Notícias
|
30 de outubro de 2011
|
12:46

Patrimônio: Porto Alegre tomba e restaura prédios históricos

Por
Sul 21
[email protected]


Nubia Silveira (texto) e Flavia Boni Licht (consultoria)

Ramiro Furquim/Sul21

Dois bens tombados pela Equipe do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural — EPHAC, de Porto Alegre, na segunda metade do século XX, foram também restaurados com recursos municipais. O Mercado Público Central, tradicional ponto de encontro de moradores da cidade e visitantes, nasceu em 1869, já sob a proteção do poder público municipal. A Casa Torelly, exibida em detalhes na edição de domingo passado, e reconhecida pelos leitores Jorge Luís Stocker Jr. e Suzana Schunck Brochado, foi construída em 1899 pelo coronel Salustiano Fernandes dos Reis. Recebeu, no entanto, o nome do segundo morador, Firmino Torelly, que a adquiriu em 1902. E passou a pertencer à cidade na segunda metade do século passado. O Mercado Público foi tombado em 1979 e a Casa Torelly, em 1987.

Acompanhe a série patrimônio histórico:

– Viaduto Otávio Rocha, um alumbramento
Restaurar custa três vezes mais do que conservar
Travessa dos Venezianos clama por cuidados
Concluída parte do restauro da Igreja da Conceição
Falta tombar as telas do Instituto de Educação
– Obra de restauro da Praça da Alfândega termina em junho de 2012
Patrimônio: Porto Alegre ganhará um novo centro cultural em 2012
— Patrimônio: faltam recursos para a ampliação do Museu de Porto Alegre
— Patrimônio: Paço dos Açorianos comemora 110 anos com “A Samaritana”
Patrimônio: Palacinho poderá abrigar acervo de negativos de Calegari
Patrimônio: Governo abrirá licitação para restauro do Piratini
Patrimônio: quatro mil pessoas já participaram do Caminhos da Matriz
Patrimônio: restauro da Igreja das Dores será concluído em 2012
Patrimônio: mais dois prédios do Centro Histórico serão restaurados

Mercado Público de Porto Alegre foi construído em 1869 l Foto: Museu de Porto Alegre

Quando o antigo mercado, construído em 1844, ficou pequeno para atender as necessidades de Porto Alegre, um novo foi projetado pelo arquiteto alemão Friedrich Heydtmann, em estilo neoclássico. Com o passar dos anos e o crescimento da cidade, o Mercado Público Central foi sofrendo intervenções. A primeira delas ocorreu pouco depois de sua conclusão. Construído com planta em forma de um grande quadrado, o Mercado tinha um pátio no centro, que foi calçado e arborizado no período de 1871 a 1873. Treze anos depois, em 1886, também no pátio, foram construídos alguns chalés de madeira, locais de venda de diversos produtos.

Inicialmente, a construção tinha apenas um pavimento l Foto: Museu de Porto Alegre

No início do século XX, em 1912, o Mercado, que havia sido construído com apenas um pavimento, ganhou o segundo e a fachada que mantém até hoje. Nesse mesmo ano, o prédio enfrentou o primeiro de quatro grandes sinistros: o incêndio que destruiu as bancas internas, reconstruídas, então, com estruturas metálicas, antes inexistentes. O segundo grande problema enfrentado por comerciantes e clientes foi a enchente de 1941. Em 1976 e 1979 ocorreram outros incêndios.

A grande enchente de 1941 foi um dos problemas enfrentados pelo Mercado l Foto: Museu de Porto Alegre

As entradas pelos portões das quatro faces formam um caminho que se cruza no centro do Mercado. Esta área em forma de cruz foi coberta em 1962. Ali, também, onde os caminhos se cruzam, conta a lenda, foi colocado o orixá Bará, que nas religiões de origem africana, simboliza fartura, trabalho e a abertura e fechamento de caminhos. A arquiteta Vera Becker, que juntamente com o arquiteto Téo Neditsch coordenou as últimas obras de restauro do Mercado, nos anos 1990, afirma que nas pesquisas feitas nada de físico foi encontrado no local.

Prédio do Mercado tem o formato de um quadrado, com um pátio interno, que foi coberto l Foto: Museu de Porto Alegre

Autenticidade do bem tombado

— Com tantas intervenções sofridas pode-se dizer que o prédio do Mercado Público é autêntico?

Quem responde é a arquiteta e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) Sandra Barella. “Sim – diz ela – é absolutamente autêntico”. As intervenções sofridas estiveram de acordo com cada fase da vida do prédio. Vera Becker complementa: as escadas rolantes, por exemplo, colocadas durante o último restauro, estão de acordo com o nosso tempo. E quem passa pelo Mercado sabe muito bem o que é antigo e o que é novo. É mais ou menos como uma pessoa que, com os anos, vai adquirindo marcas, manchas e rugas. Uma operação plástica pode remover alguns destes traços, mas quem a olha sabe diferenciar o velho do novo, podendo ver naquela pessoa as diversas fases de sua vida. “O Mercado – afirma Sandra – é um original restaurado. Corresponde aos diferentes graus de originalidade de sua longa vida”. Desde que foi construído, na segunda metade do século XIX, a função do Mercado permaneceu a mesma: a de uma forma ou de outra, abastecer a cidade, o que reforça a sua autenticidade.

Destruição: o mercado foi atingido por três incêndios, em 1912, 1976 e 1979 l Foto: Museu de Porto Alegre

Sandra Barella alerta que há cartas internacionais, como a de Veneza, que orientam o trabalho de restauração. E mais: as intervenções correspondem às instâncias histórica e estética. Historicamente, há dois momentos a serem considerados: o da construção/produção do bem e o de quando ele é reconhecido como sendo de valor histórico para receber o restauro. “Não há hierarquia do que é mais ou menos importante”, diz a professora da UCS. “O autêntico é o que corresponde ao momento histórico”.

O Mercado em foto de 1909 l Foto: Museu de Porto Alegre

Barella afirma que “a instância estética é expressa pela tipologia, pela forma, que mostra a representação de valores, o desejo do momento.” Os profissionais envolvidos no restauro estão autorizados a intervir na forma e a interpretá-la, respeitando os valores de cada época. É preciso, porém, cuidado para não ultrapassar limites, apesar de a arquitetura – alerta a professora – ser um processo vivo, que acompanha o momento contemporâneo. Atualmente, os limites são dados pela Carta de Veneza. “Não há modelo para intervenção”, afirma Barella. “Há que se desenvolver a forma e não repeti-la”.

Em 1957, os bondes faziam parte da paisagem da cidade l Foto: Museu de Porto Alegre

Manter algo intacto, como alguns pregam, “é quase uma impossibilidade”, alerta Sandra. “Isto pode implicar uma falsificação, pois é da natureza da matéria física se modificar”. Manter algo intacto dá noção de falsidade. A professora defende a conservação permanente, “evitando um restauro em que inevitavelmente se perdem partes”. Por outro lado, a adição, o acréscimo, em favor da atualização garante a conservação e o uso, de acordo com necessidades e exigências contemporâneas. Um exemplo são as escadas rolantes colocadas na Galeria Chaves, no Centro de Porto Alegre, ou as rampas que permitem o acesso de pessoas com deficiência a prédios históricos. Mas, é preciso ter cuidado para que esta atualização esteja de acordo com o seu tempo e o uso do prédio, a fim de valorizar a autenticidade.

Ramiro Furquim/Sul21

A arquiteta Vera Becker deixa claro que dotar o Mercado de redes elétrica e de água, que não existiam quando foi construído, não tira dele a autenticidade. Torna-o contemporâneo e possibilita o seu uso por mais tempo. “A escada rolante colocada ali também é fruto da contemporaneidade”, diz. “As pessoas percebem o que é antigo e o que é atual”.
Quase uma década em restauro

A restauração do Mercado Público, lembra a arquiteta Vera Becker, se prolongou de 1991 a 1997. Ela diz que neste período passava os seus dias no local, fazendo pesquisas. “Não havia plantas disponíveis; a história era toda fragmentada e havia mais de 100 permissionários”, declara a arquiteta. “Fomos com calma, para não romper vínculos”.

Vera ressalta que do restauro do Mercado não participaram apenas arquitetos. Estiveram envolvidos outros profissionais, como historiadores, arqueólogos, economistas, sociólogos e cientistas sociais. E esse grupo multidisciplinar, sempre necessário nas ações de restauro, antes de definir o que fazer, analisou o perfil dos frequentadores do Mercado. “O perfil dos usuários dos bares e restaurantes do lado voltado para a Praça Parobé, por exemplo, é diferente do dos frequentadores dos bares e restaurantes do lado da Avenida Borges de Medeiros ou do Largo Glênio Peres”, esclarece. A relação com a comunidade muda à medida que muda a vida na cidade e o entorno do prédio. Hoje, a Praça Parobé não existe mais. Transformou-se “num estacionamento de ônibus”.

Ramiro Furquim/Sul21

Uma das diretrizes do restauro era recuperar o conceito de pátio interno e a arquitetura voltada para ele. Assim, permaneceram ali algumas construções com características da ocupação original. As demais foram retiradas. Também foi recuperada a cobertura do pátio. Neste caso, os integrantes da comissão, formada por técnicos das secretarias municipais de Indústria e Comércio, Cultura, Obras e Planejamento, decidiram por uma cobertura alta, que dá proteção aos comerciantes e aos clientes, “identificada como intervenção do final do século XX, não se confundindo com o original do prédio”.

A equipe também resolveu, por consenso, pintar o prédio de amarelo ocre, porque foi com esta cor que o Mercado “se incorporou à paisagem da cidade”. Nos tempos iniciais, ele era pintado de várias cores. Cada comerciante escolhia a que mais o agradava para pintar o seu local, tirando do prédio a ideia de continuidade, de um conjunto. Houve época, também, em que esteve pintado de cinza.

O estilo do Mercado porto-alegrense, explica Vera, é o neoclássico tardio, pois quando foi construído na província, a arquitetura já tinha evoluído na capital do Império. O segundo pavimento e os adornos, segundo a arquiteta, já apresentam linguagem eclética.

Um típico exemplar neoclássico

O casarão da Avenida Independência foi adquirido por Firmino Torelly em 1902 | Ramiro Furquim/Sul21

Neto de Firmino Torelly, líder do Partido Libertador, o arquiteto Nestor Torelly afirma que o casarão comprado por seu avô na Avenida Independência é um exemplar típico do neoclássico de província. “Imitava as construções do período imperial, mas de forma mais simplificada”, diz. “Ele comprou a residência para acolher toda a família”.

Firmino Torelly nasceu em 1860 e faleceu em 1949. Seus ancestrais vieram da Itália no século XVIII, antes da chegada da grande leva de imigrantes italianos, no século XIX. Ele estudou engenharia agronômica nos Estados Unidos e, para frequentar a universidade norte-americana, conta o neto, precisou fazer o serviço militar naquele país, tornando-se oficial de cavalaria. Apesar de gostar de política, militando, primeiramente, no Partido Federalista e logo no Libertador, ao lado de Raul Pilla e Assis Brasil, Firmino nunca aceitou concorrer a qualquer cargo.

Casa foi construída no estilo neoclássico de província l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Dono de terras e imóveis – a neta Elizabeth Bastos Duarte, chamada de Bebete pelos parentes e amigos, lembra que ele chegou a ter 190 casas em Porto Alegre –, Firmino fez fortuna e casou-se duas vezes. A primeira, com a paulista Albertina. Teve oito filhos com ela. A segunda, com a pelotense Ernestina Amaro, a dona Tinoca, com quem teve quatro filhas. A primeira mulher faleceu em Montevidéu, para onde a família viajou, fugindo de perseguições políticas. Albertina foi vítima da gripe espanhola, conta o neto Nestor, que guarda boas lembranças do casarão.

O arquiteto recorda as luminárias e o mobiliário antigos e as pinturas nas paredes. “A mobília da sala de visitas havia pertencido a um dos presidentes uruguaios. Não lembro qual”, afirma. Bebete diz que os móveis “eram meio principescos, cravejados de madrepérola, tendo no centro um brasão com as iniciais do nome do avô, F.T”. Nestor revela ainda que Firmino possuía uma grande coleção de mapas e moedas.

A Casa Torelly foi construída em 1899 pelo coronel Salustiano Fernandes dos Reis l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Tanto Nestor quanto Bebete, professora aposentada da UFRGS, lecionando, atualmente, no pós-graduação de Comunicação da UFSM, lembram que a casa, de frente para a Avenida Independência, tinha saída para a rua Barros Cassal e um imenso pátio. A área construída, diz o arquiteto, é de 400 metros quadrados. Ele afirma que, hoje, o prédio “está muito sacrificado” e defende que residências tombadas não sejam ocupadas pelo serviço público, o que, segundo ele, ajuda a deteriorar o prédio. A solução, diz Nestor, seria transformar as residências em centros culturais ou museus, como aconteceu com o Solar dos Câmara e o Solar Lopo Gonçalves.

Imóvel foi vendido para a Prefeitura em troca de índices construtivos l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Passagens secretas e saraus

Com a morte de Firmino e Ernestina, casa ficou para as filhas do segundo casamento. A mãe de Bebete, Lety Torelly Bastos, comprou a parte dos irmãos e se tornou dona do casarão. A professora de semiótica recorda com saudade os anos ali vividos. Foi no casarão que passou uma infância feliz, festejou os 15 anos e se casou. Com os irmãos e primos explorava o porão e o sótão. “Meu avô era dono de um imóvel ao lado do casarão, onde hoje tem um posto de gasolina e de outra casinha. Elas eram ligadas ao casarão por passagens secretas”, conta. O sonho das crianças era percorrer os “túneis”. Mas os pais impediam.

Todas as noites eram realizados saraus no casarão. “Os saraus começaram a acabar no final dos anos 1950, quando se comprou um aparelho de televisão”, lamenta Bebete. A porta da frente era mantida aberta. Sobre a mesa na sala de jantar havia sempre café. Os amigos desciam do bonde, entravam no casarão, tomavam um cafezinho e iam embora. O movimento era grande e constante.

Desde 1990, o casarão é sede da secretaria municipal de Cultura l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Bebete diverte-se ao falar sobre o casamento dos avós. Firmino já morava no casarão, quando se conheceram. Ernestina veio de Pelotas visitar um familiar e via Firmino passar a cavalo. “Trocavam olhares”, conta a neta. Decidida, Ernestina combinou com uma sobrinha que quando ele passasse, ela lhe diria, no tom mais alto que pudesse: “Tinoca, tu vais ao baile do Clube do Comércio?” Firmino ouviu e entendeu o recado. Os dois se encontraram no baile, dançaram e não se separaram mais.

Tinoca era, também, uma fiel partidária do PL. Não perdia uma reunião sequer. “Era colorada doente”, afirma Bebete.

A grande descoberta

Um dia – conta Bebete – as crianças descobriram um cofre num dos porões da casa. Curiosas, decidiram ver o que havia naquele objeto totalmente fechado. “Não sei como conseguimos abrir. Achamos lá dentro uma caixa de joias”, relembra. “A minha mãe não deixou ninguém tocar na caixa. As joias pertenciam à primeira esposa do meu avô e foram entregues aos filhos dela”.

Área construída é de 400 metros quadrados | Ramiro Furquim/Sul21

Apesar de sua pouca idade — tinha apenas três anos quando o avô faleceu –, a professora lembra do velório na sala de visitas e de ter pensado “em que cama bonita colocaram o vô”. A avó faleceu quatro anos depois e deixou uma grande marca na vida de Bebete. “Ela era alto astral e foi definitiva na minha vida”.

Lety, a última dona do casarão, decidiu vendê-lo para a prefeitura, porque não queria vê-lo destruído. “A mãe nunca cogitou demolir a casa”, afirma Bebete. Em 1980 trocou a casa por índices construtivos. Desde 1990, o imóvel é sede da Secretaria Municipal de Cultura.

Endereços

— Mercado Público – situa-se entre as Avenidas Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, o Largo Glênio Peres e a Praça Parobé – Centro Histórico de Porto Alegre
Fones: 51. 3289 4801 | 3289 4802 | 3289 4800
E-mail: [email protected]

— Casa Torelly – Avenida Independência, 453 – Porto Alegre
Fone: 51. 3289-8000

De onde são?

Olhe com atenção as fotos abaixo e escreva dizendo de que prédio histórico elas são.

Ramiro Furquim/Sul21

Ramiro Furquim/Sul21

Ramiro Furquim/Sul21

Ramiro Furquim/Sul21

Ramiro Furquim/Sul21

Ramiro Furquim/Sul21

Ramiro Furquim/Sul21

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora