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31 de janeiro de 2012
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08:00

Cristyane, transexual operada: “Foi um renascimento”

Por
Sul 21
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Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Rachel Duarte

Você já imaginou acordar todos os dias sentindo que está no corpo errado? Que o corpo que você possui não é exatamente aquele que a sua mente diz pra você? E, diante das outras pessoas, você precisasse fingir todos os dias ser alguém que você não é? E ainda, nas horas em que quisesse ser você mesmo, você fosse duramente criticado ou até agredido verbal ou fisicamente por apenas… ser você? Durante 30 anos, Cristyane de Oliveira viveu assim. Nasceu mulher, em um corpo masculino. Filha de mãe diarista e abandonada pelo pai quando ainda era bebê, ela enfrentou o caminho doloroso que todas as transexuais sofrem até conseguir se readequar. Hoje, aos 37 anos, conta abertamente como conseguiu ser operada e trocar o nome na carteira de identidade. “Eu vivia em liberdade condicional. Era retraída e com boa parte da vida anulada. Hoje posso ser eu mesma. Foi um renascimento”, contou em longa conversa com o Sul21.

Cristyane veio de Eldorado do Sul até a redação, no Centro de Porto Alegre, em uma tarde quente de janeiro, exclusivamente para dar a entrevista. Chegou de batom e vestido, coisas que só pôde usar ao completar 18 anos. Com cabelos loiros e exibindo belas próteses mamárias, adquiridas quando fez a cirurgia de readequação de gênero, mostrou-se uma pessoa alegre e decidida. “Mas eu não era assim. Jamais iria falar deste jeito aqui ou teria aceitado dar entrevista antes de me constituir como mulher de fato e de direito”, conta.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Menino não brinca de boneca

O pai foi embora de casa quando Cristyane tinha cinco anos de idade. “Ele nem sabe que ele tem uma filha hoje. Que um dos filhos que ele abandonou hoje é uma mulher”, conta ainda pensando se irá procurar pelo pai um dia.

Além do abandono paterno, como muitas famílias brasileiras menos favorecidas, Cristyane passou fome e vestia-se com as roupas herdadas dos filhos da patroa de sua mãe. O problema é que Cristyane, ainda como nome e aparência de menino, tinha que usar as roupas que ganhava, sem se sentir confortável com as vestimentas masculinas. “Eu costumava me vestir de mulher, com as roupas da minha mãe, quando ela não estava em casa. Ela me pegou algumas vezes e disse que iria cortar meu membro fora se eu não parasse de me vestir de mulher. Ai é que eu esperava ela todos os dias vestido de mulher (risos)”, conta.

Quando criança, Cristyane conta que não se sentia diferente e nem percebia nada de errado em querer ser como era: uma menina. “Eu queria brincar de boneca e minha mãe não deixava. Um dia eu achei uma Barbie sem cabeça na rua e foi a minha alegria. Escondia ela da minha mãe e brincava escondida”, revela.

Foto: André Carvalho/Sul21

Foi quando ingressou na escola, diante do convívio social, que surgiram as primeiras de muitas dificuldades e constrangimentos. “Ouvia muitas chacotas. Sempre meus colegas perguntavam se eu era menino ou menina. Eu dizia que era menina. As meninas não se sentiam à vontade comigo, e entre os meninos, eles faziam piadas. Então, passei todo o tempo sozinha”, afirma.

“Usar o banheiro era a pior parte. Não conseguia me sentir bem com os outros meninos e então eu segurava o xixi. Me mijei nas calças até minha mãe mandar uma recado dizendo que eu tinha problema de bexiga. Ai passei a usar o banheiro de menino sozinha, fazia e saia correndo”, fala Cristyane.

Chegada da puberdade e a ‘transgressão’

Adolescer já é uma fase de rebeldia,. Para uma pessoa com dificuldades de aceitação e afirmação, como a transexual Cristyane, foi uma fase ainda mais delicada — mas, ao mesmo tempo, o momento da primeira libertação.

Até poder deixar o cabelo crescer e não precisar mais tirar a camisa em público, a jovem no corpo de uma adolescente decaiu nos estudos e deixou a escola. “O nome da chamada era o que mais me incomodava. Eu comecei a querer rasgar essa imagem que as pessoas esperavam de mim. O nome é como tu te identifica na sociedade e eu não queria mais ser identificada como homem”, conta.

Diante da evasão escolar e da “rebeldia” de Cristyane, a mãe, evangélica, se viu desesperada e visitou um pai de santo do bairro. “Ele disse para minha mãe que ela não tinha problema com o filho e sim com a filha. Que minha mãe tinha um casal e não dois meninos. Ela voltou para casa e me perguntou se era isso. Nós choramos e dali em diante eu não precisava mais me esconder em casa”, fala. Preocupada com o preconceito e a violência, a mãe de Cristyane disse que era melhor que a filha se transformasse após os 18 anos.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“O primeiro homem que se interessou por mim nem percebeu que eu não era mulher. E foi amor a primeira vista. Ele perguntou para um amigo nosso em comum quem eu era e disse que eu era muito bonita. Todos riram, ele não se deu conta e me levou para andar de moto com ele. Ai ficamos dois anos e meio namorando, mas, quando a família dele descobriu, tivemos que nos separar”, conta a transexual, que hoje é casada há 10 anos.

“Eu sempre preferi contar logo de cara, porque sei que é importante para evitar constrangimento ou criar expectativas nas famílias. Eu não acho que mulher tem que ser vista como para procriação. Temos que ser aceitas como somos, desde o começo. O meu marido, quando me apresentou (aos pais), disse que eu era operada e eu o desmenti. ‘O que eu tenho no meio das pernas vai interessar apenas para o seu filho, para vocês interessa como eu vou tratar ele e vocês’ eu falei”, revela. “O meu valor está em como eu me expresso e quem eu sou, não ao que eu tenho no meio das pernas”.

Homem ou mulher?

É justamente não saber se reconhecer ou estar envolvido em uma série de traumas ao longo da vida que confunde transexuais e profissionais que trabalham nos grupos de apoio para cirurgia de transgenitalização. Em Porto Alegre, o Sistema Único de Saúde banca as cirurgias através do Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig) do Hospital de Clínicas. Foi lá que Cristyane conseguiu trocar de sexo e finalmente ser uma mulher completa, como sempre se sentiu. “Eu fiquei sabendo do programa quando assisti uma entrevista na TVE. Liguei para emissora umas quantas vezes para conseguir o telefone do consultório. Levou um ano e meio até conseguir entrar no grupo, ser aceita e poder fazer a cirurgia”, conta.

A mudança de sexo é concedida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 1997, quando o Conselho Federal de Medicina aprovou a realização da cirurgia por entender a transexualidade como doença. O grupo de acompanhamento da pré-operação realiza uma triagem para inclusão na lista de espera. As que frequentam o grupo têm até dois anos para estarem aptas a fazer a operação. Uma equipe multidisciplinar, com psicólogo, psiquiatra, fonoaudiólogo e assistente social orienta sobre a readequação entre sexo e gênero. “Eu acho super importante o acompanhamento neste período. Tem muitos que querem burlar o SUS e ir direto para a cirurgia ou fazem particular para ir mais rápido”, revela Cristyane.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Além da patologização da transexualidade, a cirurgia pelo SUS oferece outra dificuldade: a realização da cirurgia de ginecomastia não é mais realizada pelo Sistema. “Eu fui uma das últimas a conseguir a colocação das próteses mamárias. Em 2001 trancou e eu ainda aguardei seis meses para poder realizar a operação, já com a colocação do silicone”, disse. Porém, Cristyane considera que a luta das transexuais não pode se restringir a despatologizar a transexualidade. “Temos outras coisas para lutar, como conquistar a concessão da cirurgia para cordas vocais, recolocar a prótese mamária que antes era paga pelo SUS”, exemplifica.

Mais do que ser uma mulher por completo, Cristiany se incomodava em não ser reconhecida como tal. Alguns constrangimentos em locais públicos por ter o nome de batismo masculino, o qual atualmente não revela e faz questão de ignorar da memória. Foi com o auxílio de Maria Berenice Dias da Comissão Nacional da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB que encontrou a advogada Carla Jardim, responsável pela liberação da troca de nomes para as pessoas transexuais no Rio Grande do Sul. Na identidade, consta enfim o nome Cristiane de Oliveira Cristy – ela usa o nome Cristyane por opção pessoal. “Levou cinco anos para eu conseguir vencer a burocracia de mudar o nome. Não fosse eu encontrar a Dr. Carla Jardim, estaria até hoje esperando, eu acho. E o nome foi sempre o que mais me incomodou, porque para as outras pessoas não importa se eu tenho uma ‘b…’ no meio das pernas: só vão me identificar como mulher se eu tenho um nome na carteira de identidade”, disse.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Definitivamente mulher

Hoje ativista da causa LGBT(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), Cristyane participa das conferências e integra a Associação de Travestis e Transexuais – Igualdade. “Ser esteticamente uma mulher perfeita, operada, não é garantia de segurança contra preconceito ou exclusão social. Temos que lutar por todas as transexuais. Se eu não lutar por isso, outras podem não ter voz”, explica. Autora do blog Diário de uma transexual, a cabeleireira causa polêmica com suas opiniões. “Eu quis fazer o blog para informar as outras pessoas que podem estar passando o mesmo sofrimento que eu passei ou que precisam superar traumas neste sentido e vão se identificar comigo ou mesmo trocar experiência par isso. É uma função de quem consegue alcançar a sua transformação e ser completa como eu, mostrar a sua história e desmitificar essa nossa realidade. O que aquela Ariadna do BBB 11 não fez. Eu falei muito sobre isso. Ela aceitou participar de um reality show, mas não aproveitou a visibilidade em nível nacional para trazer o tema à tona. Não foi uma contribuição ela ter se exposto sem ter assumido seu gênero”, argumenta Cristyane.

Cristyane não concorda com a glamourização da transexualidade que o Brasil vive após BBB e a visibilidade dos LGBT com as recentes conquistas de direitos. “Muitas travestis que eu conheço há tempo se dizem transexuais e querem fazer cirurgia, porque acham bonito. Por outro lado, as transexuais não querem ser identificadas como tal por acharem feio. Nós transexuais e travestis somos mais vulneráveis do que os gays pelo fato de que eles ao sairem às ruas são homens, ‘normais’. Nós não podemos deixar o peito em casa, trazemos no corpo as marcas da construção de um gênero. Temos que nos trabalhar para nos identificar como somos e poder lutar pelos nossos direitos”, fala.

Hoje um nome, amanhã um mito, esta é minha assinatura. Sei lá, pode ser um sonho. De poder estar contribuindo para que outras mulheres ou transexuais consigam ser mulheres sem estar buscando a perfeição”.

Foto: André Carvalho/Sul21

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