Colunas>Marcelo Carneiro da Cunha
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22 de agosto de 2011
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21:28

Viva a Líbia

Por
Sul 21
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Estimados sulvinteumenses, pois quero usar essas pessimamente traçadas pra dar vivas ao bravo povo líbio, que de arma na mão manda mais um pouco de lixo para a lata de lixo não-reciclável da história. Eu, caros leitores, sujeito insensível e neto da minha duríssima avó Jovita não consigo resistir e o beiço treme nessas horas.

Do que lembro da ditadura à brasileira, sei que nunca chegamos perto do que é ter um debilóide como o Kadafi no comando supremo de todas as riquezas de um país. E por isso mesmo era praxe aqui em casa a gente não levar muito a sério o tal mundo árabe. As teses predominantes, impregnadas do tal orientalismo ocidental, não eram nada favoráveis aos árabes. Eles pareciam condenados ao mesmo script sempre, pulando de uma autocracia para outra, saindo de uma ditadura de um rei de araque no Irã para mergulhar na escuridão teocrática da tal República Islâmica; desejando um paraíso no que viria a ser o Paquistão e caindo em mais um lamaçal cercado de miséria e violência por todos os lados. As mulheres forçadas a usar burcas ou similares, os homossexuais condenados à morte, a ausência de imprensa, e escassez de artes, a ocupação das periferias européias, tudo contribuía para perpetuar a imagem árabe como algo em permanente estado de derrota, dos muros de Viena até 1967, passando por Lepanto.

Pois como nada é permanente, além do lamentável estado do Grêmio nesse 2011, o mundo árabe explode nas mais emocionantes e arriscadas revoltas que já vimos. Os europeus orientais esperaram o império russo implodir antes de colocarem a cabeça pra fora, tendo assistido ao que foi feito com os bravos povos da Hungria e Tchecoslováquia em suas tentativas de libertação antes da exaustão do projeto soviético. Na América do Sul, os regimes autoritários caíram de maduro, com o fim da Guerra Fria, e nunca foram familiares ou modelados pra durarem para sempre. Os militares daqui, diferentemente dos Kadafi de lá, estavam apenas cumprindo tabela, e, terminado o que tinham vindo fazer, se foram.

Os Kadafi, não. Primatas dessa ordem operam por outros parâmetros, sendo o maior deles o da permanência. Ditadores acreditam que sua missão nunca se encerra, e que sua maior qualidade é a longevidade. Esgotado o próprio tempo, olham para o lado e para baixo e escolhem o mais psicótico dos filhos, o Jr, encarregado de tocar o barco em frente e a coisa toda se renova.

Pois os bravos líbios partiram para a luta, começando por um herói, um homem comum, que atirou o próprio carro contra um muro de quartel para dar ao povo as armas de que precisava. Tunisianos, egípcios, agora os líbios, em breve os sírios, todos enfrentaram ditaduras sanguinárias, naquela demonstração sublime do que o humano é, de verdade, quando resolve.

Ao mesmo tempo, jogaram por terra todos os argumentos ocidentais que os declaravam politicamente inadaptáveis ao século 20. Mostraram a todos, talvez até mesmo aos americanos, a insanidade da invasão do Iraque por George W. Bush. Mostraram que democracia só pode ser aquela que um povo cria para si mesmo, e que não existe outra. O Brasil não fez muito bonito nessa hora tão especial da história do mundo. Mesmo sendo o lar de milhões de imigrantes do mundo árabe, não nos envolvemos para nada. Não condenamos o Irã, não condenamos o Mubarak, que eu saiba, nunca demos muita bola para o Kadafi, mas nunca o mandamos para longe, para outro planeta, onde os ditadores deveriam estar. No papel de ultra-respeitadores das questões internas, fizemos de conta que tudo bem, quando árabes ávidos por liberdade eram massacrados. Nem ao menos reconhecemos o governo dos insurgentes líbios, caríssimos leitores. Nisso, fomos mal, muito mal.

Agora vem a hora em que as revoluções revelam suas reais cores. No começo, na vitória, todos são um. Após a vitória, todos mudam, e dessa mudança surge o país real que ansiava por existir, sob a ditadura. Belos movimentos de libertação dão lugar a regimes horrorosos. Que os árabes nem pensem em ir por esse caminho, é o que espero. Que aguentem firmes, e que assim sirvam de modelo aos chineses, que a qualquer momento vão fazer a mesma escolha, espero. Que aguentem firmes e lutem para criar novos e prósperos sistemas democráticos. Que eles, que nos deram essa lição de desprendimento e coragem, aprendam com as nossas conquistas, de países que se livram de seu passado colonial e aprendem a andar pelas próprias pernas e idéias.

O Brasil tem tudo para fazer a diferença. Os europeus têm o passado colonial; os americanos têm o presente, e os chineses, ninguém sabe.

Nós somos parecidos, também lutamos há muito tempo para convencermos ao mundo e a nós mesmos da nossa capacidade de caminhar sem o andador colonial. Nós já demos passos importantes nesse sentido, especialmente na nossa era Lula e bem que poderíamos transferir tecnologia de como deixar de ser, sem se perder no processo. Poderíamos transferir nossa tecnologia de tolerância religiosa, coisa que faz falta, e muita, por lá. Poderíamos exportar nossa intolerância – os Malafaia que nos atormentam -, para eles terem contra-exemplos de como ser e fazer. Poderíamos fazer tanta coisa que será um espanto se não fizermos nada. Façamos alguma coisa, façamos muitas coisas, é o que espero. Façamos logo. A hora certa é quando os ânimos estão no topo e a vida é generosa. Agora, por exemplo, porque daqui a pouco o Obama acorda e pronto, babaus.


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