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11 de junho de 2012
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11:40

A Morada do Ser

Por
Sul 21
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“Não é trivial que 21 cientistas de várias partes do mundo, muitos deles com um passado de importantes responsabilidades governamentais, iniciem um manifesto com a célebre frase de Luther King: nós temos um sonho. A civilização contemporânea vive a explosiva combinação de evolução tecnológica rápida e evolução ética e social lenta. Essas são apenas algumas das ideias expressas pelos ganhadores de uma espécie de Nobel do Meio Ambiente (O Prêmio Planeta Azul, que existe desde a Rio-92). Apoiado em ciência, o documento denuncia o ‘mito do crescimento econômico perpétuo adotado entusiasticamente por políticos e economistas para evitar decisões difíceis ”. (Ricardo Abramovay – FSP, 27/3, Tendências e Debates)

 

E a literatura, mais que avenida ou praça
por onde cavalga a glória, é um monumento,
sim, de dúbia estória: granito e rima,
alegoria ao vento, lugar onde carentes
e arrogantes
cravamos nosso nome de turista:
-estive aqui, desamado,
riscando a pedra e o tempo
expondo meu sangue e nome
com o coração trespassado. (
Affonso Romano de Sant’Anna in Ferida Exposta ao Tempo)

 

 “Palavras sempre sabem o que querem” . (Adriana Falcão , Pequeno Dicionário de Palavras ao Vento)

 

Daqui a pouco abrir-se-á a Conferência Rio+20, numa tentativa de avaliar realizações, frustrações e até retrocessos relativos à Eco-92, também sob os auspícios da ONU , na qual as consagrou o conceito de sustentabilidade, como uma síntese da sagrada tríade : eficiência (econômica), justiça (social) e conservação (recursos naturais).

Pela definição original, economia verde é a que pode gerar um simultâneo triplo dividendo:melhoria do bem-estar e redução das desigualdades sem aumento da pegada ecológica.”

(José Eli da Veiga – A ruptura necessária para outra economia – Valor, de S. Paulo)

 

Haverá mais choro do que regozijos. Mas ao final alguém dirá: “A luta continua…! We have a dream!” E nova Conferência será marcada…

Nem tudo, porém, são lágrimas.

(… ) “documento da consultoria KPMG divulgado recentemente mostra que cada dólar do PIB global de 2011 foi obtido com 21% a menos de emissões de gases de efeito estufa e 23% a menos de materiais que em 1990. É um progresso extraordinário, que mostra o potencial da economia verde.”

Ricardo Abramovay – FSP 27 março 2012

 

Mas enquanto damos um passo à frente , retrocedemos dois, em razão do crescimento da população, da produção e do consumo, particularmente, nos BRICs:

No entanto, a produção e o consumo aumentaram tanto que, apesar dessa queda por unidade de produto, a extração global de materiais da superfície terrestre se elevou, nos últimos vinte anos, 41%. As emissões aumentaram 39%.”

Ricardo Abramovay – Idem

Parece que não temos saída. O planeta voa em direção à sua auto-consumação. Resta-nos, entretanto, a ética da resistência ou a estética da existência através do discurso.

A propósito destas alternativas, dia 10 de junho celebrou-se o Dia da Língua Portuguesa, data da morte de Luiz de Camões, “Pai da Língua”, autor de “Os Lusíadas”, em 1589. É com a língua que resistimos e existimos como espécie. E que nos diferenciamos na Babel de povos distintos. O próprio português do Brasil, distanciando-se do lusitano, é um amálgama do poder colonial com a malemolência tropical, obrigada, por duas vezes, a discriminar o tupi, amplamente falado no território até o final do século XVIII: Pelo Marquês do Pombal, em 17 de agosto de 1758, e por Dom João VI, em 1808. A língua é, de resto, nossa primeira prisão, nas malhas da razão que a própria razão desconhece; mas é também, nossa única possibilidade de alforria, pelo exercício da liberdade. Ou aquilo que Nilton Bonder chama de Imoralidade da Alma

Em 1968, por exemplo, às vésperas do AI-5, uma canção, de Geraldo Vandré, sintetizou este poder da língua, ao ser interpretada nas eliminatórias por ele próprio no III Festival Internacional da Canção, transformando-se no maior hino de repúdio à ditadura militar: “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores” ou “Caminhando“. Até hoje, para quem viveu, mesmo de longe, aqueles momentos, não há como sufocar à forte emoção que evoca e que bem demonstra o importante papel da cultura, em seu vasto espectro, na redemocratização do país, independentemente do grande enigma que Vandré ainda representa em sua poética solidão.(É patética sua fala, mas digna de respeito, tanto pelo personagem humano, como pelo gênio artístico ineludível, na recente entrevista concedida a Geneton de Moraes Neto, na GloboNews):

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção…

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer…(2x)

Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão…

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer…(2x)

Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição:
De morrer pela pátria
E viver sem razão…

Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora”

 

Lamentavelmente, os comentaristas da grande mídia obnubilaram a data da língua, preferindo as estatísticas da economia, no melhor estilo da velha tradição, tão condenada pelos verdes: a maldição do PIB. Mas se a moeda forte nos mercados globais não é o real; se a tecnologia, até mesmo do provecto automóvel “nacional” , vem de fora; e se a economia está se desindustrializando, sob o fascínio da exportação de commodities que nos aferra à matriz colonial, tão condenada por Caio Prado Jr., desde seus primeiros escritos econômicos da década de 30 do século passado, o vernáculo é nosso. Fernando Pessoa, Poeta Maior da língua, ia mais longe. A língua, para ele se confundia com a própria pátria, no melhor estilo heideggeriano, para quem a palavra é a morada do ser:

As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem sequer mental ou de sonho – , transmudou-se o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramos ao vento , num delírio passivo de coisa movida. (…)

Não tenho sentimento político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enjoa independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da trasliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

(Fernando Pessoa – Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Lisboa, Ática, 1982)

Mauro Santayana, decano do jornalismo brasileiro, não vai tão longe. Mas defende a língua escrita como fundamento da soberania e tem uma posição de defesa intransigente da pureza do idioma:

Demolir a linguagem é demolir o homem. Quando se trata de política de Estado, é crime contra o povo.”

(Mauro Santayana, Linguagem e Soberania)

Mais do que morada, pátria e essência da soberania de um povo: A linguagem escrita é um momento do processo civilizatório que potencia a comunicação humana elevando-a culturalmente. A importância da Grécia Antiga consistiu precisamente no fato de que foi a simplificação da sua escrita , de base fonética, mais avançada do que as paralelas, que proporcionou uma inédita sinergia da inteligência da época naquela região, culminando no requinte do helenismo. E, mesmo sucumbindo ao poder de Roma, foi esta cultura que forjou os valores fundamentais da cultura ocidental, demonstrando o poder da palavra trasliterada na “última flor do Lácio”:

Língua portuguesa

Olavo Bilac


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

( “Poesias”, Livraria Francisco Alves – Rio de Janeiro, 1964, pág. 262)

É pelas palavras escritas e pela língua falada que nos identificamos como um povo no seu cotidiano. Por elas nos eternizaremos como cultura, sendo, portanto nossa maior riqueza, aquela que se projeta como mito. Podemos não comer palavras, no sentido literal, nem chegar com elas, literalmente, às estrelas. Para tanto, farse-ão indispensáveis a boa matemática, a física e a tecnologia. Mas pela palavra dizemos do nosso espanto e descobrimos o logon da fina teia de Ariadne. E pela palavra cantamos nossos sentimentos, suportando a dor e revalorizando a existência. E quando a palavra corta, abre-se o silêncio que grita:

“A última palavra é a palavra do poeta; a última palavra é a que fica.

A última palavra de Hamlet:

O resto é silêncio.

A última palavra de Júlio César:

Até tu, Brutus?

A última palavra de Jesus Cristo:

Meu pai, meu pai, por que me abandonaste?

A última palavra de Goethe:

Mais luz!

A última palavra de Booth, assassino de Lincoln:

Inútil, inútil…

E a última palavra de Prometeu:

Resisto!”

(José Antonio Küller – Liberdade, Liberdade)


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