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24 de agosto de 2011
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05:09

Queda de Kadafi não garante democracia na Líbia

Por
Sul 21
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Queda de Kadafi abre debate: o que será da Líbia sob um novo comando, e quais relações de força incidirão sobre os encarregados da transição | Foto: Reprodução/Al Arabiya

Igor Natusch

A queda de Trípoli pode significar, na prática, o fim dos 42 anos da ditadura de Muammar Kadafi. Mas não traz muitas certezas sobre o que será da Líbia. O Conselho Nacional de Transição afirma já ter controle de Trípoli e garante que seu alto comando sairá de Benghazi em direção à capital ainda nesta semana. A questão, segundo analistas internacionais, ganha uma nova dimensão: o que será da Líbia sob um novo comando, e quais relações de força incidirão sobre os encarregados da transição.

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Anthony Cordesman, especialista em Oriente Médio do Centro de Estratégia e Estudos Internacionais de Washington, teme que os novos donos do poder na Líbia venham a sentir rapidamente os efeitos da falta de experiência. “Não quer dizer que não possa dar certo”, afirma Cordesman, “mas a história nos diz que, nessas circunstâncias, quem primeiramente assume o poder geralmente não consegue mantê-lo. Podem se passar anos até termos progressos na Líbia”.

As dúvidas sobre o Conselho são de diferentes naturezas. Trata-se de um grupo heterogêneo, sem lideranças consolidadas e que traz dentro de si muitos desertores do próprio regime de Kadafi. A própria estrutura tribal da Líbia, formada por uma série de grupos geralmente antagônicos, seria uma barreira para o estabelecimento de uma unidade de governo. A morte do general líbio Abdel Fattah Younes é vista como sinal da falta de coesão do possível governo transitório: antigo número dois de Muammar Kadafi, Younes tornou-se líder das tropas rebeldes e acabou morto em uma emboscada, de autores ainda desconhecidos, em meio a acusações de que ainda estaria ligado ao regime do ditador líbio.

Pode ser difícil evitar um novo Iraque

O jornalista Robert Fisk questiona até mesmo a real dimensão da mudança em andamento na Líbia. “Passamos demasiado tempo exaltando o valor dos combatentes pela liberdade da Líbia em suas jornadas pelo deserto, e muito pouco tempo examinando a natureza do Conselho Nacional de Transição”, diz o correspondente no Oriente Médio do jornal inglês The Independent. Para ele, não há sinais de que a corrupção financeira e moral do regime de Kadafi será extirpada pelo novo governo, pelo contrário. “Mustafa Abdul Jalil (líder do Conselho) foi incapaz de explicar por que seus camaradas – e talvez ele mesmo – planejaram o assassinato do comandante de seu próprio exército no mês passado”, acusa.

O cientista político argentino Atílio Borón é ainda mais duro em suas palavras. “O Conselho Nacional de Transição é um bloco reacionário e oportunista, integrado por islâmicos radicais, socialistas, nacionalistas, bandidos, empresários, guerrilheiros e ex-militares”, descreve. “Não existem motivos para acreditar que instaurarão um regime democrático, uma vez que suas credenciais não são muito melhores que as Muammar Kadafi”.

Oliver Miles, antigo embaixador britânico na Líbia, usa termos menos incisivos, mas levanta dúvidas da mesma natureza. “Eles (rebeldes) estão preocupados em evitar um novo Iraque, mas pode ser uma situação muito complicada”, disse Miles em entrevista à Reuters. Para ele, seria fundamental que a vitória em Trípoli fosse rápida, de forma a consolidar a atual liderança do Conselho e facilitar o processo de transição.

Por outro lado, o advogado argelino Saad Djebbar, que já prestou consultoria ao regime de Kadafi no passado, acredita que, mesmo com a necessidade de evitar um “vácuo” no poder, os temores sobre o Conselho de Transição são desproporcionais. “O lado rebelde tem agido de forma extremamente responsável. Os perigos do processo de transição estão sendo exagerados”, acredita.

Não há acordo possível com Kadafi, diz historiador

Juan Cole, historiador da Universidade de Michigan, apoiou desde a primeira hora as intervenções da Liga Árabe e da OTAN. “Para mim sempre esteve claro que Kadafi não era um homem para se entrar em acordo, e que sua máquina militar chacinaria os revolucionários se tivesse a chance”, diz Cole em artigo traduzido pelo Amálgama. De acordo com o especialista em Oriente Médio, é forçada a ideia de que os Estados Unidos lideraram a intervenção internacional na Líbia – segundo ele, países como França e Reino Unido foram muito mais decisivos, na medida em que temiam uma luta que de anos entre Kadafi e os rebeldes trouxesse riscos à Europa. “O Pentágono e o próprio Barack Obama estavam extremamente relutantes”, argumenta.

O historiador faz uma crítica à visão de que a guerra na Líbia é motivada pelo domínio dos poços de petróleo. “Isso é tolice”, dispara. “A Líbia já estava integrada ao mercado internacional de petróleo e tinha acordos de bilhões de dólares com a British Petroleum e Ente Nazionale Idrocarburi. Nenhuma companhia gostaria de colocar seus contratos em risco para se livrar de um governante que assinou com elas esses contratos”, argumenta.

Cole acentua que conglomerados como ENI, Total SA e Repsol tiveram quedas nos lucros desde que a intervenção na Líbia teve início. Além disso, a ação militar acaba aumentando o preço do barril, o que é especialmente ruim para Barack Obama, na medida em que um eventual pico nos preços pode prolongar as dificuldades econômicas nos EUA. “Um argumento econômico para denunciar o imperialismo é sempre bom quando faz sentido, mas esse em questão não faz”, diz o historiador. “É, portanto, apenas uma teoria conspiratória”.

“Rebeldes ainda precisam ditar as próprias regras”

Mesmo que Muammar Kadafi não tenha mais controle sobre a Líbia, alguns analistas consideram precipitado dizer que o ditador está derrotado. É o caso do jornalista John Lee Anderson. Em artigo publicado pelo New Yorker, ele adverte que Muammar Kadafi é uma “raposa do deserto”, um “sobrevivente diabolicamente astuto” que vem se mantendo no poder há 42 anos. “Quando o suborno e a cooptação não se mostram possíveis, ele tem constantemente se mostrado mais esperto do que seus inimigos, fazendo uso da mentira e da traição”, diz Anderson. No momento, de acordo com o articulista, as principais cidades líbias vivem uma situação de caos – um panorama que favorece o próprio Kadafi, e não os rebeldes que querem derrubá-lo.

“Os rebeldes ainda precisam aprender a ditar as próprias regras”, diz John Lee Anderson. “Por enquanto, ainda estão apenas respondendo ao jogo de Kadafi. Mesmo que eles consigam tomar controle da Líbia com a ajuda da OTAN, ainda é preciso ver se serão capazes de instaurar um governo unificado. Kadafi não moldou apenas o campo de batalha; ele moldou a paisagem humana da Líbia por mais de 40 anos”.


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