Nubia Silveira (texto) e Flavia Boni Licht (consultora)
Quem vive ou tem negócios nas pequenas e antigas casas da Travessa dos Venezianos, na Cidade Baixa, em Porto Alegre, reclama do Município. A sensação deles é de abandono, apesar de viverem e trabalharem em prédios tombados pelo Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre, em 1980. O prefeito José Fortunati reconhece: “A Travessa é um caso delicado”.
Acompanhe a série Patriômio Histórico:
– Viaduto Otávio Rocha, um alumbramento
– Restaurar custa três vezes mais do que conservar
Vera Pellin, diretora da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa, considera um privilégio a Chico Lisboa estar instalada na Travessa dos Venezianos, numa “casinha linda”, construída como as outras 14 casas no início do século XX. “É nosso Pelourinho”, afirma, referindo-se ao ponto histórico de Salvador, Bahia. Para ela, a Travessa é um ponto cultural e turístico e precisaria de maiores cuidados por parte do Poder Público. “Não tem luz na rua. Só duas lâmpadas de 60 watts”.
A reclamação da diretora da Chico Lisboa é reforçada por Vera Regina Martins, dona de uma das casas há 30 anos. “Não há luz, os carros andam pela Travessa e destroem tudo”, revolta-se. Tida como a xerife do local – “brigo muito. Gosto de controlar a rua. Não deixo destruir” –, Vera Regina acha que os problemas têm como causa o comércio que se instalou por ali. Atualmente, apenas cinco casas são de moradores. “Há 20 anos era maravilhoso. As crianças brincavam na rua, ouviam histórias sobre a Travessa. Hoje tem assalto, droga, flanelinha. Muitas casas já foram mexidas”, acusa.
Vera Regina acha que as casas deveriam ser ocupadas apenas por moradores ou por artistas plásticos, como Ana Henrique que mantém a Galeria Pop Up. “Gosto de Arte, das coisas maravilhosas que os artistas fazem”, entusiasma-se. A preferência dela é porque sabe que os artistas são aliados na luta pela preservação do local. Ana é outra que cobra da Prefeitura melhor iluminação e limpeza. “A Travessa anda muito largada”, constata. “São feitas obras de adequação aos novos usos, que mudam a estrutura da casa e até a fachada. Passo aqui de segunda a sábado, das 14h às 20h e nunca vi alguém fiscalizando, impedindo estas mexidas”, critica.
Vera Pellin e Vera Regina lembram que já foram entregues abaixo-assinados aos órgãos municipais, pedindo providências. Até agora, não tiveram resposta. O prefeito diz que a principal dificuldade é a que a descaracterização do local é obra dos próprios proprietários. “Não temos força de polícia para evitar o que acontece ali”, afirma Fortunati. Mas, anuncia: a Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV) já tem um projeto pronto para a iluminação. “Este é um espaço nobre da cidade. A iluminação será adequada. Quanto à segurança, estamos em discussão com o governador Tarso Genro, pois o policiamento nas ruas fica a cargo da Brigada Militar”.
Fortunati também tem uma queixa. É contra os vândalos que picham prédios, destroem bancos de praças, quebram lâmpadas, roubam fios. A Prefeitura fez um cálculo para saber quanto custa repor o que foi destruído: “Sete milhões de reais por ano, sem contar as paradas de ônibus. Infelizmente, a depredação está muito presente”, lamenta-se o prefeito, lembrando que estes R$ 7 milhões poderiam ser investidos na Saúde, na ampliação das equipes de Saúde da Família, por exemplo.
Intervenções incorretas
O arquiteto Luís Fernando Rhoden, ex-superintendente regional do IPHAN (1996-2000), é um crítico das intervenções feitas em prédios tombados. “Elas são incorretas. E isso é resultado de um processo. Não é novo”. Ele ressalta que “preservação é antes de tudo um ato cultural”. Na sua visão, hoje, “há carência de conceito nos órgãos de preservação. Isto vem de longe”. As causas do problema estão, de acordo com o arquiteto, no despreparo dos que trabalham com o patrimônio histórico, na falta de conhecimento técnico e na ingerência política.
Rhoden diz que o que deve ser preservado é a autenticidade do imóvel, o que não exclui o seu “uso harmonioso”. Antes de mais nada, é preciso saber o motivo pelo qual houve o tombamento. No caso da Travessa dos Venezianos, se foi tombada pelo conjunto urbano, este conjunto tem de ser preservado e as casas, por exemplo, não poderiam ter sido pintadas em cores definidas pelos seus ocupantes, mas por aquelas que remetessem à aparência primitiva dos imóveis.
Como Vera Regina, o arquiteto desaprova o uso comercial das casas. “O uso residencial é compatível, mas o uso comercial descaracteriza o motivo do tombamento. Na Travessa, já se perdeu muita coisa e isto não volta mais. Acaba virando réplica”, alerta.
Ligação entre duas ruas
No final do século XIX, início do XX, quem levava o nome de Rua dos Venezianos era a atual Joaquim Nabuco, ligada à Rua Lopo Gonçalves por uma travessa. A conclusão é de que, inicialmente, ela tenha sido chamada de Travessa da Rua dos Venezianos, consolidando com o passar dos anos o nome Travessa dos Venezianos.
Quando foram construídas, as casas com pé-direito alto e janelas e portas que se abrem diretamente para a rua, eram habitadas por jornaleiros, consertadores de guarda-chuva e carvoeiros. A Travessa só foi calçada em 1926 e apareceu pela primeira vez no mapa da cidade em 1935.
Ao tombá-la, o município considerou patrimônio histórico também o seu entorno: as casas de números 506 e 534 da Rua Lopo Gonçalves e as de números 381, 383 e 497 da Rua Joaquim Nabuco.
Ponto de Encontro
Todos os leitores que responderam a pergunta “De onde são?” da semana passada acertaram. As fotos realmente são do Chalé da Praça XV, prédio construído pelo Município em 1911 para funcionar como bar e restaurante. Até hoje é ponto de encontro de porto-alegrenses e visitantes.
Declarado patrimônio histórico municipal em 1998, já passou por um restauro e uma ampliação, concluída este ano. No segundo semestre, prevê o gerente do Chalé, Hério Frölich, devem começar as obras de um novo restauro. O permissionário do local, Edemir Simonetti, está providenciando um projeto, que será apresentado ao Ministério da Cultura, para que a restauração possa ser feita com recursos privados, por meio da Lei Rouannet.
O prefeito Fortunati lembra que as obras de restauro da Praça XV estão chegando ao fim. E ressalta que estas são obras caras, porque precisam obedecer ao “caderno de exigências do patrimônio histórico”. Segundo ele, se fossem “obras normais, custariam 50% menos”. A preocupação é com os recursos que são limitados. Na área central, prédios e praças vêm sendo restaurados em convênio com o Programa Monumenta, do governo federal.
Para a conservação dos prédios, afirma o prefeito, há recursos previstos no Orçamento. Por que, então, a conservação não é feita como deveria? A resposta aponta duas razões: as dificuldades em seguir todas as exigências do patrimônio histórico e o supervisor da área que “pode estar sendo um pouco relapso”.
Frölich revela-se entusiasmado em trabalhar num prédio que é patrimônio da cidade. “Para nós é gratificante. Aqui há uma fusão de interesses turísticos, históricos e culturais. Vem gente de toda parte do Brasil para conhecer o Chalé”, afirma. Também esclarece que a restauração não fechará o restaurante, pois vai ser feita em etapas. “É um trabalho minucioso, a cargo de profissionais. Temos feito todo o possível para manter a construção original”, diz.
O tombamento de locais como a Travessa dos Venezianos e o Chalé da Praça XV comprova, segundo a arquiteta Flavia Boni Licht, que “assim como a história já deixou de considerar somente os grandes heróis e passou a se interessar igualmente pelo cotidiano das pessoas, o ato de tombamento não mais se resume apenas – e com razão – aos luxuosos palácios, aos grandes templos, às suntuosas residências”. Para a arquiteta, esta postura mais contemporânea pode ser entendida quase como uma “homenagem a Rodrigo Melo Franco de Andrade e à sua definição de patrimônio cultural: ‘a carteira de identidade de um povo’”.
Endereços:
Chalé da Praça XV – Praça XV – Centro de Porto Alegre, próximo ao Paço Municipal – Porto Alegre
Travessa do Venezianos – Cidade Baixa, entre as rua Lopo Gonçalves e Joaquim Nabuco – Porto Alegre
De onde são?
Veja se você reconhece o local retratado nas fotos abaixo. Mande a sua resposta.