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10 de setembro de 2012
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08:02

Os pecados mortais do Serviço Secreto alemão (1)

Por
Sul 21
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Quando Gehlen compreendeu que a Segunda Guerra estava perdida, tratou de cuidar da própria sobrevivência

1 – O pecado original

O pecado original do Serviço Secreto alemão chama-se Reinhard Gehlen (1902 – 1979) – na foto, durante a Segunda Guerra Mundial.

O Serviço Secreto alemão está sob investigação. Altos funcionários, inclusive o diretor da agência encarregada de operações internas, já caíram, confrontados com suspeitas ou acusações de  negligência na vigilância de grupos de extrema-direita, ou neonazis, no país. Uma visada sobre a história do serviços de inteligência da Alemanha Ocidental (e inevitavelmente da ex-Oriental, a Stasi) pode ajudar a entender a situação.

A história do Serviço Secreto alemão pós-Segunda Guerra começa durante este conflito, com Reinhard Gehlen. Foi um diligente funcionário do Serviço Secreto Nazista, encarregado da frente leste, ou seja, soviética. Foi muito eficiente. Consta que se tornou o maior especialista no Exército Vermelho, na época, talvez até mais do que o próprio Exército Vermelho.

Mas em meados de 1944 Gehlen já compreendera que a guerra estava perdida. Por isso tratou de cuidar da própria sobrevivência. Teve conhecimento do complô para matar Hitler, que redundou no atentado sem sucesso de 20 de julho de 1944, quando o Conde von Stauffenberg colocou uma bomba no bunker de campo do ditador, na Polônia. Fez vista grossa, mas não se envolveu. Sobreviveu à matança que se seguiu ao atentado. Sobreviveu à guerra e ao regime que servira. Durante meses a fio enterrou, na Áustria, tonéis com cópias e microfilmes dos documentos que produzira e produzia continuamente.

Quando a guerra terminou, fugiu dos soviéticos e entregou-se aos norte-americanos. Com tudo o que sabia. Foi rapidamente reaproveitado. Os tempos eram outros, a Alemanha não era mais a inimiga do Ocidente, o nazismo era coisa do passado, o inimigo agora era a União Soviética. A Guerra Fria começava.

Os americanos também logo compreenderam o valor do homem que lhes chegara às mãos. Ao invés de processarem-no, promoveram-no. Gehlen passou a chefiar um escritório alemão de espionagem sobre a União Soviética, que ganhou o seu nome:  “A Organização Gehlen”. Estabelecida oficialmente em 1946, a partir de 1947 passou a ter apoio da CIA, e tornou-se o principal ponto de referência anti-soviético na Europa Ocidental em reconstrução. Gehlen recrutou – e salvou dos processos cabíveis – centenas de ex-colegas do seu serviço, da SS, da Gestapo e da Wehrmacht – mais de 300. A época dos julgamentos espetaculares de Nuremberg já tinha passado.

Uma das atividades mais profícuas da Organização foi a de interrogar alemães que tinham trabalhado de maneira forçada ou não nas indústrias e instalações soviéticas, como prisioneiros. Com esses interrogatórios, Gehlen e seus “funcionários” levantaram um precioso acervo de informações sobre como funcionava o mundo soviético no dia a dia. Outra atividade foi a de vigiar constantemente grupos pró-comunistas que agiam no Ocidente, em particular na Alemanha, é claro. Mas é bom lembrar que a Alemanha Ocidental, nessa época, era um país ocupado por americanos, britânicos e franceses. Espionar  na Alemanha, naquela época, era espionar no mundo – sem falar nos soviéticos ao lado.

Como isso era feito? Através de infiltrações. Em represália, a Organização tornou-se objeto e vítima também de infiltrações, de simpatizantes comunistas ou simplesmente de agentes duplos do MI-6 britânico, do Serviço Secreto francês e até da CIA. Isso comprometeu, em alguns casos, a sua eficácia, mas não a sua imagem, pois tudo isso fazia parte de um mundo cuidadosamente secreto, assim mantido por todas as partes.

Em 1956 a Organização foi “repassada” – como se fosse um time de futebol – ao governo de Konrad Adenauer, e formou o Bundesnachrichtendienst (Serviço de Informação da República), algo como o nosso antigo SNI, mas voltado para investigações no exterior. Só que investigar o exterior, na Alemanha ocupada, era investigar o interior também. Foi inevitável que o estilo e o padrão da antiga Organização permanecesse intocado e contaminasse também o novo serviço criado (em 1950) para operações internas, o Bundesamt für Verfassungsschutz, ou simplesmente Bundesvervassungsschutz, Agência de Proteção à Constituição. Como essa nova agência se dedicasse sobretudo, no começo, à investigação de grupos de esquerda, de agentes vistos como pró-soviéticos, a tática da infiltração começou a ser largamente utilizada.

Gehlen dirigiu a sua ex-“Organização”, agora agência oficial do governo da Alemanha Ocidental, até 1968. Porém, a partir de 1963, sua atuação começou a ser contestada, com acusações de nepotismo e negligência. Konrad Adenauer se afastou dele. Certamente algo que não lhe facilitou a vida foi não ter previsto, como deveria, a construção do muro de Berlim, pelo menos na época devida (agosto de 1961). Talvez essa falha se deva ao mundo de infiltrações que permeava essas organizações de inteligência, de ambos os lados.

Outro fator que pode ter provocado seu afastamento foi a contestação dos movimentos estudantis de 1968 que, na Alemanha, assumiram como bandeira o afastamento dos quadros oficiais – nos governos federal e regionais, nas universidades – de pessoas antigamente comprometidas com o regime nazista.

Mas, quando se afastou, Gehlen estava longe de alguma imagem melancólica de ostracismo. Tivera a glória de ser provavelmente o único ser humano condecorado por dois regimes – o nazista, com a Cruz de Prata e a Cruz da Ordem da Guerra, e o da República Federal da Alemanha, com a Cruz de Mérito – que, em tese, deveriam ser completamente opostos um ao outro. Recebeu uma aposentadoria em nível ministerial por parte do governo então sediado em Bonn. E consta que recebeu por fora uma pensão da própria CIA.

Ademais, ele passou, mas o seu estilo ficou. “O estilo é o próprio homem”, dizia o setecentista Conde de Buffon. Também é a organização.

(Segue).


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