. Sugere a possibilidade de vitória no primeiro turno de um candidato que montou uma cidade imaginária e a apresentou como real. E, o pior, parece ter convencido uma fatia considerável da população de que essa cidade realmente existe. Em contrapartida, seus adversários não conseguiram debater projetos amplos de cidade, visões de sociedade, e nem sequer conseguiram desmanchar a Pasárgada fortunatiana, belíssima como peça de ficção, mas que não passa de uma frágil cenografia armada para manter algumas empresas privadas administrando Porto Alegre como uma sucursal destinada apenas a gerar lucros para a matriz. Prefeito cenográfico, cidade de papel.


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