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14 de fevereiro de 2012
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12:00

Lembrando o Cabeça de Porco em tempos de Pinheirinho

Por
Sul 21
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Ainda repercute entre nós a forma como foi feita a desocupação da região do Pinheirinho, em São José dos Campos, no estado de São Paulo. No meu caso, que acompanhei as notícias desde as primeiras horas daquela manhã de domingo, não faltou indignação e horror. Ao longo das semanas que seguiram ao fato, li muitas reportagens e vários textos igualmente indignados, compartilhei o que pude, tentei espalhar minha percepção das inúmeras tragédias que ali ocorreram e se somaram num flagrante desrespeito à cidadania. Contudo, ao que parece, aos pobres a condição de cidadão ainda é negada no Brasil, embora não somente. Sendo assim, não raro me bati contra muros de pré-conceitos, falácias jurídicas e panos quentes. O fato é que foi possível perceber, lendo outros textos e assistindo a televisão, que se mantém arraigada a ideia – entre muitos brasileiros – de que a única forma de diálogo com os pobres é a truculência. Ouvi comentários de que se não fosse o despejo, “aquela gente” nunca sairia de lá; que era a lei; que eles eram invasores, etc, etc. Muitos viram na atuação do governo e da PM de São Paulo um ato legítimo – afinal, havia uma ordem judicial – mesmo reconhecendo que houve excessos. Não vou aprofundar-me no debate acerca da rede de negócios escusos que propiciou este episódio lamentável. De fato, meu interesse não é questionar a lei, mas a atitude, assumida por muitos, de achar que quando ela se movimenta contra os pobres, “normalmente”, a lei está certa e os pobres errados.

Neste sentido, a lembrança da destruição do cortiço Cabeça de Porco, no Rio de janeiro de fins do século XIX, parece emblemática. Não estou a dizer que “a história se repete”, aliás, tampouco acredito nisso. Contudo, os paralelos entre as duas situações são inevitáveis. Para que o leitor possa fazer uma ideia clara do que digo, reproduzo abaixo a narrativa do fato pelo historiador Sidney Chalhoub em seu excelente Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial.

Era dia 26 de janeiro de 1893, por volta das seis horas da tarde, quando muita gente começou a se aglomerar diante da estalagem da rua barão de São Félix, nº 154. Tratava-se da entrada principal do Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca do período: um grande portal, em arcada, ornamentado com a figura de uma cabeça de porco, tinha atrás de si um corredor central e duas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Além dessa rua principal, havia algumas ramificações com mais moradias e várias cocheiras. Há controvérsia quanto ao número de habitantes da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia sido ocupado por cerca de 4mil pessoas; naquela noite de janeiro, com toda uma ala do cortiço interditada havia cerca de um ano pela Inspetoria Geral de Higiene, a Gazeta de Notícias calculava em quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época afirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam o local.

Seja como for, o que se anunciava na ocasião era um verdadeiro combate. Três dias antes os proprietários do cortiço haviam recebido uma intimação da Intendência Municipal para que providenciassem o despejo dos moradores, seguido da demolição imediata de todas as casinhas. A intimação não fora obedecida, e o prefeito Barata Ribeiro prometia dar cabo do cortiço à força. Às sete horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro batalhão de infantaria, comandada pelo tenente Santiago, invadiu a estalagem, proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. Piquetes de cavalaria policial se posicionaram nas ruas transversais à Barão São Felix, e outro grupo de policiais subiu o morro que havia nos fundos da estalagem, fechando o cerco pela retaguarda.

(…)

O Cabeça de Porco – assim como os cortiços do centro do rio em geral – era tido pelas autoridades da época como um “valhacouto de desordeiros”. Diante de tamanho aparato repressivo, todavia, não parece ter havido nenhuma resistência mais séria por parte dos moradores à ocupação da estalagem. De qualquer forma, segundo o relato da Gazeta de Notícias, ocorreram algumas surpresas. Os esforços se concentraram primeiramente na ala esquerda da estalagem, a que estaria supostamente desabitada havia cerca de um ano. Os trabalhadores começavam a destelhar as casas quando saíram de algumas delas crianças e mulheres carregando móveis e colchões e tudo o mais que conseguiam retirar a tempo. Terminada a demolição da ala esquerda, os trabalhadores passaram a se ocupar da ala direita, em cujas casinhas ainda havia sabidamente moradores. Várias famílias se recusavam a sair, se retirando quando os escombros começavam a chover sobre suas cabeças. Mulheres e homens que saíam dos quartos ‘estreitos e infectos’ iam às autoridades implorar que ‘os deixassem permanecer ali por mais 24 horas’. Os apelos foram inúteis, e os moradores se empenharam então em salvar suas camas, cadeiras e outros objetos de uso. De acordo com a Gazeta, porém, ‘muitos móveis não foram a tempo retirados e ficaram sob o entulho’. Os trabalhos de demolição prosseguiram pela madrugada, sempre acompanhados pelo prefeito Barata. Na manhã seguinte, já não mais existia a célebre estalagem Cabeça de Porco.

Cortiço típico do século XIX

Sidney Chalhoub parte desta história para reconstruir um importante período da história brasileira. Isso porque a destruição do Cabeça de Porco é apenas a emblemática ponta de um iceberg onde se podem ver não somente as mudanças urbanísticas e arquitetônicas das grandes cidades brasileira, mas também o processo de criminalização da pobreza, de seu tratamento como “sujeira”, “lixo” e, numa época em que a medicalização avançava à passos largos, como “doença”. Conseguir unir todas estas pontas é um dos grandes méritos do trabalho de Chalhoub. Afinal, não é á toa que o autor consegue ligar esta mítica destruição ao surgimento das favelas no Rio de Janeiro, mas também à Revolta da Vacina, pouco mais de uma década depois.

Entrelaçando diversos pontos da história brasileira que, até então, haviam sido tratados em separado, Chalhoub percebe as íntimas conexões que grassaram toda uma época e repercutem até hoje. De um lado, os avanços da modernização com suas faces arquitetônica, médica e científica, mas também autoritária e marcada pelo ódio de classe. E, de outro, as resistências populares informadas por uma enorme diversidade de culturas em amálgama e ebulição. O resultado é uma das grandes obras da moderna historiografia brasileira e uma aula para se entender o Brasil do início do século XX e, também, do início do século XXI, como o episódio do Pinheirinho esta aí para mostrar.

Para concluir, cito um parágrafo de Chalhoub que poderia figurar em qualquer matéria sobre o caso do Pinheirinho; e recomendo, a todos que querem entender melhor o nosso país, a leitura deste grande livro.

O que mais impressiona no episódio do Cabeça de Porco é sua torturante contemporaneidade. Intervenções violentas das autoridades constituídas no cotidiano dos habitantes da cidade, sob todas as alegações possíveis e imagináveis, são hoje um lugar- comum nos centros urbanos brasileiros. Mas absolutamente não foi sempre assim, e essa tradição foi algum dia inventada, ela também tem sua história. O episódio do Cabeça de porco se transformou num dos marcos iniciais, num mito de origem mesmo, de toda uma forma de conceber a gestão das diferenças sociais na cidade. Vamos localizar aqui dois pontos fundamentais dessa forma de lidar com a diversidade urbana. O primeiro é a construção da noção de que “classes pobres” e “classes perigosas” – para usar a terminologia do século XIX – são duas expressões que denotam, que descrevem a mesma “realidade”. O segundo refere-se ao surgimento da ideia de que uma cidade pode ser apenas “administrada”, isto é, gerida de acordo com critérios unicamente técnicos ou científicos: trata-se da ideia de que haveria uma racionalidade extrínseca às desigualdades sociais urbanas, e que deveria nortear a condução não-política, “competente”, “eficiente”, das políticas públicas. Estas duas crenças, combinadas, têm contribuído, muito, em nossa história, para a inibição do exercício da cidadania, quando não para o genocídio mesmo de cidadãos.

Para saber mais:
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das letras, 1996.

Nikelen Witter é historiadora, escritora e professora.


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