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5 de junho de 2012
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09:17

As marchas em Porto Alegre: deslocamentos

Por
Sul 21
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Por Sandra Djambolakdjian Torossian

Acordei de um longo período de sono profundo ao estilo do conto que tanto habitou minha imaginação infantil. Não houve beijo de príncipe. A maçã? Uma triste vivência que me levou ao adormecimento.

Surge, no momento de acordar, a desconfortável lembrança dessa experiência, hoje distante e diluída. As imagens vão se apagando e misturam-se com os sons e o colorido que vem neste momento da rua.

Lembro do acontecido e então não me lembro mais de nada. Talvez somente do meu corpo caindo nesse sono profundo.

Acordei, agora, com a viva imagem do fechamento do projeto que construíamos com meus bons colegas: uma clínica para usuários de drogas. Chamava-se COTE. Era a década de 90. A sigla significava Comunidade Terapêutica. Longe se funcionar como as comunidades terapêuticas que hoje se conhecem, acolhia as pessoas de modo semelhante aos CAPS (centros de atenção psicossocial). Não havia CAPS organizados nessa época.

Soa-me cansativo descrever aqui todo o processo pelo qual passamos. Somente destacar que as pessoas que usavam drogas nos ensinaram não haver modelos únicos de escuta e de intervenção. Entre todos aprendemos que cada um tem o seu tempo e seu modo de se curar. Foi por isso que lutamos, por modelos de atendimento que priorizassem a singularidade do trabalho. Mas naquela época, perdemos a batalha institucional.

Não há príncipes que me acordem, mas me levanto lentamente, ainda adormecida, e vou à janela. Ouço um rumor distante e o céu coberto de um estranho colorido. É a marcha da maconha. Está acontecendo neste momento.

Em que tempo estamos? O que aconteceu durante meu período de sono? Ouço vozes que entoam uma luta pela legalização da maconha. Ouço outras que criticam essa iniciativa. Ainda adormecida, tento compreender.

Quem me ajuda nessa busca sugere-me para procurar no Google. Preciso me acostumar a todas estas novas ferramentas virtuais. Entro então no site dessa marcha e leio: “o Coletivo Marcha da Maconha Brasil reafirma que suas atividades não têm a intenção de fazer apologia à maconha ou ao seu uso, nem incentivar qualquer tipo de atividade criminosa. As atividades do Coletivo respeitam não só o direito à livre manifestação de idéias e opiniões, mas também os limites legais desse e de outros direitos”.

Algo mudou nesse tempo em que adormeci, penso. Fazer uma passeata com essa consigna é algo muito novo para mim. Pergunto-me, por que “marcha”? Lembro novamente da minha infância. As marchas eram sempre militares.

Vagas lembranças dos momentos em que tentava acordar. Alguns rostos das pessoas com as quais trabalhávamos que me diziam, sou redutor de danos agora, ou sou agente comunitário de saúde. Estava ainda sonhando? Os rostos pareciam tão reais. Hoje sei que não sonhei.

A redução de danos era uma estratégia que iniciava no momento em que adormeci, e da qual fomos entusiastas apoiadores. Um trabalho que em primeiro lugar respeitava o sujeito que usava drogas, respeitava suas opções, suas limitações e principalmente seu tempo. Não visava que as pessoas deixassem de usar drogas, mas que pudessem criar estratégias de proteção aos riscos decorrentes desse uso. Na época, o risco principal era a aquisição do vírus da AIDS.

Continuo minha pesquisa. Vejo o nome de uma nova droga: o crack. Um novo nome em roupas tão antigas. Faço o jogo de trocar a palavra crack pela droga que naquela época achava-se mais “perigosa”. E percebo que nada mudou, o discurso é o mesmo.

Leio anunciada no jornal, uma nova marcha, marcada para amanhã. A marcha das vadias. Volto à minha tentativa de atualização e encontro o seguinte: “a Marcha das Vadias iniciou-se em Toronto e desde então tornou-se um movimento internacional. Protesta contra a crença de que as mulheres são vítimas de estupro devido as suas vestimentas. Isso pela observação realizada por um policial canadense de que as mulheres evitem se vestirem como vadias, para não serem vítimas”

Estou recém acordando. É muita informação nova para mim. Mas uma onda de felicidade vai tomando conta deste momento. Sei dizer por que.

Na época em que adormeci, iniciava-se a pensar que havia varias possibilidades de lidar com os usos de drogas. E abusos sexuais vinham à tona. Ainda muito timidamente.

Meus olhos se fecham e meu corpo cai no mesmo ritmo em que se fecham as cortinas do projeto no qual trabalhava. Uma estratégia de silenciamento. Uma tentativa de produção de mutismo.

Hoje só posso comemorar. Sem a necessidade de manifestar-se contra ou a favor desses movimentos, o importante é que essas temáticas apareçam. Que possamos falar. Que tenhamos a opção de discutir as diferentes opções e posições.

Uma das coisas que a Psicanálise nos ensina é que quem cala, adoece. Agradeço a todos os colegas e usuários que me ensinaram a escutá-los e a todas as pessoas que continuaram na batalha enquanto eu adormeci. Aos que deslocaram o sentido do termo “marcha”: do militarismo para a abertura de espaços de expressão

Sandra Djambolakdjian Torossian é psicanalista. Membro da APPOA. Profa. do Instituto de Psicologia da UFRGS/ Departamento de Psicanálise e Psicopatologia.


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