Nubia Silveira (texto) e Flavia Boni Licht (consultoria)
Apenas um dos três prédios construídos ao redor da Praça da Matriz, entre 1818 e 1857, mantém a sua função original: o Theatro São Pedro, que teve suas obras iniciadas em 1833. Os outros dois também se transformaram em áreas dedicadas à cultura. Iniciado em 1857, para ser sede da Assembleia Legislativa provincial, o prédio localizado na esquina da Rua Jerônimo Coelho, popularmente conhecido como Forte Apache, abriga, hoje, o Memorial do Ministério Público, cujas fotos foram identificadas, na semana passada, pela leitora que identifica apenas como Fátima. O mais antigo dos três, cuja construção iniciou em 1818, destinava-se a ser moradia do presidente da Província do Rio Grande do Sul, José Feliciano Fernandes Pinheiro. Desde 1993, o Solar dos Câmara, construção residencial mais antiga de Porto Alegre, abriga o Departamento de Relações Pública e Atividades Culturais (DRPAC) da Assembleia Legislativa. Todos passaram por um longo período de restauro e estão abertos ao público.
Acompanhe a série patrimônio histórico:
– Viaduto Otávio Rocha, um alumbramento
– Restaurar custa três vezes mais do que conservar
– Travessa dos Venezianos clama por cuidados
– Concluída parte do restauro da Igreja da Conceição
– Falta tombar as telas do Instituto de Educação
– Obra de restauro da Praça da Alfândega termina em junho de 2012
— Patrimônio: Porto Alegre ganhará um novo centro cultural em 2012
— Patrimônio: faltam recursos para a ampliação do Museu de Porto Alegre
— Patrimônio: Paço dos Açorianos comemora 110 anos com “A Samaritana”
— Patrimônio: Palacinho poderá abrigar acervo de negativos de Calegari
— Patrimônio: Governo abrirá licitação para restauro do Piratini
Tanto o Memorial do Ministério Público quanto o Solar dos Câmara integram o Projeto Caminhos da Matriz, iniciado há quatro anos, pelos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Duas vezes ao mês, sempre aos sábados à tarde, os interessados podem conhecer a história dos prédios públicos, que se encontram no entorno da Praça da Matriz, nascida junto com a cidade de Porto Alegre. São dois os roteiros, oferecidos de forma alternada. Do roteiro 1 constam o Memorial do MP, também chamado de Palácio do MP, o Palácio do Tribunal de Justiça e o Museu Júlio de Castilhos. Do roteiro 2, Palácio Piratini, Solar dos Câmara e Arquivo Público. O historiador Álvaro Bischoff, coordenador substituto do Memorial do MP, afirma que, mensalmente, em média, participam dos Caminhos, 80 pessoas. Até agora, ele calcula que, em média, já tenham participado 4 mil pessoas.
Deputados não gostaram
Na época, os deputados provinciais não aceitaram o prédio como sede da Assembleia Provincial. Decidiram reformar o que ocupavam na Rua Duque de Caxias, hoje Memorial da Assembleia Legislativa. Mandado construir pelo vice-presidente da Província, comendador Patrício Corrêa da Câmara, quando no exercício da presidência, o edifício mudou, então, seu uso, sendo ocupado pela Diretoria Geral de Negócios da Fazenda, após a sua conclusão em 1871. A arquiteta Ediolanda Liedke, autora do projeto de restauro do prédio, diz que o seu valor, além de arquitetônico, é histórico, pois ali esteve instalado o Governo do Estado por 21 anos, enquanto era construído o Palácio Piratini. Três governantes despacharam no então Palácio Provisório: Júlio de Castilhos, Carlos Barbosa Gonçalves e Antônio Augusto Borges de Medeiros.
Ao longo dos anos, a construção passou por reformas e foi sede de vários órgãos públicos. Ali funcionaram os Telégrafos, a Diretoria de Obras Públicas, a Secretaria de Obras, a Diretoria de Higiene e Saúde e órgãos da Secretaria do Interior e Justiça. Mais tarde, já nos anos 1960, o edifício passou para a alçada do Tribunal de Justiça, funcionando ali as Varas de Família, a Escola Superior da Magistratura e o Centro de Funcionários dos Tribunais de Justiça e de Alçada. Em 1998, o Forte Apache volta para o Executivo, que o transfere para o Ministério Público, responsável pelo restauro iniciado em 2000 e finalizado em 2002.
Ediolanda lembra que no torreão mantido na restauração funcionou o primeiro Observatório Meteorológico do Estado, instalado em 1892, pelo então diretor das Obras Públicas, Terras e Colonização, Affonso Hebert. Em 1894 é construída a ala sul e, em 1899, o prédio ganha um novo torreão e um terceiro pavimento entre os torreões. Em 1906, surgem as cochoeiras e um local para a guarda presidencial. Segundo a arquiteta, para o projeto de restauro foi pesquisada a organização espacial do edifício, sendo identificadas suas paredes originais. “O que não era original foi removido. Ficaram os espaços existentes na obra iniciada em 1857”. Mas, não houve retorno à forma original de dois andares e dois torreões. Ediolanda lembra que quando foram iniciadas as obras de restauro o prédio estava em estado de “ruína avançada”.
O arquiteto Paulo Cesa afirma que “o restaurador é um segundo arquiteto”, devendo definir, junto com os técnicos dos órgãos do patrimônio, o que será mantido do original e o que será reciclado para a adaptação do prédio ao uso atual, sendo fundamental identificar as intervenções feitas. Ediolanda Liedke diz que no restauro feito no Palácio Provisório é possível ver o que é original e o que foi introduzido de novo, como o elevador e a escada, que facilitam a circulação entre os andares.
Ediolanda afirma que a arquitetura do Memorial do MP utiliza elementos clássicos, como frontões e colunatas, e do neoclássico. “Mas ele não é neoclássico. É mais eclético”, diz.
Sala dedicada às mulheres
Tombado pelo IPHAE em 1982 e pelo IPHAN, em 2003, o Memorial do Ministério Público conta com um acervo de 5.853 documentos, entre fotografias, notícias de jornais e de revistas, com informações sobre o Ministério Público e a Constituinte de 1988. Álvaro Bischoff ressalta a existência da Sala Sophia Galanternick Sturm, dedicada às mulheres que tiveram algum protagonismo no setor. Sophia foi a primeira mulher a ingressar no Ministério Público, em 1938, como promotora de Justiça. Três anos depois, foi convidada a se retirar. O Ministério não admitia ter em seus quadros uma mulher casada. Passaram-se 35 anos até que um grupo de mulheres ingressasse no MP, em 1976, aprovadas em concurso público. Na sala podem ser conhecidas todas as pioneiras do MP.
Bischoff diz que o Memorial trabalha com base em três linhas: história oral, pesquisas de caráter histórico e exposição e eventos. São mantidas entrevistas feitas com promotores e procuradores aposentados, servidores do MP, juízes, políticos e deputados constituintes. As entrevistas vão sendo organizadas em forma de livro. Sobre a Constituinte já há duas obras.
As pesquisas de caráter histórico são feitas no Arquivo do MP e em outras fontes como o Memorial do RS. Nesta linha, também, há livros publicados. Um deles é sobre a atuação do ex-presidente Getúlio Vargas como promotor público, nos anos de 1908 e 1909. As exposições e eventos têm como base as pesquisas realizadas. A última foi sobre o Movimento da Legalidade. Bischoff adianta que no próximo dia 24 haverá uma exposição com obras dos artistas que participam do movimento cultural pela preservação do Centro de Porto Alegre.
Obras e restauro lentos
O Theatro São Pedro, tombado pelo IPHAE em 1984 e pelo IPHAN, em 2003, levou anos para ser construído, principalmente devido à Revolução Farroupilha. As obras iniciadas em 1833 foram interrompidas em 1835, quando começou a Guerra dos Farrapos. O reinício ocorreu em 1850. O projeto do arquiteto alemão radicado no Brasil Phillip Von Normann, em estilo neoclássico, foi concluído oito anos depois. Em 27 de junho de 1858, o São Pedro foi inaugurado.
Mas, a tão esperada casa de espetáculos, frequentada por grandes nomes das artes e da política, como Villa-Lobos, Olavo Bilac, Getúlio Vargas e Borges de Medeiros, logo foi declarada em estado de abandono. Em 1884, enfrentou um incêndio, que lhe causou grandes danos.
No século XX, o Theatro foi se deteriorando até fechar suas portas. Em 1975, dona Eva Sopher foi convidada pelo governador Synval Guazzelli a assumir a direção do São Pedro. Ela foi encarregada de providenciar no restauro dos 1.880 metros quadrados da casa, missão na qual se jogou de corpo e alma. Nove anos depois, em 27 de junho de 1984, o Theatro voltou a abrir suas portas, exibindo as pinturas do forro com motivos da flora e da fauna gaúchas, feitas pelos artistas plásticos Léo Dexheimer, Plínio Bernhardt, Danúbio Gonçalves e Carlos Mancuso.
O projeto de restauração, que, segundo dona Eva, foi uma reconstrução – só ficaram em pé as paredes externas – é assinado pelo arquiteto Carlos Mancuso. O arquiteto Paulo Cesa reconhece o trabalho de Mancuso, mas afirma que a restauração comandada pelo colega foi polêmica. “Os teatros eram mais austeros. Com o restauro, o São Pedro adquiriu um glamour, um fausto, que não tinha”, diz Cesa. Ele também lamenta a destruição, nos anos 1950, por um incêndio, do prédio gêmeo do São Pedro. Em seu lugar foi construído o Palácio da Justiça. Cesa lembra que os dois prédios formavam um portal com a Praça da Matriz.
Uma obra silenciosa
Dona Eva, que lutara pela restauração do São Pedro, passou a se dedicar a um novo projeto: a construção do Multipalco, projetado pelos arquitetos Dalton Bernardes e Júlio Collares, que venceram um concurso nacional de projetos. Júlio qualifica a arquitetura proposta para o maior complexo cultural da América Latina de “obra silenciosa”. Ele explica: “Este é o tipo de arquitetura que não busca protagonizar. É uma arquitetura mais serena, silenciosa, com alta qualidade, sem vocação para proeminências no contexto em que se encontra. É uma arquitetura que respeita o contexto”. Júlio diz que ao pensar uma obra é preciso ter “noção de perenidade”. E brinca: “Ela é feita para gerar belas ruínas”.
Qual o estilo do Multipalco, agregado ao centenário Theatro São Pedro? O arquiteto responde: “Nossa arquitetura é contemporânea. É um edifício de hoje. Não passa ideia nem do Theatro São Pedro nem do Tribunal de Justiça”. Ele lembra que o projeto original sofreu algumas mudanças, como a capacidade da sala principal de concertos, que passou de 420 lugares para 650.
O principal conceito do projeto foi o de criar uma praça que revelasse o lado do Theatro São Pedro oposto ao da Rua General Câmara. “Eles são iguais e o lado Oeste estava escondido”, lembra Júlio. A praça é o ponto de ligação entre a Praça da Matriz e a Rua Riachuelo. E é abaixo dela que está o Teatro do Multipalco. “É um conceito meio de caverna, de coisa escavada”, afirma o arquiteto.
Uma das peculiaridades da obra do Multipalco apontadas por Júlio Collares é que ela cresceu de cima para baixo. “Foi uma estratégia de obra interessante”, acredita. Ele também acredita que o Multipalco pode ser logo inaugurado, pois falta apenas a finalização. Em entrevista ao Sul21, no início de agosto passado, a presidente do Fundação Theatro São Pedro, Eva Sopher, disse que o Multipalco poderá estar concluído dentro de dois anos, se obtiver os R$ 18 milhões necessários para as obras finais. Em 2012, devem ser abertas ao público quatro salas múltiplas e a da Orquestra de Câmara.
Moradia de políticos
A arquitetura do Solar dos Câmara, tombado pelo IPHAN em 1963, era a colonial luso-brasileira, do início do século XIX. Aos poucos, com as reformas pelas quais passou, perdeu as características iniciais. Paulo Cesa diz que o prédio, atualmente, tem uma linguagem eclética. Isto se deve às reformas modernizantes feitas por quem usou o local. “As mudanças de estilo acontecem, também, devido aos Códigos de Postura que passam a exigir modificações nos prédios”, afirma o arquiteto.
Construído para ser residência, no início do século XIX, o Solar contava com um terraço do qual se tinha uma bela vista para o Guaíba e uma senzala no porão. No restauro, feito pelo arquiteto Edgar Bittencourt da Luz, “o melhor restaurador”, de acordo com Cesa, a senzala passou a integrar a casa.
O Solar teve apenas três moradores. O primeiro – José Feliciano Fernandes Pinheiro — passou a ocupá-lo em 1824, quando terminaram as obras. Chefe da Alfândega do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, ele foi nomeado o primeiro presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. E por ter trazido os primeiros imigrantes alemães para o Estado recebeu o título de Visconde de São Leopoldo. José Feliciano viveu no Solar até a sua morte, em 1847.
José Antônio Corrêa da Câmara, segundo visconde de Pelotas e primeiro governador do Estado do Rio Grande do Sul, nomeado após a proclamação da República, casou-se com Maria Rita Pinheiro Corrêa da Câmara, uma das filhas do visconde de São Leopoldo, e tornou-se o segundo morador do Solar. Em 1874, o casal fez a primeira reforma, ampliando a área construída e adornando a casa com lustres, tapetes, cristais e rendas. O terceiro e último morador foi Armando Pereira da Câmara, descendente dos viscondes de São Leopoldo e de Pelotas. Armando foi político, tendo sido eleito senador pela Frente Democrática em 1954. Foi também professor nas faculdades de Direito e Filosofia e reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ele viveu no Solar até 1975.
A Assembleia Legislativa adquiriu o Solar, local de grandes reuniões políticas, em 1981, instalando ali o antigo Departamento de Atividades Culturais (DAC). As obras de restauração tiveram início em 1988, sendo concluídas em 1993. Hoje, funciona no Solar o Departamento de Relações Públicas e Atividades Culturais (DRPAC). Nele está a Biblioteca Borges de Medeiros e a sala de exposições fotográficas J.B. Scalco. O espaço é aberto para espetáculos gratuitos de música, que fazem parte do projeto Sarau no Solar.
Endereços:
— Memorial do Ministério Público — Praça Marechal Deodoro, 110, Centro Histórico – Porto Alegre
Fone: 51. 3295-8650 — FAX: 51. 3295-8650 Ramal: 8663
Pesquisas devem ser previamente agendadas
— Theatro São Pedro – Praça Marechal Deodoro – Centro – Porto Alegre
Fone: 51. 3227-5100 / 3227-5300
Horário da bilheteria: Dias úteis – das 13h às 18h30min, quando não há espetáculos noturnos, e das 13h às 21h, com espetáculos à noite. Sábados: das 15h às 21h. Domingos: das 15h às 18h
— Solar dos Câmara – Rua Duque de Caxias, 968 – Centro Histórico – Porto Alegre
Fones: 51.3210-2003 e 3210-2924
Horário de atendimento: de segunda a sexta, das 8h30 às 11h30 e das 13h30 às 18h30.
De onde são?
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