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24 de dezembro de 2011
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08:30

Natal na prisão: culpa, saudade e um ano a menos de pena

Por
Sul 21
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Ramiro Furquim/Sul21

Rachel Duarte

O dia 16 de dezembro de 2011 reservou, para as 240 mulheres privadas de liberdade na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, uma festa de Natal. A comemoração é promovida anualmente por iniciativa da direção da casa. Porém, o milagre natalino manifestou-se de forma inesperada, indo além dos tradicionais comes e bebes oferecidos no dia livre das presas no pátio. O dia de sol intenso transformou-se, à tarde, em céu fechado e água torrencial. Uma chuva botou a maioria dos moradores de Porto Alegre para correr em busca de abrigo, mas lavou a alma de quem vive em celas fechadas e lotadas.

Enquanto os organizadores da festa corriam para baixo das marquises a fim de fugir da chuva como se tudo estivesse perdido, as apenadas gritavam de alegria com o banho inesperado. Quanto mais a chuva aumentava, maior era a empolgação das mulheres e meninas cercadas naquele pátio. Muitas não tomavam um banho de chuva há anos. A pedido delas, o pagode rolava solto nas caixas de som. Os rostos das detentas expressavam alegria, esperança e tudo aquilo que é sublinhado nos votos de Feliz Natal.

Ramiro Furquim/Sul21
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Quem assistiu, emocionou-se com a presença da magia que os fieis atribuem à festa religiosa mais celebrada no mundo. As funcionárias mais antigas se admiravam. Os que assistiam pela primeira vez (incluindo a equipe do Sul21) estavam atônitos.

“Para tu vir para cá, bastar tu estar lá fora. Uma atitude errada, na hora errada, ou uma companhia errada e tu vem pra cá”, disse uma das presas que conversou com a equipe do Sul21. A conversa aconteceu por indicação de outra presa que assistia à equipe de reportagem conversar com as apenadas através da cerca. “Vem cá que vou te colocar para falar com alguém bem legal”, disse ela.

Ramiro Furquim/Sul21
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Cada uma das mulheres do Madre Pelletier tem uma história singular para contar. L.P. (49 anos) vai passar o segundo Natal na cadeia por ter sido presa em flagrante fazendo escuta telefônica para uma quadrilha de traficantes. Com três casamentos, ela — que foi mãe solteira aos 16 anos — está longe dos quatro filhos a um ano e três meses. “No dia da festa de Natal nem lembramos que estamos na cadeia. O olhar das pessoas que trabalham aqui é outro para nós neste dia. Falamos de coisas boas. Para algumas não tem sentido mesmo o Natal, estão só por comer um bolo e um cachorro-quente. Mas, para outras, o dia é de celebrar o aniversário de Jesus. Tem todo o tipo de pessoa aqui. A sociedade diz que todos são bandidos. Mas não é bem assim”, falou.

“A minha apelação está em andamento e eu tenho fé que minha sentença vai cair. Se não cair, espero pelo menos reduzir o tempo. Estou perdendo muito da educação dos meus filhos e eles precisam da minha presença”, disse.

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O Papai Noel funkeiro

A direção da Penitenciária Feminina Madre Pelletier preparou uma programação cultural que tirou as presas das celas desde o começo da manhã. O almoço foi bem diferente do habitual: churrasco. Mas o momento em que as presas pareciam crianças aguardando a chegada do Papai Noel foi quando se aproximava da hora do show de funk exclusivo do MC Jean Paul.

Pela quarta vez consecutiva o funkeiro gaúcho aceitou o convite da casa prisional e trouxe seus hits para dentro da cadeia. “Eu acredito que cada um de nós tem um a missão. A minha, como artista e cantor, é proporcionar um momento de descontração para qualquer pessoa. Estas meninas estão pagando por algo que fizeram, mas têm emoções e estão aqui para serem fortalecidas enquanto seres humanos”, falou ao Sul21.

Ramiro Furquim/Sul21

Segundo MC Jean Paul, a discriminação é algo rotineiro para as pessoas em recuperação do sistema carcerário e entre os artistas que fazem carreira no funk. “Eu estou tentando quebrar este paradigma. O funk é um som discriminado, assim como estas meninas poderão ser quando deixarem a cadeia. Mas estou aqui para provar que tudo tem dois lados. Elas podem ser outras pessoas, com outros valores, assim como eu fiz no meio do funk. Rompi o estigma. Sei que tem músicas que envergonham e são ruins de escutar no funk, mas não é só isso. Além de um ritmo, o funk é cultura”, comentou.

Segundo o músico, ouvir as apenadas cantando e dançando ao som de suas músicas é gratificante. “Eu sei que a mensagem chegou onde tinha que chegar, seja na periferia, na cadeia, onde for. Aqui eu vi mulheres que, independente da situação que tiveram para vir para cá, estão unidas por uma energia positiva, de esperança e de alegria de viver”, relatou, após cantar e distribuir rosas para as presas.

O prato principal da ceia é a culpa

Além da festa de Natal, as apenadas do Madre Pelletier terão de presente a casualidade no calendário. Como a véspera de Natal será no sábado (24), dia de visita no presídio, os familiares poderão diminuir a solidão das internas na data.

Com a filha de quatro meses, C.S. irá passar o primeiro Natal acompanhada desde a prisão, no dia 23 de dezembro de 2010. “Além de ser antevéspera do Natal, é o dia do aniversário da minha mãe. E logo que eu fui presa, em Caxias, fiquei sabendo que estava grávida”, contou.

Ramiro Furquim/Sul21
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Como as mães presas podem ficar com o filho até o primeiro ano de vida, C.S. passou o último Natal com a filha na barriga e passará este também. Porém, no próximo Natal, quando ainda estará cumprindo pena, estará longe de mais uma filha. “Já tenho um nenê que fica com minha irmã. Eu fui presa por tráfico, por acompanhar os negócios do meu marido. Mas eu não quero voltar para esta vida quando sair daqui. Ele está preso e disse que vai seguir fazendo isso. Eu quero sair daqui e cuidar das minhas filhas”, afirmou.

Neste sábado (24), as famílias estarão arrumando a ceia para o momento de celebração da noite de Natal. Dentro da Penitenciária Feminina Madre Pelletier as apenadas estão decorando as galerias e terão uma ceia para compartilhar. Pela primeira vez, por decisão da direção da casa, elas poderão confraternizar até a meia-noite. Mas, depois disso, todas vão fazer o que todos os demais presos brasileiros estarão fazendo: dividindo um espaço superlotado nas celas.

Repórter: “Como vocês se sentem quando encerra tudo e as celas se fecham neste dia que vocês sabem que estão todos com as suas famílias?”

L.P : “Eu posso te dizer que desce sobre ti uma culpa muito grande. Que é só tua. E só tu pode lidar com isso. Tu que tem digerir aquilo e poder encarar o dia seguinte. Algumas pessoas se revoltam, outras refletem e adquirem um conhecimento sobre si que não tinham antes de vir para cá.

A psicóloga do Madre Pelletier, Josete Rosales, comenta que os atendimentos psicológicos aumentam, na época das tradicionais comemorações de final de ano. “Elas ficam mais sensíveis e reflexivas. O comportamento coletivo fica notoriamente diferente. Os casos de atendimento de emergência na psicologia aumentam significativamente. Elas tem queixas de saudade de casa, da família”, conta.

Ramiro Furquim/Sul21

“Aproveitamos que elas estão suscetíveis emocionalmente para propor uma reflexão sobre os gestos que as trouxeram até aqui e recuperar expectativas para o futuro”, explica. O tenente Antônio Carlos, do posto da Brigada Militar do Madre Pelletier, confirma que a ansiedade dos apenados é muito maior quando chega o final do ano. No caso das casas onde homens cumprem pena, o clima é de agitação. “Eles ficam doidos para ir embora nesta época. É a hora que mais dá vontade de estar livre e ir para casa. Os índices de conflitos e fugas aumentam”, disse.

“Aqui tu conhece o ser humano do avesso, tu vê o lado bom e o lado ruim”, afirma L.P. “Aqui, tu aprende tudo. Fica bem claro os dois caminhos que tu tem para seguir. Cada um escolhe o seu. A gente pode sair melhor ou pior do que quando entramos, depende de cada um de nós”.

Ramiro Furquim/Sul21
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