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17 de março de 2012
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09:45

Duas histórias em celeste e branco

Por
Sul 21
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Iuri Müller e Maurício Brum escrevem quinzenalmente no Sul21 sobre futebol, cultura e política no continente

Iuri Müller

Esta é uma história que, a bem da verdade, pode ser tida como o encontro de outras duas histórias. A história de um time de futebol que vestia celeste e branco e enfrentou o decreto da sua falência e a espera de mais de três décadas para voltar a festejar um título nacional. E a história de um país, um país das mesmas cores, que se via desencontrado em uma profunda crise após anos de incertezas econômicas e políticas, e no qual os acontecimentos indicavam o início de uma revolta social. E o clube esfarrapado da história, o Racing Club de Avellaneda, quando pôde retomar o orgulho perdido e deixar as muitas tristezas para trás, encontrou em dezembro de 2001, naquele que seria o instante de consagração, a república, a República Argentina, corroída pelo desemprego e inflamada pelos protestos multitudinários que cresciam na sua capital.

Eram (e são) histórias e relações de crise. A do Racing, la Academia de Avellaneda, teve o seu momento mais dramático poucos anos antes daqueles dias em que a Plaza de Mayo mais parecia o epicentro de um território em guerra. Em 1999, o primeiro clube argentino a conquistar o título mundial contabilizava uma dívida superior aos trinta milhões de dólares, em valores da época. Foi quando Héctor Daniel Lalín, o então presidente em exercício, pediu a falência do Racing apenas um ano depois de assumir o cargo presidencial. A história daquele Racing falido, ainda que tenha o ritmo e a emoção dos melhores roteiros, que inclua a declaração formal de que a instituição havia deixado de existir, um estádio lotado sem qualquer equipe em campo e multitudinárias marchas de torcedores exigindo a ressureição do clube dos seus amores, é uma história à parte. Ainda assim, a redenção acadêmica de 2001, inegavelmente, é feita do espírito e da devoção postos à prova dois anos antes. O Racing, afinal, seguiu existindo.

E do que foi feita a derrocada argentina? Quais decisões e atores políticos estavam por trás, mesmo em anos anteriores, dos mais de trinta mortos que a repressão policial causou em 2001? Há quem aponte de forma direta para uma herança da última ditadura militar (1976 – 1983), principalmente no que diz respeito ao descalabro econômico e à brutalidade com que foram contidos os protestos. A instabilidade política daquele mês, porém, apenas não negaria um panorama sombrio de golpes de estado e planos econômicos desafortunados que pairou sobre a Argentina durante muitos pontos do século XX. Mas o que ocorreu há pouco mais de dez anos, e aí coincidem muitos dos que já escreveram sobre o tema, foi também a falência de um modelo econômico sustentado desde o governo de Carlos Menem e protagonizado pelo ministro Domingo Cavallo, caracterizado pela manutenção da paridade entre o peso e o dólar, por numerosas privatizações e por um empobrecimento nítido das garantias dos contratos de trabalho.

A Argentina viveu o ponto mais crítico dos protestos nos últimos dias de dezembro de 2001

Ainda que boa parte da população já sofresse com os sintomas da crise que se agravaria de forma mais explícita quando dezembro chegasse, o Torneio Apertura de 2001 iniciou normalmente em agosto. Atual campeão da Copa Libertadores da América, o Boca Juniors dividia o favoritismo com o River Plate, que dependia urgentemente de uma nova conquista para tentar frear a ascensão do rival, e com o San Lorenzo, vencedor do último torneio argentino. Algo esquecido pelos especialistas estava o Racing Club, ainda que tenha armado uma equipe mais competitiva do que em temporadas passadas. De qualquer forma, no lado azul de Avellaneda o pensamento estava mais direcionado para a permanência na primeira divisão e a saúde financeira do clube, ainda em recuperação, do que para ilusões tão distantes como o fim do jejum de trinta e cinco anos sem títulos no país.

Corriam as semanas e o Racing, dirigido pelo técnico Reinaldo “Mostaza” Merlo, contrariava as expectativas externas e as tendências recentes para se afirmar no campeonato. Nas primeiras doze partidas, o Racing não computava nenhuma derrota no certame – e só foi cair frente ao Boca, em uma partida adiantada da décima quinta rodada. Não perderia mais. Jogadores como o zagueiro Gabriel Loeschbor, o lateral colombiano Gerardo Bedoya, o meia José Chatruc e os atacantes Diego Milito e “Chanchi” Estévez definiam a direção de uma equipe que não carecia de um grande craque para proporcionar grandes atuações. Não demorou muito para que ficasse claro sobre qual seria o adversário a enfrentar até o final – o River Plate insistia em não perder espaço na tabela e de conservar as chances para a última rodada, marcada justamente para a semana em que os protestos populares estouraram no país.

A crise alcançava o instante do descontrole. Após dias de intensa presença do povo nas ruas e de confrontos com a polícia argentina, caíam as figuras políticas. Domingo Cavallo renunciava ao Ministério da Economia e, no dia vinte de dezembro, seria a vez do presidente Fernando de La Rúa, que antes havia declarado o Estado de Sítio em rede nacional. Entretanto, a indefinição nos cargos máximos se manteria. Adolfo Rodriguez Saá, então governador de San Luis, foi o indicado pelo Congresso para assumir a presidência – na qual permaneceria apenas por sete dias. Em tempos de multidões iradas e de crescentes confrontos armados, parecia insensato manter a disputa do campeonato nacional de futebol. Mas faltava uma rodada para o Racing Club ser campeão depois de trinta e cinco anos. No livro “Academia, carajo! – Pasíon, locura y secretos del título 2001”, o jornalista argentino Alejandro Wall traz as contradições com que o torcedor comum do clube se enfrentava.

Reinaldo 'Mostaza' Merlo festeja o título, ainda no gramado do Vélez Sarsfield

Parte dos que preenchiam as ruas de Buenos Aires com suas faixas e gritos eram, também, torcedores do Racing. Estavam ali por um motivo que nada tinha a ver com o futebol, mas era impossível esquecer o campeonato. Gritavam pela Argentina e, quando houve tempo, gritaram pela Academia; a partida final precisava ser disputada. Era o episódio mais representativo da história de um clube tido como maldito: na semana em que, enfim, se festejaria o sonhado título nacional, o país entra em colapso. Há quem diga que houve uma reunião na Casa Rosada, em meio aos encontros que buscavam uma solução para a crise, cuja pauta foi o futebol. Decidiu-se que as partidas decisivas – Vélez vs. Racing, River vs. Rosario Central – ocorreriam ainda em dezembro, sendo as demais adiadas para fevereiro do ano seguinte. No dia 27, no Estádio José Amalfitani, bairro de Liniers, o Racing entrava em campo pela última vez naquele ano. E bastava um empate para que os racinguistas se vissem livres da maldição.

A tarde do título ficou eternizada para a torcida do Racing como “o dia em que lotamos dois estádios ao mesmo tempo”; a parcialidade acadêmica tomou a plateia destinada aos visitantes em Liniers e encheu as arquibancadas e o gramado do Cilindro de Avellaneda, onde um telão foi instalado para os que não conseguiram uma entrada. Com um gol de Loeschbor, o Racing segurou o empate por 1-1 que garantia o troféu. São mil as teorias sobre a particularidade daquela conquista. Dizem, por exemplo, que o Racing só pôde ser campeão quando ninguém pensava no campeonato argentino; ou que apenas uma época de loucura reinante, em que o presidente da Argentina escapa da Casa Rosada carregado em um helicóptero, poderia estar em sintonia com um título do Racing. Quanto ao país, apesar dos muitos e eternos problemas, a Argentina pôde abandonar a crise e iniciar uma lenta recuperação. Já se passaram mais de dez anos. E o Racing nunca mais saiu campeão.

Em Avellaneda, milhares de racinguistas tomaram o campo de jogo e as tribunas para festejar a conquista

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