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27 de junho de 2012
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20:32

Reintegração de posse em loteamento expõe o problema da falta de moradia digna

Por
Sul 21
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Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Felipe Prestes

O cenário da reintegração de posse do Loteamento Chico Mendes, em Cachoeirinha, é desolador. São móveis, brinquedos e objetos pessoais sendo socados na caçamba de caminhões e casas que antes serviam de abrigo para pessoas ficando vazias, sob o olhar de enorme contingente de policiais. A reportagem do Sul21 foi até a obra do PAC na tarde desta terça-feira (26) e ouviu histórias de pessoas que, tendo razão ou não ao ocuparem aquelas casas, expõem o problema da falta de moradia digna no país.

A ocupação começou depois de um temporal que atingiu moradores vizinhos à obra no dia 30 de novembro do ano passado. Os atingidos pela chuva moravam próximos a linhas de transmissão de energia, ou, como chamam, “nas antenas”. O temporal não apenas destelhou casas, mas causou riscos aos moradores, devido ao rompimento de fios de alta tensão.

Pessoas que vivem em áreas de risco em vários bairros de Cachoeirinha já estão cadastradas desde 2005 para ganharem moradia. A obra do Loteamento Chico Mendes, segundo o site do PAC 2, deveria ter investimentos desde 2007, mas as obras tiveram início em 2010. Os atingidos pela chuva, que moravam próximos ao loteamento, já viam há um tempo as casas dando sopa e resolveram ocupá-las.

A notícia da ocupação atraiu pessoas de outras localidades de Cachoeirinha e de Gravataí, município vizinho, que suavam para pagar aluguel ou moravam em casas precárias. Em pouco tempo, as 284 casas estavam ocupadas. Havia armazéns, manicures e açougues no loteamento, até a semana passada, quando se intensificaram as pressões para que os moradores deixassem o local.

Cristiane, sem saber para onde ir | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Sinto que perdi a dignidade”, diz Cristiane

Ao adentrar por uma porteira que dá passagem ao loteamento, policiais com armamento pesado esclarecem: não é possível entrar de carro. Apesar disto, subindo a pé uma ladeira de chão batido percebe-se logo que não há conflito. Nem poderia haver. São quase dois policiais para cada família. Foram mobilizados 475 policiais militares e 66 viaturas para acompanhar a Justiça no cumprimento da determinação judicial que deve durar dois dias. Em um local que deve se tornar a creche do condomínio há centenas de pães, numa cozinha improvisada e um local para que todo o contingente policial faça as refeições e descanse.

Os brigadianos apenas observam tudo, trafegam pelas ruas do condomínio de caminhonetes ou a cavalo. Um deles, com uma prancheta na mão, controla o carregamento dos pertences, que é feito pela Prefeitura de Cachoeirinha. Durante a noite de segunda para terça, houve o que parece ser o único incidente. Um morador ameaçou botar fogo em casas e na creche, a Brigada Militar foi acionada e ele “levou um pauzão”, embora a corporação tenha dito que não houve nenhum incidente.

Quem conta o que passou à noite é um grupo de mulheres que fuma sem parar, conversa, gesticula, chora, à espera de uma resposta. Encontramos Cristiane e Rose na primeira esquina do loteamento. A reintegração de posse já estava em curso e elas ainda estavam sem saber para onde ir. As assistentes sociais da Prefeitura estavam elaborando uma lista de pessoas com vulnerabilidade social, que irão ganhar um aluguel social no valor de R$ 250, por seis meses, prorrogáveis por mais seis. Mas até o final da tarde de terça, não havia sido divulgado quem eram essas pessoas

Rose e Cristiane já haviam enviado seus móveis, amontoando-os na casa de amigos e parentes. “A gente vai ficar até ter para onde sair”, avisa Rose, acompanhada por um filho. Cristiane deixou seus quatro filhos, que têm entre 3 e 12 anos, na casa da irmã, em Canoas. A mãe teve que vir de Farroupilha, na Serra, para cuidar das crianças. “Eu tirei minhas crianças daqui desde que isto virou um inferno”, diz. O ‘inferno’, segundo as moradoras do loteamento, foram as ameaças psicológicas, que teriam partido da Prefeitura. “Disseram até que quem ficasse aqui e perder a guarda de seus filhos”, conta uma delas.

Cristiane foi uma das moradoras atingidas pelo temporal de novembro. Ela diz que está cadastrada há cinco anos para ganhar moradia. Teria sido, inclusive, iludida pela Prefeitura de que ficaria na casa que ocupou. “Me disseram: ‘pode fazer teu murinho, que tu vai ficar’”, diz. Afirma também que não recebeu ajuda quando ocorreu o temporal. “Meu roupeiro quebrou, meu armário quebrou, tudo quebrou! Eu sinto que perdi a dignidade. A gente não é bicho”. A empregada doméstica não tem para onde ir com os quatro filhos. Os familiares não podem ficar por muito tempo com tanta gente em casa. “Daqui a pouco, minha mãe vai ter que voltar para Farroupilha, minha irmã não pode cuidar delas. Eu não sei pra onde ir”, diz. O pai das crianças é dependente de crack e nunca pagou um tostão de pensão. “Estou passando por essa situação aqui sozinha”.

Moradores deixam o loteamento, observados por dezenas de policiais | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Casal havia comprado casa no loteamento e agora está sem nada

A Prefeitura estima que cerca de 60 famílias serão consideradas vulneráveis, com direito a aluguel social. A assistente social Patrícia Nicolão conta que a maioria das pessoas que já deixaram o loteamento nem solicitou ajuda, que muitas delas contavam com serviços como televisão a cabo e pagavam aluguel anteriormente. Um dos critérios para não dar aluguel social é se a pessoa pagava aluguel antes de ocupar uma casa no Chico Mendes. A Prefeitura considera que essas pessoas têm condições de voltar a pagar aluguel.

Gilberto dos Santos está com três crianças, uma delas de colo, em frente à casa que deve deixar em algumas horas. Diferentemente de outros moradores, ele não se deu ao trabalho de ir desmontando os móveis para facilitar a mudança. “Vou pedir para botarem minhas coisas no meio da rua”.

O pedreiro, que vive de trabalhos temporários, pagava R$ 400 de aluguel para morar em Cachoeirinha, até que ficou sabendo da ocupação do loteamento. Ele havia vendido a moto, ferramentas, tudo o que tinha de supérfluo para pagar aquele valor de aluguel. “Eu estava a ponto de abandonar os meus filhos, quando apareceu esta boca. Agora vêm aqui e querem dar uma rasteira na gente”, diz.

Outro critério utilizado pela Prefeitura é que pessoas que não moravam no município de Cachoeirinha antes de chegarem ao loteamento não serão contempladas com auxílio, a não ser o transporte dos pertences, que será feito em um raio de até 15 quilômetros, possibilitando que antigos moradores de Gravataí voltem para lá.

É o caso da família de Cristiano Cardoso, que vendeu sua casa em Gravataí e comprou uma no Loteamento Chico Mendes. A reportagem viu quando a esposa dele relatou o drama a uma assistente social.

— Tu compraste uma coisa que não era tua. A gente não pode arcar com isto – explicou a assistente.

Mais tarde, conversamos com Cristiano. Ele contou que estava desempregado e vendeu sua casa em Gravataí para comprar uma mais barata e ficar com algum dinheiro para sustentar a família até arrumar novo trabalho. Encontrou no Loteamento Chico Mendes. Hoje, ele trabalha operando máquina que faz sacolas, mas perdeu a nova casa (periga também perder o emprego, já não tem ido devido à reintegração de posse). Uma “líder comunitária” chamada Paula teria lhe garantido que, por ela estar cadastrada entre os moradores de áreas de risco, não havia risco de perder a casa. Dizem que Paula fugiu para São Paulo. “Paguei R$ 5 mil, eu tenho recibos. Até uns dias atrás, ela estava me cobrando os R$ 200 que faltavam”.

“Deus não dorme”, diz Cristiano | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Também ouvimos a história de outro Cristiano, um jovem atarracado, que gesticulava e falava sem parar. “Tá errado isto”. “Não tá certo isto”. “O senhor acha certo isto?”. Evangélico, com uma pulseira “Deus é Fiel” em cada braço, Cristiano também repetia: “Deus não dorme”, ao criticar a ação da Prefeitura e da Brigada Militar. Ele não é morador da área, mas seus pais, idosos, que viviam onde os fios de alta tensão arrebentaram, foram para o loteamento. Por serem cadastrados, acreditaram que ficariam na casa, gastaram o dinheiro em melhorias no imóvel, como também fizeram outras famílias.

“Minha mãe vendeu a casa dela para ficar aqui, para investir nesta aqui. Agora vai ficar na rua? Vieram aqui e disseram que iam ficar nas casas. Eles só não vão ficar sem nada, porque nós vamos ajudar”, diz o operário de uma fábrica de telas, que ganha R$ 180 por semana, cria quatro filhos e agora vai ter que arrumar um lugar para os pais. Ele também ficou contrariado com a abordagem da polícia na casa dos pais. “Até querer bater no meu pai quiseram. Logo a polícia, que era para zelar pelas pessoas. Se eles chegassem a bater no meu pai, eu ia perder minha benção por tão pouco”. Na casa vazia, Cristiano os familiares deram as mãos e rezaram antes de partir.

Bem ao fundo do loteamento, um grupo de pessoas sentadas em cadeiras na rua lamenta a reintegração, em frente ao armazém de Jane, cheio de refrigeradores vazios. Ela havia subido para expandir os negócios. Tinha um empreendimento na área de risco, que deixou com o irmão. Deu mais sorte que outras pessoas que deixaram suas antigas casas serem invadidas, ou as venderam. Vai poder voltar para sua casa anterior, porque a família ficou cuidando.

Uma vizinha de ocupação lamenta: “Por que deixaram as pessoas tanto tempo aqui? Muita gente fez forro, piso, arrumou as telhas”, questiona. Como Cristiane, este grupo de moradores relata não terem sido auxiliados quando ocorreu um temporal. Um deles afirma que a única ajuda foi da Defesa Civil, que chegou ao local com lonas, sugerindo que fossem colocadas nos lugares onde não houvesse mais telhado. O jovem Ismael constata: “Diz a Constituição que todo mundo tem direito à moradia no Brasil, mas não é verdade”.

Prefeitura promete construir apartamento para contemplar mais 500 pessoas | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Prefeitura acena com apartamentos para contemplar a todos

A Prefeitura de Cachoeirinha promete, além da conclusão do Loteamento Chico Mendes, ainda em 2012, fazer apartamentos para 500 pessoas e regularização fundiária em outras áreas. São 284 casas no Chico Mendes, para pessoas da Vila Olaria, às margens da BR-290, que sofre com alagamentos, Vila Navegantes, também em área de risco, além das pessoas “das antenas”. Inicialmente, o Chico Mendes teria mais de 400 casas, contemplando mais as pessoas das redondezas, da Vila Canarinho. Para esta área, o secretário de Habitação, André Lima, promete regularização fundiária, com obras de infraestrutura.

Os apartamentos devem sair também com recursos da Caixa Econômica Federal, como o loteamento Chico Mendes, via Ministério das Cidades. Vários moradores disseram que a Prefeitura prometeu construí-los em um ano, mas se mostraram descrentes com este prazo. “Se não concluíram até agora o loteamento”, questionavam.

André Lima acredita que muitos moradores foram usados como massa de manobra por “políticos inescrupulosos”. Ele defende também os critérios adotados pela administração para auxiliar as pessoas, como o de não ajudar pessoas oriundas de municípios vizinhos. “O programa habitacional e os benefícios são para os moradores de Cachoeirinha. A demanda por moradia é um direito constitucional, mas é obrigação da União e do Governo do Estado. Cachoeirinha, que já tem problemas de habitação que chegue, e faz projetos para atender, não pode ser prejudicada pela inércia nos arredores”, diz.

Também defende o valor de R$ 250 para aluguel social, uma das queixas dos moradores. “Se você fizer uma pesquisa nas residências similares, aqui nas redondezas, você vai ver que o número está certo”. Apesar das incertezas, Lima garante que no dia 5 de julho a primeira parcela do aluguel social estará disponibilizada.

Quanto às pessoas que compraram casas no loteamento, André Lima acredita que até podem ter agido de boa-fé, mas que a maior parte delas sabia os riscos que corria. “Podem ter existido pessoas que foram vítimas, de boa-fé. Mas ninguém, à luz da racionalidade compra uma casa sem saber que não tem que pegar documento, ir ao cartório. A grande maioria sabia o risco que estava assumindo”, opina.

Jane e os refrigeradores | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Tem dono”, Gilberto havia grafado em frente à casa | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A família reza antes de deixar o loteamento, e os meninos riem da presença do fotógrafo | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Homens do Batalhão de Operações Especiais jogam conversa fora em um galpão de frente para as casas | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

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