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10 de fevereiro de 2012
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08:00

Lei das Queimadas: um debate que vai muito além da política

Por
Sul 21
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Lei das Queimadas: um debate que vai muito além da política
Lei das Queimadas: um debate que vai muito além da política
Foto: Paulo Brack

Samir Oliveira

A lei promulgada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul no dia 30 de janeiro, autorizando a prática de queimadas em campos gaúchos, não durou nem 15 dias. Nesta quinta-feira (9), o Tribunal de Justiça (TJ-RS) considerou a medida inconstitucional. A lei 13.391 apenas seguiu o destino de suas antecessoras. Outras duas tentativas de regulamentar as queimadas já haviam sido aprovadas no Parlamento e, em seguida, consideradas inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça (TJ).

Em 1992, uma medida com o mesmo teor da atual norma foi aprovada no Legislativo e derrubada no Judiciário. E em 2002 uma emenda alterou a Constituição Estadual, que, em seu artigo 251, determina que cabe ao Estado desenvolver ações de proteção, restauração e fiscalização do meio ambiente, incumbindo-lhe, primordialmente, “combater as queimadas, responsabilizando o usuário da terra por suas consequências”.

A emenda constitucional tinha sido vetada pelo então governador Olívio Dutra (PT), mas a oposição, em maioria, conseguiu derrubar o veto a aprovar a medida. Novamente, a norma foi considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça.

Desta vez, o governo gaúcho não vetou a medida. Tampouco sancionou. O governador Tarso Genro (PT) deixou passar o prazo regimental para subscrever ou rejeitar a lei. O projeto voltou ao Legislativo, onde o então presidente, Adão Villaverde (PT), também se eximiu de promulgar a proposta, que acabou levando a assinatura do 1º vice, José Speroto (PTB).

Ambientalista cobra auxílio técnico do Estado aos produtores

A disputa política é a face menor de toda essa discussão. A prática das queimadas envolve um complexo debate técnico, ambiental, social, cultural e econômico.

Paulo Brack defende maior diálogo entre Estado, academia e produtores | Ramiro Furquim/Sul21

São, na imensa maioria, pequenos e médios produtores rurais e pecuaristas da região dos Campos de Cima da Serra que utilizam o fogo para limpar o pasto morto e quebradiço que o rigoroso inverno gaúcho deixa. Isso coloca os próprios ambientalistas numa saia justa: acostumados a combater o agronegócio e os latifundiários, não se sentem à vontade para atacar agricultores familiares, muitas vezes pobres, que perpetuam uma prática secular para sobreviver.

O professor do Departamento de Botânica da UFRGS, Paulo Brack, acredita que é preciso superar a discussão sobre proibir ou legalizar. O ambientalista avalia que nenhuma das duas opções resolve totalmente o problema e defende a busca de alternativas às queimadas.

“A lei é demagógica e pode consagrar um procedimento que é ruim para o solo, queima minerais, elimina nutrientes, agride a biodiversidade e emite gases do efeito estufa. Mas não adianta também criminalizar os pecuaristas. São práticas que existem há pelo menos 200 anos”, explica o professor.

Brack entende que o poder público deveria fornecer assistência técnica e possibilidades reais para que os agricultores encontrassem outras maneiras de limpar seus campos – que são, na maioria, acidentados, com inclinações e muitas pedras, o que dificulta o roçado. “O Estado tem que fornecer assistência, trabalhar com pesquisa e incentivo para que os pecuaristas possam utilizar outras técnicas comprovadas que ainda não entraram em prática. Há pesquisas que comprovam que é possível fazer um bom manejo em campos acidentados, aumentando a produção, sem que haja a queima. São técnicas que muitas vezes não estão próximas dos produtores, por isso é preciso haver um diálogo entre o Estado, a academia e os agricultores”, cobra.

O ambientalista aponta que, enquanto pequenos produtores são criminalizados por queimadas, outro problema muito maior assola a região: o crescimento dos cultivos de batata, milho e pinos, que demandam uma grande quantia de agrotóxicos. “Os campos de cima da serra estão desaparecendo rapidamente. O agronegócio está tomando conta e transformando tudo em lavouras. Está havendo um processo de concentração de terra nas mãos de algumas empresas e os pecuaristas são os que acabam sendo criminalizados”, comenta.

“Outras tecnologias implicariam na mudança do sistema de produção e até de vida”, aponta ecologista

A mestre em Ecologia pela UFRGS, Josielma Hofman Macedo, conversou com 71 produtores dos campos de cima da serra para realizar seu estudo sobre a prática das queimadas na região. Ela observa que bastante complicado substituir esse procedimento por outras técnicas.

“Outras tecnologias implicariam na mudança do sistema de produção e até de vida dessas pessoas. Teria que ser considerado o número de cabeças de gado por área, aí o produtor ficaria dependente de vender uma quantidade determinada de gado no inverno, sendo que a produtividade maior é no verão”, explica.

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Foto: Paulo Brack

Josielma ressalta que os pecuaristas da região valorizam a independência que possuem em relação ao mercado. “Não é como quem planta grãos, que precisam vender o produto na época da safra, independente do preço que conseguir. Eles podem trabalhar numa lógica de diminuir os riscos e manter a propriedade”, aponta.

Ela avalia que a criminalização dos pequenos produtores não é a melhor saída para o impasse. “A proibição, como está colocada, não funciona. As pessoas entendem como uma interferência arbitrária do Estado, que apenas proíbe e não fornece alternativas. Tratam os produtores como se fossem criminosos”, critica.

Ex-técnico da Secretaria do Meio Ambiente critica fiscalização municipal

O agrônomo Renato Côrte Real, que se aposentou em 2006 como técnico da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), acompanhou de perto a movimentação política que resultou na aprovação das duas leis anteriores que tentaram legalizar as queimadas no Rio Grande do Sul. Ele critica a nova regra por atribuir aos municípios o poder de fiscalizar a prática. “Sei muito bem quanto os técnicos municipais são pressionados para liberar até o que não consideram certo. Muitos são terceirizados e só recebem os honorários se fizerem um projeto favorável. Essa lei cria uma abertura muito perigosa”, observa.

Como licenciador florestal da Sema, Renato percorria os Campos de Cima da Serra para fazer autuações e lembra dos prejuízos causados pelas queimadas. “Cada vez queimavam mais, a ponto de não ser possível trafegar nas estradas. Em agosto e setembro aquela região virava só em fumaça, minha rinite alérgica ficava completamente atacada”, conta o agrônomo.

O presidente da Associação dos Municípios dos Campos de Cima da Serra e prefeito de São José dos Ausentes, Erivelto Sinval Velho (PMDB), explica que, enquanto não forem implementadas alternativas às queimadas, essa será a única prática em uso para limpeza e renovação da pastagem. “Iremos caminhar para uma mudança, mas queremos tempo para conseguir outras soluções. No momento, essa é a prática que nos dá o sustento”, justifica.

Especialista alerta que proibição de queimadas leva produtores a arrendarem terras para cultivos que demandam agrotóxicos

O diretor do Centro de Ciências Agrárias e Biológicas da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Alindo Butzke, realizou um amplo estudo sobre a prática das queimadas nos campos de cima da serra. Autor do livro Queimadas dos campos: O homem e o campo, a natureza, o fogo e a lei, ele e uma equipe de agrônomos e biólogos passaram dois anos dissecando a utilização desse procedimento em cinco municípios da região. O professor constatou que apenas 6,6% dos campos estudados por sua equipe comportavam uma tecnologia mecanizada para o roçado. “São muito poucos os que possuem área plana e permite o uso de roçadeira”, explica.

Butzke reconhece que, para o meio ambiente, o melhor seria deixar crescer os capões e o mato que se desenvolvem nas terras dos produtores. “É óbvio que a capoeira acolhe mais espécies que uma área lavrada ou queimada. Mas há impacto em qualquer tipo de cultura feita pelo homem”, compara. O biólogo assegura que, ao contrário do que dizem alguns ambientalistas, as nascentes e os banhados não são prejudicadas pelas queimadas. “Constatamos isso nos locais. A destruição dos nascedouros não procede, o fogo não queima o molhado”, comenta.

Butzke também observa que seus estudos comprovaram que, após cinco dias da queimada, uma nova camada de grama começa a brotar no solo, realizando a fotossíntese e neutralizando os efeitos gerados pela emissão de gases poluentes. “O fogo é rápido e não queima a raiz. É claro que a queimada emite muito gás carbônico, mas a planta, depois que brota, retira esse gás e tende a gerar um equilíbrio”, explica.

Para o professor, a consequência da proibição das queimadas é o arrendamento dos campos dos produtores da região para plantadores de batata e alho, cultivo que seria muito mais prejudicial que o manejo do fogo. “A quantidade de agrotóxico utilizada é impressionante, fora de qualquer parâmetro. Muitos rios e riachos da região não possuem mais peixes, foram esterelizados”, critica.

“A legalização das queimadas vai na contramão da história”, critica Bordignon

Daniel Bordignon cobra programa estadual para os pequenos produtores | Ramiro Furquim/Sul21

A bancada do PT na Assembleia Legislativa votou contra a aprovação da lei que permite a prática de queimadas no Rio Grande do Sul. Para o líder dos petistas no Parlamento, Daniel Bordignon, a iniciativa “vai na contramão da história”.

O deputado avalia que não há justificativa para se manter em uso um procedimento secular. “É um absurdo dizer que não é prejudicial, que não mata animais. É um retrocesso brutal, tendo em vista tudo que a ciência está produzindo para evitar a destruição da natureza”, avalia.

O petista considera que a derrubada total da lei no Tribunal de Justiça – que poderá ocorrer quando houver o julgamento do mérito da ação de inconstitucionalidade – é “incontornável”. Bordignon diz que entende “a angústia dos pequenos agricultores da região” e cobra a implementação de um programa estadual de financiamento para que eles possam ter acesso a tecnologias e insumos que forneçam uma alternativa às queimadas. “Essa é a solução que precisamos. A legalização da queimada é uma capitulação ao senso comum e uma ilusão paliativa”, condena o deputado.

“Os promotores não precisam engordar boi para viver”, compara Alceu Barbosa

O deputado estadual Alceu Barbosa Velho (PDT), um dos articuladores para que a lei que autoriza a realização de queimadas no Estado fosse aprovada, não poupa críticas ao Ministério Público Estadual, autor da ação que derrubou a medida em caráter liminar no Tribunal de Justiça.

“Os promotores, sentados em suas cadeiras confortáveis, não precisam engordar boi para viver. O salário deles vem dos impostos, não se preocupam se os produtores rurais vão passar fome ou se terão que vender suas terras para grandes empresas. Prestam um desserviço ao homem do campo”, dispara o pedetista.

Barbosa Velho reconhece que haverá uma “batalha jurídica” para que a lei possa entrar em vigor, mas acredita que é possível vencer. “Será uma luta, mas a ação é totalmente contestável do ponto de vista jurídico. Vamos esperar pelo bom senso do tribunal”, comenta o deputado.


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