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15 de outubro de 2011
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12:36

Mario Arregui & Sergio Faraco: correspondência

Por
Sul 21
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As cartas trocadas entre Faraco e Arregui estão disponíveis, em português, no livro Diálogos sem fronteira, da L&PM

Iuri Müller

“Tua última carta é fantástica: primeiro, propões um fiscal uruguaio para revisar minhas traduções, depois me promoves a teu representante bovino no Brasil. Se eu não tivesse um acentuado senso de humor, por certo te daria umas guampadas…” A resposta de Sergio Faraco a Mario Arregui mostra como evoluía a amizade entre o contista brasileiro e o contista uruguaio, mesmo após poucas semanas de contato. O humor se relaciona com dois pedidos curiosos de Arregui, morador da pequena Trinidad, cidade do interior do Uruguai – primeiro, sugeria a Faraco, que desde a primeira missiva se candidatava a traduzir os seus contos no Brasil, a ajuda de um revisor uruguaio no processo; depois explanava sobre a dureza da sua situação econômica e perguntava se o gaúcho não sabia de interessados no seu plantel de vacas holandesas.

Nas cartas de julho de 1981, o contato entre os contistas se estabelece. Faraco havia encontrado, anos antes, um livro de contos de Arregui em um bazar de Bella Unión, ponto da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Uruguai, e teve a ideia de traduzi-los para o português. Arregui, afetuoso o primeiro contato, aprovara a ideia com nítido interesse. Viajariam, desde então, centenas de cartas – de Porto Alegre a Trinidad; de Trinidad a Porto Alegre. Logo, surge a apresentação de cada um. Identifica-se Faraco: “sou um contista sem talento algum, autor de livros cuja edição deves creditar à bondade de raros editores. Em separado, te envio o último. Tenho 40 anos, sou advogado e não advogo, e pessoalmente não sou nada simpático. Minha mulher, contudo, há de achar que tenho alguns encantos”.

A polêmica edição da Francisco Alves para Cavalos do amanhecer, de Mario Arregui.
A polêmica edição da Francisco Alves para Cavalos do amanhecer, de Mario Arregui.

E então Arregui: “tenho 23 anos mais do que tu. Acho que não sou muito simpático, exceto para os amigos – tenho muitos e alguns, ai de mim, já estão mortos. Minha mulher, como a tua, terá uma opinião favorável sobre mim. Casei-me duas vezes. Acredito que a bigamia (ou melhor, a trigamia) é o estado ideal. Razões de idade me constrangem à monogamia. (…) Como tu, possuo terras, o que nunca me impediu de militar na esquerda. Essa militância, em 1977, custou-me quase 8 meses de prisão. (…) No último dia de 1978 tive um infarto e estive moribundo ou quase morto. Com um marca-passo, agora estou bem”. Na metade de 1981, Mario Arregui já havia publicado três livros de contos na Banda Oriental – El narrador, La escoba de la bruja e Tres libros de cuentos – e sabia de traduções de um ou outro conto seu para o russo, tcheco, alemão e italiano, mas não para o português.

O andamento da tradução dependia da lentidão dos correios, de cartas que atravessam a fronteira sempre com o risco de se perderem para sempre e de certa “adivinhação” do uruguaio, que pouco ou nada sabia do português, mas que era o único capaz de explicar alguns trechos indecifráveis em um primeiro momento. Impressiona o capricho de Faraco com o texto do agora amigo oriental – certa vez, quando já se havia selecionado os contos que comporiam o livro e o título do mesmo, Faraco madrugou em uma padaria para descobrir a que objetos Arregui se referia no conto intitulado “Os ladrões”. Como a publicação parecia próxima, chegava o momento de negociar com as editoras brasileiras. Uma carta de junho de 1982 desvela, com enorme sinceridade, a pobreza do mercado editorial uruguaio: “os escritores uruguaios, por causa da pequenez da nossa praça editorial, não estamos acostumados a receber dinheiro. Eu, em muitos anos, só recebi uns escassos pesos. Por causa da minha fodida situação financeira atual, não seria nada mal receber pouco ou quase nada, ou receber depois”.

“Eu teria alguns reparos a fazer sobre os dados biográficos. Apareço como mais preso político do que em realidade fui. Quando o atual governo tornou ilegal o PC, estive preso na delegacia de polícia por cinco ou seis dias, e fui muito bem tratado. Posteriormente, sim, estive num quartel militar, durante oito meses, e fui muito maltratado. (…) As duas outras vezes que me prendaram (por algumas horas) foram: a primeira, por pelea y desorden, e a segunda, junto com vários amigos, por ebriedad y escándalo. Acho que essas duas pouco iluminam minha biografia…”
Carta de Mario Arregui para Sergio Faraco, sem data precisa, de 1982.

Cavalos do amanhecer foi o título escolhido e oito, os contos selecionados. Além de responsável pela tradução, Sergio Faraco também assumiu a tarefa de buscar uma editora. Esteve entre duas ou três opções e decidiu-se pela Editora Francisco Alves, do Rio de Janeiro, que prometia o lançamento para antes da Feira do Livro de Porto Alegre, evento em que Mario Arregui participaria como convidado. Cogitou-se até mesmo uma viagem ao Rio de Janeiro para a divulgação de Cavalos do amanhecer no Sudeste do país – e o que parecia uma ótima ideia tornou-se uma desilusão para o tempo e o trabalho que dedicou Faraco. Sem apresentar o texto final ao tradutor após as últimas revisões, a editora surpreendeu com alterações drásticas: o tu, utilizado em contos cujo cenário era o campo uruguaio, tornou-se você; o verbo, no entanto, nem sempre acompanhava a mudança no tratamento escolhido pelo revisor. Mais além, os guris de Mario Arregui se tornaram garotos para a Francisco Alves, e o livro ficou com um ar artificialmente carioca.

'Nacido para despreciar todas las formas de lo adquisitivo, (Arregui) escrebía por una solo razón - le gustaba.' Manuel Flores Mora, político e escritor uruguaio.
"Nacido para despreciar todas las formas de lo adquisitivo, (Arregui) escrebía por una solo razón - le gustaba" (Manuel Flores Mora, político e escritor uruguaio)

Para Arregui, no entanto, Faraco diminuiu o impacto e disfarçou parte da decepção com a Francisco Alves – até porque a participação do escritor na Feira estava garantida e os contos, felizmente, venciam com força os erros da revisão final. Já em Porto Alegre, onde os contistas se encontrariam pela única vez, uma aparição algo suspeita movimentaria aqueles dias. Depois que Arregui, um crítico convicto da ditadura militar uruguaia, ainda vigente naquele 1982, criticou a situação política do país, fatos estranhos se repetiram em Porto Alegre. Em três oportunidades diferentes – após o lançamento do livro na Praça da Alfândega, no próprio City Hotel, onde Arregui estava hospedado e na Rodoviária – um mesmo homem fora visto com os olhos cravados nos passos do uruguaio. Se era um agente da polícia, um espia do consulado ou um exilado com saudades da pátria, como Faraco escreveu em uma nota posterior no jornal Zero Hora, não se soube até hoje.

Após o convívio em meio aos jacarandás da Feira do Livro de Porto Alegre, a amizade entre os contistas cresceu com ainda maior intensidade. As cartas seguiam, mais íntimas, ampliando os assuntos que um dia foram apenas um, a literatura. Faraco e Arregui discutiam os últimos anos da URSS, a Guerra das Malvinas, as ditaduras de Brasil e Uruguai, comentavam o Nobel de Gabriel García Márquez, escritor admirado pelos dois, a morte de Júlio Cortázar e a genialidade de Juan Carlos Onetti. Arregui brincava com os seus planos de adultério, nunca levados a cabo; Faraco se aproximava também da família do contista, principalmente do seu filho Martín, com quem se encontrou em mais de uma oportunidade em Porto Alegre. Entre os temas da amizade, apareceu, de forma natural, a paixão de Arregui pelo Peñarol e a desconfiança que Faraco mantinha com o futebol em tempos de repressão.

O alegretense Sergio Faraco traduziu dois livros de contos de Mario Arregui e trocou mais de cem cartas com o uruguaio.
O alegretense Sergio Faraco traduziu dois livros de contos de Mario Arregui e trocou mais de cem cartas com o uruguaio

Eram tempos propícios para os festejos futebolísticos do contista oriental. O Peñarol viveria uma das mais vitoriosas décadas dos seus 120 anos de história, com dois títulos continentais. O primeiro chegou em novembro de 1982, justamente quando a ditadura uruguaia dava claros sinais de estar vivendo os seus últimos anos. No dia 28, nas ansiadas eleições internas, a oposição alcançou a enorme maioria dos votos e o oficialismo sentiu uma derrota duríssima. Dois dias depois, no Estádio Nacional de Santiago, o aurinegro erguia o seu quarto troféu da Copa Libertadores, como conta um Arregui emocionado para o amigo brasileiro: “há minutos terminou no Chile o jogo Peñarol x Cobreloa. Peñarol, com garra e colhões, outra vez é campeão. O povo uruguaio está duplamente feliz”.

Foram mais de uma centena de cartas trocadas entre Sergio Faraco e Mario Arregui em uma amizade que durou pouco menos de quatro anos; da permissão para traduzir um par de contos ao falecimento do escritor uruguaio, em 1985. Talvez Arregui tenha encontrado em Faraco uma preocupação e uma valorização até então inéditas com os seus escritos e a sua carreira de escritor: após Cavalos do amanhecer, um segundo livro, cujos acertos se deram também por correspondências, foi traduzido pelo brasileiro. Trata-se de A cidade silenciosa, lançado no ano da morte de Arregui. Mas a amizade dos dois, como as cartas que venciam os territórios de dois países, foi muito além. Como Faraco escreveu depois, as cartas formam “a história de uma grande amizade. O quanto ela pode! Ele foi o meu maior e mais querido amigo. E eu o vi apenas uma vez”.

As cartas que serviram de fonte para o texto foram publicadas pela L&PM no livro “Diálogos sem fronteira”, de 2009.

Maurício Brum e Iuri Müller assinam, alternadamente, a coluna Futebol e Literatura todos os finais de semana no Sul21.


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