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5 de setembro de 2012
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17:30

Política Habitacional em Porto Alegre: cinco eixos estratégicos

Por
Sul 21
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Foto: Arquivo Pessoal

Betânia de Moraes Alfonsin *

A agenda da política habitacional a ser enfrentada no próximo período pelo prefeito ou prefeita municipal que vencer o pleito de outubro passa por cinco eixos estratégicos.

1. Integração entre política urbana e política habitacional

Porto Alegre tem 574.831 domicílios, segundo dados do IBGE (Censo 2010). De acordo com o mesmo Instituto, 48.934 desses domicílios estão vagos no município, vale dizer: quase dez por cento do estoque habitacional do município é constituído por imóveis ociosos, fechados, em muitos casos retidos especulativamente. Quando se pensa em integração da política urbana e habitacional, é necessário pensar não apenas na construção de novas moradias, mas sobretudo é preciso pensar em políticas que exijam dos proprietários destes imóveis que deem a eles adequado aproveitamento, já que o atendimento da função social da propriedade é condição para que a cidade também atenda às suas funções sociais. O Estatuto da Cidade previu a notificação para parcelamento ou edificação compulsórios (no caso de vazios urbanos) e a notificação para utilização compulsória no caso de manutenção de imóveis não utilizados ou subutilizados e estes instrumentos não são aplicados no município há muito tempo. Neste sentido, é evidente que a sustentabilidade da política habitacional precisa pensar no adequado aproveitamento do estoque habitacional disponível no município, e para isto a retomada da aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade para o combate à retenção especulativa de imóveis urbanos em Porto Alegre é medida urgente de justiça social e melhoria da gestão urbana.

2. Retomada dos investimentos em Regularização Fundiária

O Programa Minha Casa, Minha Vida, desenvolvido pelo Governo Federal através do repasse de recursos via Caixa Econômica Federal alavancou a produção de moradias em Porto Alegre. Todavia, implicou na secundarização de programas em desenvolvimento no município e que constituem demandas históricas do Orçamento Participativo, como as intervenções relacionadas à Regularização Fundiária. A retomada das ações e investimentos em regularização fundiária no município de Porto Alegre é fundamental não apenas como medida de justiça social e garantia do direito à cidade para a população que conquistou o direito de permanecer no local ocupado originalmente para fins de moradia, mas também para a credibilidade das ações do DEMHAB, já que a interrupção de projetos leva a uma descrença, por parte da população beneficiária, na palavra dos gestores públicos. Além disto, a desaceleração das ações de regularização fundiária retroalimenta os índices de produção irregular de cidade, que giram hoje em torno de 10% do estoque habitacional do município, segundo os dados do IBGE[1], e montam a mais de 470 áreas irregulares, segundo censo bem mais realista realizado pela Equipe de estudos urbanos do DEMHAB[2]. Vale dizer: de nada adianta a produção de novas unidades sem que as unidades irregularmente produzidas sejam definitivamente integradas à cidade.

3. Critérios para o Programa Minha Casa, Minha Vida

Em relação ao programa Minha Casa, Minha Vida, em que pese o inegável valor do programa, é necessário realizar uma discussão pública sobre os critérios de localização dos empreendimentos, para evitar a periferização do programa e a repetição de erros já bastante bem avaliados na história recente brasileira, como a construção de moradias na “não cidade”, em áreas periféricas e fracamente dotadas de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos. A questão é que hoje a localização desses empreendimentos é deixada basicamente a critério do empreendedor e evidentemente não será a Caixa Econômica Federal o órgão que terá capacidade de avaliar critérios de localização destes empreendimentos. O município de Porto Alegre, como órgão licenciador, tem que ser mais proativo ao aprovar (ou não) os empreendimentos, inclusive através da utilização de gravames de AEIS (Áreas Especiais de Interesse Social) em regiões bem localizadas e servidas de infraestrutura para induzir para estas regiões a produção dos empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha Vida, já que a localização dos mesmos é deixada hoje a critério do empreendedor. Por razões óbvias relacionadas ao funcionamento do mercado imobiliário, estes empreendimentos estão se realizando principalmente em áreas mais periféricas de Porto Alegre, tendo em vista o peso do preço da terra na composição do preço da unidade habitacional. Para evitar o retrocesso, é preciso evitar as tendências segregacionistas do mercado através de mecanismos de planejamento urbano e gestão mais claros e capazes de prevenir os erros cometidos durante o longo ciclo de produção de habitação de interesse social pelo BNH ao tempo da Ditadura Militar.

4. Garantia da observância da normativa internacional relacionada ao direito humano à habitação adequada

As Nações Unidas, através do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, esclareceu[3] os países membros acerca do significado da expressão “direito humano à habitação adequada”. Em que pese o largo tempo decorrido desde a promulgação de tal Comentário, até hoje é bastante comum que o entendimento sobre a política habitacional fique restrito à ideia de “moradia como mero abrigo”. A política habitacional de Porto Alegre e de qualquer cidade brasileira daria um salto de qualidade se adotasse o entendimento expresso pelas Nações Unidas a respeito do que vem a ser “habitação adequada” como parâmetro para suas intervenções. O comentário geral nº 4 diz que são aspectos a serem levados em consideração “em qualquer contexto”, os seguintes: (a) segurança legal da posse; (b) disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura; (c) custo acessível; (d) habitabilidade (e) acessibilidade (entendida como acesso não discriminatório aos programas); (f) localização; (g) adequação cultural. Para que se tenha uma ideia da importância desta normativa internacional, a remoção realizada pelo DEMHAB no caso da Vila Chocolatão, por exemplo, pode ter suprido a necessidade de abrigo daquela população — todavia, no que diz respeito ao critério “localização”, não se pode dizer que a intervenção tenha sido modelo, pois as famílias foram relocalizadas do centro da cidade de Porto Alegre para o limite de Porto Alegre com Viamão, distantes de opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e outras facilidades sociais que tinham anteriormente. Além disto, o Estatuto da Cidade também garante o “direito à cidade sustentável” em uma perspectiva bem mais ampla do que o mero acesso à moradia como “quatro paredes”. Qualquer intervenção de política habitacional tem que ser pensada globalmente, em todas as suas dimensões e possíveis repercussões.

Como uma nota conjuntural, importante no debate eleitoral e na política habitacional que se deseja para o próximo período em Porto Alegre, é preciso exigir dos gestores públicos a garantia de que a preparação de Porto Alegre para a Copa de 2014 não será acompanhada de violações de direitos humanos, especialmente do direito à moradia adequada. Sem dúvida alguma, da mesma maneira que estádios e obras viárias são tratados como prioridades pelos governos, as relocalizações de moradias que se fizerem necessárias às obras estruturais da Copa devem ser tratadas com absoluta prioridade, garantindo o respeito às populações moradoras tradicionais de áreas como a Vila Tronco, por exemplo. Pelo largo tempo das ocupações nesta área da cidade, as famílias teriam o direito a permanecer no local ocupado e, portanto, seu direito à moradia, no que diz respeito à segurança da posse, já está sendo ofendido. Se a relocalização é indispensável, a reparação das famílias deve ser completa, com a oferta de unidades habitacionais na região de origem (Bairro Cristal, Morro Santa Teresa, Vila Cruzeiro) ou com indenizações em valores capazes de fazer frente à aquisição de uma moradia no mercado imobiliário formal de Porto Alegre, em bairros tão bem localizados geográfica e simbolicamente quanto a Vila Tronco e adjacências. Além disto, é importantíssimo garantir instâncias de debate sobre essa intervenção com a população atingida, pois somente assim o direito humano das famílias estará sendo respeitado.

5. Retomada da participação popular na gestão da política habitacional

Como uma última observação, mas não menos importante, ressaltamos a centralidade da retomada da participação popular na gestão da política habitacional em Porto Alegre. O esvaziamento dos espaços institucionais de tomada de decisão nesta área, como o COMATHAB (Conselho Municipal de Acesso à Terra e Habitação), precisa ser urgentemente revertido com uma estratégia clara de reconstituição destes espaços e de empoderamento efetivo do Conselho Municipal de Habitação. Além disto, as intervenções pontuais, como uma relocalização de uma vila, por exemplo, deve ser acompanhada antes, durante e depois da intervenção, por instâncias que garantam a participação efetiva dos moradores concretamente atingidos pela medida. É preciso superar a ideia de “favor”. A gestão democrática de planos, programas e projetos de intervenção urbana é uma diretriz da política urbana preconizada pelo Estatuto da Cidade, e, portanto, é vinculante para as políticas públicas na área de habitação. Somente com a retomada do controle social e a democratização efetiva da gestão é possível enfrentar seriamente a agenda e as questões aqui apontadas como estratégicas para uma política habitacional mais justa, democrática e sustentável em Porto Alegre.

Notas

[1] Segundo dados do Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Porto Alegre tem hoje 56.024 unidades habitacionais em “aglomerados sub-normais”, abrigando 192804 pessoas em 108 assentamentos. Sabe-se, no entanto, que os dados do IBGE são menores que os dados da própria municipalidade para a questão da irregularidade em Porto Alegre, já que pela metodologia utilizada pelo Instituto são contabilizados como “aglomerados subnormais” apenas os assentamentos com 51 unidades habitacionais ou mais e muitas das vilas de Porto Alegre são menores do que isto, “mascarando” o resultado e invisibilizando uma parcela importante da população de baixa renda. Dados disponíveis neste link. Acesso em 30/07/2012.

[2] Levantamento realizado pela Unidade de Pesquisa do Departamento Municipal de Habitação apurou existência de 479 núcleos e vilas irregulares em Porto Alegre, onde estão localizados 74.522 domicílios.

[3] Através do Comentário Geral nº 4, de 1991.

* Betânia de Moraes Alfonsin é jurista e urbanista. Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR- UFRJ, Professora da Faculdade de Direito da FMP e da PUCRS.

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O Sul21 está publicando desde o dia 5 de setembro uma série de artigos sob o tema “A Porto Alegre do Século 21”. Neles, personalidades de notório conhecimento aprofundam a discussão sobre temas centrais como habitação, mobilidade urbana, saneamento, educação, cultura, cidades digitais, saúde, acessibilidade e meio ambiente, oferecendo subsídios para uma reflexão não-alienada sobre as necessidades da capital gaúcha.


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