Opinião
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11 de maio de 2012
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13:21

O cinema fantástico e a urgência do real

Por
Sul 21
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Por Gabriel Cid de Garcia

Há sete anos, Porto Alegre sediou o primeiro festival de cinema no país dedicado ao gênero fantástico. Era o nascimento do festival que viria a ser chamado de Fantaspoa, o Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre. Atualmente em sua oitava edição, o Fantaspoa hoje se destaca como o maior festival voltado ao cinema de gênero não só do país como da América Latina. Nestes anos de existência, o festival já promoveu diversas mostras, debates e cursos, tendo recebido vários convidados ilustres, dentre diretores consagrados e estreantes, tornando-se um espaço de celebração e trocas entre espectadores, realizadores, estudiosos e admiradores do cinema fantástico em geral.

Nesta edição, que começou no dia 4 e vai até o dia 20 de maio, o Fantaspoa recebe mais de trinta convidados, dentre os quais dois diretores que marcaram o cinema de horror dos E.U.A.: David Schmoeller – de Puppetmaster (1989) – e Stuart Gordon – de Reanimator (1985). Homenageados com uma retrospectiva, ambos também participarão de sessões comentadas ao longo do festival. Um dos grandes méritos do Fantaspoa é oferecer um espaço alternativo ao limitado circuito comercial, com destaque para a oportunidade de se assistir inclusive a filmes brasileiros que dificilmente encontraríamos em cartaz. É o caso do filme Nervo craniano zero (2012), de Paulo Biscaia Filho, que abriu o festival em première mundial. A procura foi tão intensa que foi organizada uma sessão extra.

Abarcando em geral filmes convencionalmente associados ao horror, à ficção científica e à fantasia – assim como demais produções a eles associados –, o Fantaspoa é ao mesmo tempo incentivador e testemunha de um crescimento de interesse no gênero, fruto do fascínio que cada vez mais exerce nos espectadores. Embora aquilo que chamamos de cinema fantástico tenha se constituído, ao longo dos anos, por meio de um deslocamento em relação aos gêneros consagrados do cinema, suas origens remontam a um período anterior ao cinematógrafo. De fato, pode-se dizer que certos vetores que atuaram na própria gênese do cinema se aliam ao universo do fantástico: técnicas envolvendo a projeção de imagens, por exemplo, foram utilizadas por ilusionistas e prestidigitadores em espetáculos populares que evocavam o sobrenatural a partir de ilusões de ótica, provocando ao mesmo tempo o maravilhamento e o medo nos espectadores.

Como pensar o fascínio que o cinema fantástico exerce? Quais as propriedades responsáveis por transformar certos filmes em verdadeiros objetos de culto? Uma forma de pensar o interesse pelas produções do gênero fantástico pode ser referida à possibilidade de promoverem, de saída, uma subversão das leis gerais do mundo e da vida, confundindo o possível e o impossível. Há pelo menos três séculos a literatura vem desenvolvendo com maior intensidade os temas fantásticos. O ideal de progresso científico, no século XIX, trazendo com ele a industrialização e a promessa de uma apreensão objetiva do real, curiosamente se pôs ao lado da busca pelo espanto e pela perplexidade na ficção, impulsionada no século XX pela potência fabuladora das imagens em movimento. O aparato do cinematógrafo permitiria, enquanto promessa técnica, uma apreensão mais objetiva da realidade. No entanto, tão logo inventado, foi utilizado para subverter o real e a mesma objetividade que seu uso poderia dar acesso. Como exemplo, podemos lembrar os filmes fantásticos de Georges Méliès, ele mesmo um ilusionista.

Os elementos fantásticos de um filme pressupõem uma situação na qual a perplexidade invade o espectador, um encontro com o estranho ou o bizarro, fruto ora de um abertura da imaginação ao infinito, ora de uma ênfase no caráter desestabilizador das sensações. Lançando-nos diante do estranhamento, nos fazem confrontar o irracional. Entretanto, é duvidosa a alocação do fantástico em códigos fixos. Embora reconheçamos certos procedimentos e fórmulas recorrentes, o fantástico sempre trai as classificações, podendo admitir e incluir uma gama variada de temas, subgêneros, formas e expressões.

À medida em que diversos filmes desenvolvem uma iconografia e um vocabulário próprios, reunindo convenções internas e aspectos comuns, um gênero específico pode se configurar. No entanto, englobar diferentes filmes em um gênero é uma tarefa problemática. Eis o problema contido na tentativa de definir algo: ignora-se as particularidades de determinada obra, seu caráter vivo e poroso, sua dimensão temporal e, portanto, cambiante, impura, fluida, avessa à delimitação genérica. A aparente fixidez das definições se deve sobretudo aos fatores culturais, históricos, das forças que circulam entre interesses econômicos e de mercado, muito mais do que propriamente um critério estético que poderia servir de molde às produções.

Perfazendo uma espécie de não-lugar para as tentativas de delimitação genéricas, o fantástico se impõe como desafio às fronteiras que se procuraram traçar entre um cinema dito de arte e um cinema pop, avesso ao bom gosto e ao mainstream. No lugar de percebê-los como produtos massificados da indústria cultural, a experiência democrática que promovem – reunindo admiradores em comunidades especializadas – e a abrangência de seus elementos para além do clichê, atuam de forma irrestrita com a vanguarda artística, renegociando suas fórmulas e redefinindo-se no processo. Muitos elementos trazidos pelo horror, por exemplo, podem ser localizados também em filmes aclamados pela crítica, não diretamente associados ao gênero, ou ainda em suportes e registros outros, como as artes plásticas e a videoarte.

Engana-se, portanto, os que acreditam que os exemplares do fantástico, por se associarem tradicionalmente ao gosto popular, à indústria cultural e ao cinema de Hollywood, seriam destituídos de valor estético, oferecendo um risco a um bom gosto generalizado. De fato, sua instabilidade questiona modelos de avaliação daquilo que é consagrado, respeitável, contestando padrões e valores culturais. Neste sentido, podem ser considerados meios a partir dos quais a sociedade se pensa e se questiona. Muitas vezes cultuadas com fervor quase religioso, como situar a potência destas obras que são classificadas, às vezes de forma abrupta, como mero entretenimento de apelo aos sentidos?

O fantástico talvez seja o gênero que mais diretamente força o deslocamento de nossas percepções, oferecendo uma experiência do excesso, de intensificação de sensações, voltando nossa atenção ao que nos é mais próximo: o corpo. Um aspecto crucial ligado ao fantástico, e em particular ao horror, é o fato de estimular o engajamento do corpo do espectador. Neste sentido, pode-se dizer que o horror é um gênero de afetos, de sensações, sem querer com isso dizer que ele é destituído de pensamento. Pelo contrário: convoca-se o pensamento de forma não depurada do corpo. A liberdade de sua forma fornece a possibilidade de abordar certas questões com a ousadia e a radicalidade que merecem.

Não é à toa que filmes de zumbis – no Fantaspoa, há uma mostra especialmente dedicada a eles – são reverenciados não apenas pelo aspecto grotesco de suas criaturas, mas sobretudo pelo modo – nada sutil – de abordar questões sociais como a discriminação, a desigualdade e até mesmo a representação política. Alguns filmes de horror considerados apelativos, que mostram sem economia desmembramentos, torturas e mutilações – como é o caso de parte da produção recente –, são responsáveis por colocar em cena discussões em torno dos limites da visualidade, desencadeando prazeres transgressores que a ficção permite engajar de forma segura.

Desconfiando das regras e leis que regeriam o mundo, os bons costumes e as formas consagradas de arte, o cinema fantástico problematiza a condição humana de modo mais direto, incidindo em certezas até então fundamentais, ao rejeitar as pretensões de realidade em seu básico. Redirecionando o olhar para outros mundos, para o incerto, ele nos convida a adotar formas outras de lidar com a nossa própria realidade, questionando nossos próprios valores e expectativas. Apesar de assumir de saída a impossibilidade de uma representação objetiva da realidade, da vida e do mundo, o fantástico opera com os saltos da imaginação e os excessos, que nos devolvem, ao fim e ao cabo, vivências e anseios reais, demasiado próximos e imediatos. Neste sentido, tais filmes nos aproximam de um realismo mais fundamental, associado aos efeitos sensíveis que abalam a integridade organizada do sujeito. Talvez este seja um de seus principais aspectos políticos, quando não importa tanto se o que retratam é estranho, bizarro ou improvável, já que sua força sugestiva e sua intensidade transgressora ajudam a impulsionar o real às últimas consequências.

Quando o mundo parece se tornar cada vez menos verossímil, talvez não seja de todo absurda a possibilidade de se vislumbrar no fantástico uma forma potente de fabulação, de radicalização de experiências, cujo movimento não descreve, porém, uma fuga alienada, mas a manifestação de algo comum, um desejo de que o cinema pode, a partir da imaginação e do excesso, invocar aquilo que nos é progressivamente interdito. O crescimento e a disseminação de festivais como o Fantaspoa celebram, portanto, uma renovação do olhar, sensível aos questionamentos e às potencialidades que a época atual nos abre. Trata-se de acolher o fantástico, para a saúde do real. Para os fãs do gênero, tanto melhor.

* * *

Site do Fantaspoa, com programação, sinopses, trailers, informações e horários: www.fantaspoa.com

Blog do Fantaspoa, com a cobertura diária do festival: http://fantaspoa.wordpress.com/

Gabriel Cid de Garcia é filósofo formado pela UFRJ; Doutor em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Produtor cultural da UFRJ e professor-tutor de História e Filosofia do curso de Licenciatura em História, modalidade à distância, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Organizador do livro Ciência em foco: o olhar pelo cinema (Rio de Janeiro: Garamond, 2008). Atua na interface entre a filosofia e as artes, e coordena projetos de divulgação científica que aproximam arte, ciência e pensamento. Email: [email protected]


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