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2 de novembro de 2011
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09:31

A utopia da Casa A Electrica

Por
Sul 21
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Saverio Leonetti era uma figura. O italiano nasceu – as fontes divergem – em Cremona ou em Catanzaro, na província da Calábria, dia 16 de outubro de 1875. Chegou em Porto Alegre quando se acendiam as primeiras luzes do século XX. Tinha 25 anos, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender. Era um ragazzo solto no mundo – ainda que já casado – e em plena virada de século. Nada parecia difícil. Principalmente para quem tinha a mesma vontade de fazer a América que motivara tantos compatriotas seus a se mandarem para o outro lado do Atlântico (gente como, pra ficar em um exemplo, o pai de Radamés Gnattali, de quem ainda falaremos muito, e que havia feito o mesmo poucos anos antes).

Savério na época em que chegou a Porto Alegre

A saga de Leonetti começa numa terra que recebia buona gente aos magotes, importando até a máfia siciliana: os Estados Unidos. Aliás, falando em máfia, o pesquisador Hardy Vedana adorava contar a versão de que Leonetti teria engravidado uma moça de família cujo pai era ligado a essa turminha – e que, por isso, ele teria se mandado da Itália. A versão é cinematograficamente ótima, mas tão pouco comprovável que Vedana nem sequer a cita em seu livro definitivo sobre o tema: A Electrica e os Discos Gaúcho.

O fato é que nem Saverio nem seu irmão e companheiro de viagem Emilio acharam o que queriam em Nova York. Embarcam então em outro navio, para uma cidade que era, nesse momento, quase uma colônia italiana: Buenos Aires. A capital argentina recebera nada menos que 800 mil imigrantes vindos da Itália durante a segunda metade do século XIX. Ali, a influência dos oriundi é até hoje imediatamente conferível em qualquer breve lista de tangueiros, por exemplo: Piazzolla, Pugliese, Troilo, Berlingieri, Tarantino, Marconi, Di Sarli, Canaro…

Mas também não estava na capital portenha o que Leonetti procurava.

Contrariando todas as expectativas, ele se agradou mesmo foi de uma pequena capital regional, de pouco mais de 100 mil habitantes, chamada Porto Alegre. Tinha sido a penúltima escala do navio que os trazia dos Estados Unidos, e haviam ficado ali dois dias antes de seguir para Montevideo e, finalmente, Buenos Aires. Pois não é que aquele lugarzinho parecia ser o mais fértil terreno pras ideias do italiano?

Dito e feito: mal chegam a seu destino argentino, ele manda Emilio de volta pra capital gaúcha com a missão de alugar um prédio pra montarem uma loja. Enquanto isso, pega mais um navio, de volta aos Estados Unidos. Missão: comprar o primeiro estoque que vai abastecer a loja na cidadezita.

Resultado: em novembro de 1908, Saverio e Emilio Leonetti inauguram sua primeira firma, dedicada ao ramo de artigos de papelaria, cartões, postais, no varejo e no atacado. Vendiam também louças e brinquedos importados da Alemanha, França e Itália, instrumentos musicais, gramofones, discos e agulhas.

A loja também era a representante oficial das lâmpadas Osram para todo o estado – numa época em que a luz elétrica deixava rapidamente de ser um luxo de poucos para se espalhar pelos lares.

Deu-se muito bem o gringo. Em tempos novidadeiros como aqueles, Porto Alegre não fugia à regra.

Um dos assuntos de maior interesse eram os gramofones, que, devido aos seus altos preços, ainda eram privilégio dos muito ricos. Importado da Europa, na primeira década do século um aparelho desses custava entre 75 e 450 mil réis, quando o salário de um trabalhador não passava de 150 mil. Pra piorar, os únicos discos que havia também eram, em sua maioria, fabricados no Velho Continente. Chapas com as vozes de grandes tenores, como Caruso, ou álbuns com 20 ou mais discos de 78rpm registrando óperas completas. Todos caros: um único disquinho variava entre três e seis mil réis.

Capa do livro do Vedana, que vale procurar

Além disso, eram encontrados em apenas três endereços: a Relojoaria Guarany, a Guinle & Cia e a Au Palais Royal. Leonetti abriu um olho gordo pro negócio e, em 1911, muda o nome de sua loja – que ficava originalmente na Rua dos Andradas 275-A, depois no 413 e finalmente no 302 – para Casa A Electrica.

Chegava bem a tempo de pegar a explosão (mundial) de interesse no mundo da música gravada. Meia década depois, já passaria de uma dezena o número de estabelecimentos comerciais porto-alegrenses que vendiam gramofones, discos, agulhas e outros acessórios.

* * *

Enquanto isso, longe dali, desde agosto de 1902 a Casa Edison do Rio de Janeiro era a pioneira da gravação de música no Brasil. Seu dono era o tcheco naturalizado norte-americano Fred Figner, uma das figuras mais comentadas da Capital Federal. O cara tinha estratégia. Montara primeiro uma fábrica das suas máquinas Figner: fonógrafos com cilindros descartáveis e regraváveis, que eram o que havia de mais moderno então (que nem esses aqui). Logo depois, se pusera a gravar. Leonetti certamente prestou atenção nisso.

E aí se dá margem para o primeiro da série de equívocos que esse capítulo se propõe a esclarecer. É o que afirma que, quando começou seus trabalhos, a Edison era a única gravadora da América Latina.

Uma capa muito sugestiva da clássica revista argentina, de 1902

Só que em Buenos Aires, por exemplo, o primeiro estúdio de gravação (então chamado de laboratório de fonografia) é de 1900, e a primeira propaganda sobre discos gravados saiu na revista Caras y Caretas de 23 do mesmo agosto de 1902 em que a Edison começou seus trabalhos.

Ou seja: pra que os discos fossem vendidos, obviamente já tinham sido gravados. Além disso, só havia fábricas nos Estados Unidos e na Europa. Para percorrer o longo percurso oceânico de ida e volta, as gravações teriam de ter sido feitas bem antes de agosto de 1902. Ou seja: não. A Edison não foi a primeira gravadora da América Latina.

E nada garante que, de toda a América Latina, só em Buenos Aires se gravasse antes que no Rio. Haveria de se conferir isso pelo menos em mais dois ou três países (quem se habilita?). O mais irônico disso é que quem tem fama de se achar o centro do mundo são justamente os argentinos, e não os brasileiros…

Voltando a Leonetti, ele já tinha juntado um bom dinheiro vendendo suas novidades elétricas e acústicas. Foi quando pegou mais um navio, agora pra sua Itália, com uma ideia na cabeça. Arrecada lá dois outros irmãos, Aquiles e Carlo. E se vão os três para a Alemanha, onde compram o que de mais moderno existia na nascente indústria do disco. Traz junto com os equipamentos um profissional especializado pra treinar seus funcionários e uma série de matrizes de gravações alemãs – que mais tarde acabaria lançando como se tivessem sido gravadas por ele e tocadas por grupos gaúchos (o gringo não era fácil).

Atual estado do casarão

De volta à cidade, vai trabalhando na maciota. Primeiro atiça sua fama de bon vivant, amante da música e promotor de inesquecíveis festas em sua requintada chácara – que contava com bosque, jardins, pomar de árvores frutíferas, quadra de tênis, cancha de bocha e até um riacho particular. Ficava na Avenida Sergipe, 09 (hoje, 220), divisa dos bairros da Glória e Teresópolis (e o prédio está lá no mesmo lugar, tombado, abandonado, e se desmanchando. Leia mais aqui). Naquela época, para um porto-alegrense, isso era algo como a fronteira entre a casa do Chapéu e onde o Judas perdeu as botas. Por isso, o pessoal ia pras festas, e ficava – às vezes por dias.

Nessas celebrações fitzgeraldianas da Belle Époque, o quase quarentão pai de três filhos ia se enturmando com os melhores músicos da capital, e sentindo o terreno. Sabia o que queria: conquistar a amizade dessa gente boa, que no futuro seria gentilmente convidada a gravar – e não há provas, mas dá pra apostar alguns tostões que eles o fariam, na mais das vezes, de graça. Ou quase.

Quando a sociedade porto-alegrense já tinha comprado um número significativo de gramofones importados, aparece o óbvio: era preciso ter o que tocar nos aparelhos que ocupavam lugar de honra nas salas de estar (é bom lembrar que rádios ainda não existiam, e TV nem em sonho).

Hora de botar em andamento a segunda parte do plano. Se a Casa A Electrica vendia gramofones, nasceriam os Discos Gaúcho para gravar e fabricar o que tocar nesses aparelhos.

Sim.

O cara montou na sua chácara uma gravadora (o destino fez com que ele não pudesse utilizar o nome A Electrica porque outro empresário local – Engelbert Hobbing – havia registrado a marca para a eventualidade de começar a fabricar discos, o que nunca aconteceu, mas comprova que a coisa tava estourando no interesse popular).

Mais ou menos nessa época, dezembro de 1912, Fred Figner inaugurara finalmente sua própria fábrica, no Rio, em parceria com a multinacional Odeon. A partir dali, ainda que um punhado de outros pequenos selos surgisse na capital federal, a Odeon-Casa Edison reinaria absoluta. Afinal, era a única com capacidade de prensar o que gravava sem ter de mandar as matrizes para o exterior.

Por isso, quando Fred ficou sabendo, meses depois, que a Casa A Electrica do nosso Saverio Leonetti iria também lançar uma gravadora, quase teve um piripaque. A Odeon tinha filiais em São Paulo, Pará e Bahia, e a iniciativa porto-alegrense se apresentava como uma grande pedra no sapato em sua próxima pretensão expansionista: o Rio Grande do Sul. Era preciso agir rápido.

Na Praça da Alfândega (mais especificamente Rua dos Andradas, 289), existia a tradicional Casa Hartlieb – dos músicos Theodoro Hartlieb & Irmão, parentes do futuro cantor e compositor Carlinhos Hartlieb. Os Hartlieb vendiam instrumentos musicais de todos os tipos, afinavam e arrumavam pianos, órgãos e harmônios, imprimiam, publicavam e divulgavam partituras de compositores locais e vendiam discos e fonógrafos de várias fábricas. Pra completar, tinham exclusividade no sul do Brasil para o catálogo da Casa Edison-Odeon. Em 1908, haviam até recebido uma equipe enviada por Figner à capital gaúcha. Equipe que gravou algumas chapas com artistas locais e chegou a colocá-las à venda, mas sem maiores repercussões.

Pois então: os Hartlieb seriam os aliados naturais na primeira tentativa de Fred em derrubar Leonetti. Ele manda novamente para o sul equipamentos e dois funcionários – um deles chamado João Gonzaga, e é possível que seja o mesmo João Gonzaga marido de Chiquinha Gonzaga (que se passava por filho adotivo dela, mas isso não vem ao caso).

Em poucos dias, na pressão, a equipe registra 102 músicas (28 delas, composições de Octavio Dutra, mas também muita coisa de Edu Martins e alguns registros únicos de instrumentistas como o também compositor e violonista Álvaro Mabilde). Esses discos foram prensados no Rio, e lançados dia dois de julho de 1913. O selo se chamava Discos Rio-grandense, e ainda tiraria mais duas fornadas – a última delas chegando na cidade em 12 de outubro do mesmo ano, e vendendo milhares de cópias em poucos meses. Teria dado certo, não fosse o ímpeto com que Leonetti entrou no mercado, soterrando os projetos expansionistas da Odeon.

* * *

Link para o trailer do já polêmico documentário que o Gustavo Fogaça, o Guffo, rodou ao mesmo tempo que o seu longa — DE FICÇÃO — inspirado na Casa A Electrica e na saga de Leonetti. Nenhum dos dois foi lançado comercialmente ainda, mas prometem!

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Link para o promo do longa citado aí em cima. Começa parecido, depois muda. Pode ver só este aqui.

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Ah, sim. Tem também muita coisa da Casa A Electrica e dos Discos Gaúchos no nosso soundcloud.


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