Colunas > Marcelo Carneiro da Cunha
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18 de janeiro de 2012
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00:08

Drama Gaúcho, Inc.

Por
Sul 21
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Foi virar o transatlântico na Itália para, pronto, setores da brava imprensa rio-grandense se voltarem para a missão hercúlea de descobrir o que realmente importava: afinal, havia gaúchos a bordo?

Quantos? Como chegaram até lá? Como e quando vão chegar de volta até aqui?

No instante em que gaúchos são localizados no cruzeiro azarado, estimados leitores, no mesmo instante, ele se transforma num Tchêtanic, para nossa desgraça.

O resultado, ao menos para quem vive fora das fronteiras seguras do RS, foi o sarro generalizado do resto do Brasil para com esse auto-centrismo militante que setores da imprensa daí praticam e respingam sobre todos nós, onde quer que estejamos.

E eu me pergunto: pra quê? Quem ganha com isso, de verdade? O público do RS está mesmo tão exclusiva e obsessivamente ligado às coisas gaúchas e mais nada?

Essa gauchização do mundo é algo que reflete a visão gaúcha do cosmos, ou foi uma invenção que começou nos anos 50 com os CTG e se espalha hoje pelos caminhos seguros da imprensa local? Sempre fomos tolos assim, ou essa é uma criação recente?

Em 2007, quando um pequeno avião caiu no Rio de Janeiro, lembro da manchete: “Avião pilotado por gaúcho cai e mata 4”. Quando nasceu o neto da Dilma, adivinhem? “Nasce neto gaúcho da Dilma”.

Pode ser que levando na brincadeira seja divertido. Mas isso não está sendo feito de brincadeira. Isso está sendo feito por um propósito, com um objetivo, e o que se especula aqui nessa coluna é afinal, qual?

Colunas são a arte de, a partir de um ponto, traçar retas. E eu acho que sim, existe uma razão, e ela é simples: empresas do RS e se identificam com o elemento local saem ganhando, ou acham que saem ganhando com o fortalecimento de uma imagem de unidade local. Assim se fortalece a idéia de “nós, aqui dentro” versus “eles, lá fora”. E eles assim ameaçam menos. A Casas Bahia não conseguiu entrar, não é mesmo? Ponto para nós?

Eu sinceramente sinto isso como um peso desnecessário, caros leitores. Eu não acho divertido virar “escritor gaúcho” quando estou aí ou de uma maneira ou outra sou citado. Eu sou um escritor nascido no Rio Grande, mais especificamente em Porto Alegre. Mas, escritor gaúcho? Eu não me sinto um escritor gaúcho. Eu me sinto um escritor, quando sou lido. Aqui, onde eu moro, eu sou um escritor. Aqui eu não sou um escritor gaúcho. O Michel Laub não é um escritor gaúcho, assim como a Ivana Arruda Leite não é uma escritora paulista e o Marcelino Freire não é um escritor pernambucano. Somos escritores, e isso basta. Somos nascidos em algum lugar do Brasil, fato que tem algum significado maior ou menor, dependendo do assunto ou do momento. É um alívio quando as coisas são assim, caros leitores, e somos realmente o que somos, e não um adesivo que aplicam na gente, assim que a gente estaciona e se vira pro outro lado.

Há uns anos, abriu um ótimo Zaffari, no feioso Bourbon daqui (como são feiosos aí), em frente ao lindo SESC Pompéia, da Lina Bo Bardi. Eu fui até lá, era perto de casa e realmente um hiper Zaffari dá um banho nos Pão de Açúcar, Extra e Carrefour. Aliás, ele foi votado o melhor super daqui, sem que ninguém saiba ou queira saber de onde veio o Zaffari. Quando eu fui, no início da operação, havia cartazes com “bergamota”, “cueca virada”, “marta rocha”, “nata”, e, claro, não poderia faltar, “cacetinho”. O Zaffari veio para cá sem saber com quem estava falando, ou sem pensar que haveria outras pessoas, não gaúchas consumindo os seus produtos. Se um super estrangeiro se instalasse em Porto Alegre, alguém acha que ele iria vender mexerica, pamonha, bisnaga ou vitamina?

Uma expansão para outras culturas tem que ser consciente do diálogo necessário. Quem se refere a si mesmo, o tempo inteiro, não entende o outro e se perde na troca.

É isso que estamos querendo para nós mesmos, ou é apenas um setor da imprensa que estabelece assim a sua aliança para o regresso com os setores mais xenófobos da nossa comunidade?

Existe, e tem que existir, um ponto de equilíbrio entre o local e o amplo. Somos gaúchos e somos brasileiros e isso precisa ser melhor distribuído, para não seguirmos pagando o mico que pagamos, sem que isso tenha o menor sentido. Eu me sinto bem com meus atributos gaúchos e que são identificados logo após o sotaque. Nossa maneira direta e relativamente clara de expor o que pensamos. Nosso humor, que sim, é particular. Nossas expressões campeiras adicionadas ao linguajar urbano, algumas muito ricas e ao ponto. Nossa maneira de sim, valorizar o que é culto. Existe um espanto aqui com a quantidade de escritores que produzimos nas últimas décadas e ele é legítimo.

Mas irrita, muito, essa gauchidade de manchete de jornal e hino antes dos jogos. Esse é o excesso que mela, o ponto além do sensível, que nos marca. Disso eu gostaria de me ver livre, no primeiro naufrágio, acidente aéreo ou rebelião em alguma república centro-americana. Não quero ver quantos gaúchos estão envolvidos, pelo menos não na manchete.

Quando isso acontecer, teremos superado uma fase constrangedora, um momento desnecessário e inútil. Quando isso acontecer, por favor, me avisem. Anseio por esse momento, não vejo quando ele vá chegar. Se houver como ajudar, digam. Essa caixa postal está aqui para isso mesmo.


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