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10 de maio de 2012
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11:51

A terra é má

Por
Sul 21
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O Lars von Trier não está, confesso, entre os meus diretores de cinema favoritos. Gosto muito de algumas coisas dele e detesto outras. Assim é. Resisti muito a ver Melancholia, de 2011 e devo dizer que gostei muito do filme. Não vou analisá-lo aqui, mas gosto, por exemplo, quando a irmã oficialmente deprimida, Justine (Kirsten Dunst), diz pra irmã oficialmente normal e pragmática, Claire (Charlotte Gainsbourg), que a terra é má. Para quem não viu o filme a Terra vai ser destruída pelo choque com um planeta chamado Melancholia e o filme se passa nos momentos antes deste choque.

O filme, dividido em duas partes que tem o nome de cada irmã vai mostrando a troca de papéis das duas e parece indicar que os deprimidos saberão enfrentar de maneira mais realista o fim do mundo, já que a depressão, ou a melancolia seriam, ao fim e ao cabo, um verdadeiro território de devastação e desamparo. Claire, a irmã bem sucedida está inconformada com o fim do mundo, com o fim do seu confortável mundo, na verdade, e demanda insistentemente do marido o cumprimento da promessa de que o mundo não vai acabar. Justine, que sobreviveu aos caminhos inóspitos e selvagens da depressão sabe o que a irmã não quer aceitar: a terra é má, ela diz. No mesmo tom que a mãe fala à filha-noiva na festa de casamento, acorde, saia daqui e vá viver a sua vida, ela diz, referindo-se aos casamentos sem vínculos reais, projetos falidos antes mesmo de sua consumação.

Lembro desta frase da personagem da Kirsten Dunst cada vez que leio sobre a balela da terra boa associada ao corpo da mulher, que também é bom, que também é mau e estou exausta de tanto retrocesso. Tô cansada da mãe-terra, da Pachamama impecável, da terra boa e me filio cada vez mais à premissa do polêmico dinamarquês pra dizer que sim, que a terra é má. É temperamental, cheia de humores, desacomodada e que a natureza é selvagem sim, indomável, assim, como, nós mesmos, cheios de apetites, voracidades, estamos longe de sermos bons. Como a terra, também somos maus.

Em algum momento da história do movimento das mulheres foi absolutamente necessário que as mulheres aprendessem sobre os seus corpos, aprisionados por espartilhos mentais e físicos, proibidos de prazeres e orgasmos e em nome disto loucuras foram e continuam a ser feitas pelas mulheres do mundo todo. Participei de grupos de conscientização nos anos 70 e 80 e de toda sorte de promessa que compunha o elenco do liberou geral e quero dizer que a farra foi grande e não foi menor a angústia de vivermos muitas vezes experiências e situações para as quais estávamos completamente despreparadas. Não há preparação quando se fala de sexualidade, já que este é o lugar do susto, do sobressalto e do que não sabemos sobre nós mesmos no encontro com o outro.

Uma amiga minha foi iniciada por um ginecologista que era médico do exército e que media a duração os orgasmos dela com uma planilha na mão. Consta que ela não pode ver um jaleco branco até a presente data. Muitos filmes nos mostraram, já de forma caricatural, os grupos de mulheres que olhavam amorosamente suas partes com espelhinhos em posições pouco cômodas e conversavam com elas para estabelecer uma intimidade de comadres, perdidas na ilusão de num matriarcado que nunca existiu, enfim não gosto nem de lembrar das coisas pelas quais já passamos e pelas quais pagamos para a tal da liberação feminina. Falo dos grupos de conscientização de mais de 30 anos. E eis que tudo volta com uma força absoluta e me sinto perdida e tentando compreender.

Tenho dificuldade com as premissas feministas contemporâneas das jovens mulheres que querem voltar pra casa, ser sustentadas pelos maridos e ficar cuidando dos filhos, tenho dificuldades para entender que as mulheres não queiram mais namorar e trepar. Tô cansada das festinhas e rodinhas de mulheres que fazem um verdadeiro campeonato de quem tem o melhor marido ou o filho mais eficiente, sinto que estou nas festas de aniversário das minhas tias lá no interior quando eu era uma menina e fico desolada pensando que nada mudou e isto é desesperador. Porque muitas mulheres sofreram muito para simplesmente adquirir o direito de poder votar, dirigir um carro, fazer uma faculdade, escolher suas parcerias e tudo isto é jogado na lata do lixo e voltamos ao princípio num movimento de um passo pra frente, trocentos pra trás.

A ditadura pelo parto natural e pela obrigatoriedade do aleitamento tão me cansando a beleza também. Foram anos de luta para que as mulheres pudessem escolher viver como bem quisessem, saímos de uma cartilha de repressão e rezamos pela cartilha do politicamente correto que é careta, sem graça, pouco criativa, chata e burra.

Eu gosto da Rose Marie Muraro, da Elke Maravilha, das mulheres anarquistas e de espírito rebelde. E gosto das mulheres comuns que entendem ali, na veia, que a sexualidade vai além da discussão sobre a vitimização e da violência ou do número de orgasmos que atingimos, que a sexualidade e o prazer do corpo têm unicamente a ver com um jeito de andar pelo mundo e que este jeito tem de ser leve, original, lúdico e pessoal, sem receitas e regras. E que passamos da superexposição para a inibição num movimento pendular viciado que nos impede a espontaneidade das nossas escolhas mais simples, sofro com isto, eu que gosto de cada coisa mais esquisita, mais bizarra, mais sem graça, por vezes, pelo simples prazer de gostar.

Outro dia fui expulsa de um grupo de danças circulares onde uma cidadã levou uma coisa chamada moon cup que vem a ser uma espécie de coador de café daqueles antigos com um gel onde é depositado o sangue menstrual que para muitas é considerado sagrado. O sangue depositado naquela coisa solidificou e a criatura o aspergiu sobre nós, filhas diletas da Pachamama para que fôssemos abençoadas pelo sangue bendito. Tive uma crise histérica de riso incontrolável e fui convidada a me retirar do círculo como uma filha traidora. Tudo ali, sob o plenilúnio e junto com muitas mulheres vestidas de bruxas invocando os poderes da Hécate. Ai que exaustão.

A terra é má. O corpo feminino, sobre o qual historicamente é projetada a loucura do mundo pede descanso, por favor. Nesta semana teremos o famigerado dia das mães. As mães são boas, assim reza a lenda. E esquecemo-nos das mães que não cuidam dos seus filhos, que sequer os amam, das que os abandonam, das mulheres que não quiseram parir, das que detestaram amamentar, e repetimos que a paz é feminina. Não, não é. Se assim fosse as mulheres não mandavam seus filhos para a guerra e nem apoiariam a volta do Pinochet ao Chile como fizeram muitas mulheres chilenas só para citar um dos exemplos mais dramáticos do âmbito da política. As mulheres são boas e são más, a maternidade é por demais complexa para simplificações, ser mãe e ser filha não é pra amadoras, e não vamos ganhar o céu das moças bem comportadas se seguirmos o ideário em voga sem pensar sobre quem somos.

Feminismo tem a ver com autonomia, solidariedade e coisas há muito esquecidas, e, principalmente, com espirito crítico e autonomia de pensamento. Gosto das cenas dos cavalos do filme do von Trier, que lembram de uma potência esquecida, imprescindível, das cenas das irmãs cavalgando, indo a lugar nenhum, em busca de uma vitalidade, de um último suspiro no momento em que o mundo pode acabar, porque um mundo sem desejo é um mundo que vai, inevitavelmente, sucumbir.

A terra é má. E a terra é boa. Como no filme Melancholia, um lugar por demais belo com suas paisagens noturnas, perigosas, de uma natureza poderosa, mas que vai acabar, como os nossos pobres corpos, feitos para a alegria e para as dores. E a tal da mãe terra sabe ser cruel e devastadora independente de ligarmos ou não o ar-condicionado, a natureza é o que é, impiedosa, milagrosa, precária e exuberante.

Trata-se sempre do mesmo, penso eu aqui, meio cansada quando leio algumas grandes bobagens escritas pelas mulheres, de acabar com este maniqueísmo fácil e preguiçoso, de dizer que os homens são violentos e as mulheres vítimas, esquecendo-nos das grandes manipuladoras, doidas, assassinas e dos homens do bem. Tô ficando velha, a bem da verdade, e não me satisfazem mais as respostas fáceis e nem as perguntas óbvias. Tenho tido dificuldades imensas em conciliar as minhas esquisitices, pra aceitar sem questionar determinadas insanidades que ouço num movimento de repetição mecânica.

A terra é má, a Pachamama não é protetora como desejamos, os nossos corpos, que vieram dos corpos das nossas mães e que pariram os nossos filhos, ora acolhedores, ora não, vão fenecer um dia. E a terra onde pisamos todos os dias, representada nos belos cenários do Melancholia, ainda é um lugar absolutamente instigante para a travessia possível.


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