Opinião
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14 de agosto de 2012
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08:00

Diploma obrigatório para jornalista: soy contra

Por
Sul 21
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Por Carlos Orsi, no Amálgama

Existe ainda um mito de que um aviltamento da profissão de jornalista se seguiu à abolição, pelo STF, do diploma obrigatório.

Parece que o lobby da categoria está forte, e a obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista vai voltar. Como jornalista profissional diplomado, formado, lá se vão quase 20 anos, pela pujante Escola de Comunicações e Artes da insigne Universidade de São Paulo, portador de diploma de bacharel em Comunicação Social habilitado para o exercício do Jornalismo devidamente registrado no Ministério do Trabalho (MTb 23.563, de 17 de novembro de 1993), sou provavelmente um dos supostos “beneficiados” pela volta do diploma obrigatório. O que não me impede de dizer que considero a medida uma asneira de proporções colossais, continentais, quiçá, até, cósmicas.

Para quem é de fora, talvez seja difícil entender as paixões que correm, entre os jornalistas, em torno do tema. Nos sindicatos e outros órgãos de representação da categoria, a necessidade do diploma é um dogma, tão sólido quanto o da virgindade de Maria entre os católicos. Quando um sindicato de jornalistas convoca um “debate sobre a questão do diploma”, o que se tem não é o que o nome sugere (uma discussão a respeito da conveniência, para a sociedade brasileira, da existência do curso superior específico ou da obrigatoriedade burocrática do documento de conclusão), mas uma série furiosa de diatribes sobre como a sacrossanta obrigatoriedade deve ser mantida a qualquer custo.

Antes de prosseguir, devo confessar que sempre desconfiei de regulamentações profissionais. Sistemas criados sob o pretexto de proteger a sociedade em geral dos incompetentes e dos charlatões quase que inevitavelmente acabam fazendo o contrário: protegendo os incompetentes e charlatões contra a sociedade em geral.

Até acho que, em alguns casos, a regulamentação é um mal necessário para dar algumas garantias mínimas à sociedade — é reconfortante, para dizer o mínimo, poder imaginar que o médico que consultamos familiarizou-se com os rudimentos da anatomia humana, ou que a casa em que moramos foi projetada com algum respeito às leis da Física — mas o fato de alguém ser portador de um diploma de Jornalismo garante o quê, exatamente? Que se sabe conjugar o verbo “haver”? Nem isso.

A exigência do diploma de Jornalismo nunca funcionou como filtro de qualidade. Ela só criava dificuldades artificiais que serviam para alimentar um pujante mercado de facilidades — no caso, faculdades meia-boca que descarregavam semianalfabetos diplomados no mercado à taxa de centenas a cada ano. Existe ainda um mito de que um aviltamento da profissão de jornalista se seguiu à abolição, pelo STF, do diploma obrigatório. Esse “aviltamento” pode ser interpretado de duas formas — do profissional (agora “qualquer um” pode ser jornalista) ou das condições de trabalho (agora os patrões podem “fazer o que quiserem” com os profissionais). Eis aí dois argumentos que, sério, fazem-me rir.

Primeiro, o do “qualquer um”: tendo trabalhado mais de 15 anos na profissão antes do fim do diploma obrigatório, posso confirmar que a proporção de semianalfabetos nas redações não aumentou. A única diferença é que, antes, eram todos semianalfabetos com diploma. Segundo, o aviltamento pelos patrões: redações cheias de moleques entusiasmados dispostos a trabalhar por uns trocados para o busão e pela adrenalina de ver o nome no alto da página, deixando-se explorar imbecilmente em jornadas desumanas de 12 horas ou mais, não foram inventadas com o fim do diploma obrigatório. Eu sei, porque fui um desses moleques, assim como boa parte dos meus colegas (diplomados) de geração. A única diferença, hoje, é que os jovens não são, necessariamente, estudantes de jornalismo. Grande coisa.

O jornalismo só deixará de ser uma profissão predatória e aviltada quando os jornalistas criarem tutano, e para isso o diploma é irrelevante. Tenho dificuldade em entender como o mesmo tipo de cara que peita uma tropa de jagunços em Rondônia para escrever sobre trabalho escravo depois se caga de medo do patrão, na hora de contemplar a possibilidade de fazer greve, ou de se recusar a cobrir férias de graça. Mas isso é problema para psicoterapeuta, coisa que diploma nenhum resolve.

Existe, claro, a possibilidade de que o diploma funcione como reserva de mercado: inútil para evitar a contratação de analfabetos e invertebrados, ao menos limitaria o número de analfabetos e invertebrados disponíveis no mercado, o que tende a fazer subir o preço da unidade. Mas essa é uma justificativa mesquinha, que interessa apenas à banda medíocre da corporação. E subestima a pressão de mercado por mais (e piores) faculdades.

Por fim: é perfeitamente concebível que um curso de jornalismo em nível de bacharelado seja capaz de pegar um jovem vocacionado para a área e, a partir dele, oferecer ao mercado e à sociedade um profissional melhor do que esse mesmo jovem seria, se tivesse cursado alguma outra coisa, ou mesmo se não tivesse cursado nada. Desde a discussão crítica do papel da comunicação de massa na civilização contemporânea — para criar um profissional consciente do poder da arma que tem nas mãos — até a instrução em coisas comezinhas como lógica e pensamento crítico, passando por uma boa bateria de disciplinas de outras áreas, como economia, ciências, artes; até a experiência do fazer jornalístico sob a orientação didática de pensadores da área e de profissionais tarimbados.

Mas o diploma obrigatório não estimula a criação de cursos assim, muito antes pelo contrário: o que a imposição cartorial faz é estimular o surgimento de lojas de diploma, mimeógrafos de títulos mais preocupados em explorar brechas no sistema de credenciamento do MEC do que em formar bons profissionais.

O diploma obrigatório é um erro, e o tão criticado fim da obrigatoriedade não passa de um espantalho, um bode expiatório para mazelas que são muito anteriores à abolição — e que não serão resolvidas, nem mesmo mitigadas, com a volta do carimbo burocrático.

Carlos Orsi é jornalista e escritor. De 2005 a 2010, foi editor de Ciência do site do Estadão. Autor, entre outros, dos romances Guerra justa (2010) e As dez torres de sangue (2012), e de O livro dos milagres: A ciência por trás das curas pela fé, das relíquias sagradas e dos exorcismos (2011).


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