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18 de agosto de 2011
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12:47

As raízes do futuro no Brasil

Por
Sul 21
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O Brasil está fazendo um movimento amplo de transformação de sua sociedade. Um movimento que ocorre no meio de uma crise profunda da economia mundial. Pois a coisa é assim mesmo. Na transição da geoeconomia e da geopolítica planetária, os momentos de ruptura, de esgarçamento, de destruição, de mudanças de formas, etc., alteram a posição de vários países, em função de inúmeros fatores. No caso brasileiro, o que estamos vendo é uma tríplice manobra do governo Dilma, com tal força e com tanto ímpeto, que, muitas vezes, os analistas não percebem. Na minha opinião, temos uma política e uma estratégia nacional que abarca pelo menos três aspectos fundamentais: 1) construir uma atitude unitária do Estado brasileiro; 2) compor uma resposta coordenada do Brasil diante da crise; e 3) inclinar a economia brasileira na via de uma trajetória de desenvolvimento e de integração mais ampla na economia mundial.

A liderança política de Dilma e a unidade do Estado

1) Esses três movimentos se fazem em simultâneo, mas o principal é, sem dúvida, a construção de uma nova fase do Estado. Trata-se de uma manobra sutil, o que não quer dizer secreta. E ela está em busca do reencontro de uma unidade que estava perdida na política brasileira, a unidade do Estado nacional. Pois o atual período, a época que transitamos, é aquele que corre para um desassombrado gesto de tentar erradicar instituições e/ou procedimentos neoliberais. O que vai se fazendo com passos até agora precisos. Dito de outra forma, essa unidade política se dá tendo como base a recomposição da unidade econômica do Estado. Pois olha-se a Presidência, a Fazenda e mesmo o Banco Central e percebe-se um posicionar semelhante diante dos fatos econômicos.

2) A ameaça de que a crise venha estourar no Brasil faz com que essas três instituições se entrelacem e se encaminhem para um funcionamento articulado, o que ratifica o comando e a liderança da Dilma, que tem um agudo senso estratégico. Ele aparece no caráter mais visível e imediato da preparação para o pulo do gato da saída do colapso da economia mundial. E essa possível ação faz parte de uma estratégia de longo prazo, que chamo da passagem do modelo de acumulação financeira para o modelo de acumulação produtiva dentro da construção de um novo padrão da acumulação planetário. E esse jardim não se fará sob a noite da unipolaridade americana, mas sob a regência, ainda sem cor, da bipolaridade geopolítica dos Estados Unidos e da China, que tramam dois eixos econômicos em emulação e conflito.

3) A primeira proposição, portanto, dessa estratégia, como dissemos, é o reforço do Estado, posição que começou lá em 2006 com o lançamento do PAC, que independentemente dos resultados quantitativos e puramente econômicos, foi uma torção política extraordinária, reintroduzindo uma idéia de comando unitário na política econômica, repondo um pensamento de planejamento e trazendo, para o centro estratégico do governo, a Petrobrás. Agora, está sendo dado mais um passo, diríamos mais um degrau, chegando a um outro patamar. A fragmentação do poder público, começada por ser anulada no governo Lula com a recuperação da Fazenda, enfrenta neste momento uma batalha decisiva. O permanente desgarramento e a ampla distância entre Banco Central e governo, ocorrida na época do neoliberalismo, agora parece ficar cada vez menor, a junção cada vez mais próxima. Ou seja, a modernidade neoliberal da Fazenda e do Banco Central de outros tempos, a formarem um duo da canção financeira como nos Estados Unidos, criando problema para a política da Presidência, parece se arrefecer, tomar novo rumo com Dilma.

4) Passamos da desintegração provocada pelo triunfo das finanças para uma reunificação política do econômico na direção de um outro tipo de acumulação. E o resultado e a atração maior, politicamente, é a unidade do Estado, supostamente mais coerente. Esse movimento vai no sentido de alcançar uma política econômica global, se ergue para superar aquela política reduzida, restrita à política monetária, à política cambial, à política financeira e à política fiscal. Nela, regidas pela política financeira e monetária, se davam as avenidas do sonho das finanças. Desde o governo Lula, a recomposição da totalidade da política econômica tem sido um objetivo perseguido. E Dilma tem se esmerado desde a sua entrada na Casa Civil, fornecendo munição para as possibilidades desse itinerário. E a construção da unidade do Estado é uma parte densamente importante, decisiva e construtora, da estratégia global que vai unir as dimensões da política e da economia do Brasil.

Parêntese 1 – Podemos nos dar conta dessa aproximação na política econômica através de determinados sintomas, como os pronunciamentos e decisões da presidente, do ministro da Fazenda e do presidente do Banco Central a respeito de uma possível proteção e repercussão dos problemas que viriam da crise do eixo americano (USA-UK-EUROPA). Estamos querendo acentuar que a mágica desses atos é de alcançar uma integração da política econômica global do Estado brasileiro.

Parêntese 2 – Pode-se perceber, além disso, que na área propriamente política se desenvolve uma linha ainda muito diáfana na manobra refinada do retorno de Celso Amorim ao Ministério. Creio que é possível conjeturar e constatar que a unidade do Estado proporciona uma conexão extremamente importante na área da diplomacia e da defesa.

5) Ora, a passagem de um modelo financeiro para um modelo produtivo requer que, por trás da política do Governo, haja ocorrido ou esteja para se confirmar um acordo em termos de economia política. Ou seja, que os grupos sociais que vão sustentar a posição da liderança política nacional sintonizem com a mão que dirige o Governo. Pois, como disse, essa transição e essa metamorfose – de uma hegemonia financeira para uma hegemonia produtiva – está sendo armada pela Dilma já faz algum tempo. O que temos agora na economia globalizada é uma lenta capitulação da área financeira internacional. E embora ela esteja projetando até aumentar a sua presença por aqui, a flor especulativa está murchando, quem sabe no médio prazo será uma outra flor, instalada num outro terreno. E, ao mesmo tempo, fazendo parte e integrada em diferente vegetação, o que garantirá a mudança de figura do crédito, de especulativo para dedicado à produção. Com isso, a flor do financeiro adquirirá uma face distinta e se transformará, porque plantada numa união institucional em favor da área produtiva. Dilma tem dado passos nessa direção e o jardim da economia está sendo pensado de outra maneira. Por esse motivo, a estratégia nacional da unidade do Estado está, como uma serpente prospectiva, se enroscando nas outras dimensões do projeto econômico nacional. Analiticamente, temos o momento da defesa da economia diante da crise e o momento da construção de uma estratégia de desenvolvimento. E a natureza dessa complexa estratégia se materializa numa arquitetura ainda instável que vai nascendo sob a liderança da Dilma.

Parêntese 3 – Uma coisa é a política profunda das classes sociais, que atravessa complicações conjunturais para estabelecer estruturas que perduram, que tem dinamismo lento, mas que, firmes, acabam por definir trajetórias de longo alcance. Mas essa política é mediada por lutas de diversas ordens, que eleitoralmente se expressam em conflitos de política partidária. Com isso, avulta e emerge algo que ainda não tem uma tendência mais definitiva, e que se dá na relação entre a presidente, o congresso, os partidos, a mídia convencional, a mídia alternativa e a população em geral. É uma disputa que baila na superfície do dia a dia. E tem toda uma configuração, tem muitos lados. Todavia, no caso que nos interessa, trata-se da questão da corrupção. Se de um lado, Dilma tem tomado medidas cirúrgicas contundentes, mostrando o Governo na linha de frente dessa batalha; de outro, a mídia conservadora e os partidos descontentes, no entanto, tentam empurrar a idéia de que o governo da Dilma “está cheio de corruptos”. A própria presidente não está atingida, as bazucas estão assestadas para o desgaste do Executivo; Dilma não é o alvo direto, mas o governo dela. É a tática da política como espetáculo e como escândalo que se constitui como o maior perigo do governo Dilma. Pode até afetar o processo de unidade do Estado. Até agora, é verdade, as ruas apóiam e sustentam a presidente. Mas esse problema não pode deixar de ser considerado na tríplice manobra.

O voluptuoso arco estratégico ligando o curto ao longo prazo

1) Há duas coisas a fazer do ponto de vista econômico, a partir da reconstrução progressiva da unidade do Estado. E essa unidade serve para um lance que se apóia do longo prazo, um fio lançado no espaço do futuro, e que desce até o curto, desenhando, na verdade, uma defesa contra os efeitos maléficos da crise. Por essa razão, a estratégia do Brasil não deixa de considerar os dois tabuleiros, praticando uma partida simultânea, pois não dá para separar no tempo as jogadas, embora visando alvos diferentes. Não se pode ficar esperando para lançar as malhas de amanhã esperando superar detalhes que batem no presente. E nem se pode cuidar da praia sem pensar no alto mar.

2) O que me parece ser o movimento mais dilatado, mais extenso e de mais duradoura ambição, tem um foco maiúsculo. Convém que se fale da transformação de uma economia financeira para uma economia produtiva. E se nomeie os lances para o adiante, na preparação, na transição do atual paradigma tecno-produtivo – como dizem certos schumpeterianos – na estrada para um segundo paradigma. Na minha linguagem, a transformação de um padrão de acumulação, organizado a partir do duo petróleo e automóvel, para um padrão que começou a se desenvolver, já nos anos 1970, em torno da indústria da informática, da telecomunicação, da internet, mais popularmente chamado de novas tecnologias de comunicação e informação, exatamente no momento da sinergia dos componentes, numa ascensão cíclica rumo sua fase de maturidade.

3) Não se pode deixar de pensar que estas mutações se dão num ambiente geoeconômico balanceado entre o eixo americano e o eixo chinês. O Brasil, que está no ponto de conexão dessas duas linhas, não pode deixar de se situar igualmente na esfera geopolítica tramada a partir dos dois países líderes. Ou seja, o Brasil terá que atuar tanto geoeconomica como geopoliticamente. Ora, a visão se complexifica, o cenário torna-se mais espinhoso e o futuro embrulhado: a atmosfera histórica traz nuvens carregadas e sombrias, inquietantes de ameaça. Dessa forma, a estratégia brasileira põe dois elementos fundamentais: na esfera econômica, investimento e tecnologia; no campo político, busca de uma situação pendular entre Estados Unidos e China.

4) O arpão está lançado no futuro. Não vai para Moby Dick, vai para o padrão de acumulação das novas tecnologias de comunicação e informação. Pois cabe, em primeiro lugar, dar-se conta que essas altas tecnologias estão fora do olhar e da inteligência científica brasileira. Não temos nada em estoque, nem temos condições de financiarmos essas pesquisas. No entanto, pode-se apostar um cartão, dois quem sabe, nesta MegaSena. Porém, uma coisa é certa: a tecnologia acessível vai comandar a reorganização produtiva do patamar pensado. É nisso que o Brasil terá que trabalhar. Mas, economicamente, o decisivo é saber que temos dois objetivos chaves: a ancoragem no novo padrão e o financiamento das propostas de investimento para o nosso desenvolvimento neste percurso. Ou, dito de outra forma, precisamos cimentar a nossa participação na nova divisão internacional do trabalho.

5) Na minha opinião, já estamos, felizmente, ancorados nesse novo padrão, no porto específico da construção de sua infra-estrutura. Pois o retorno da Petrobrás ao centro estratégico do governo, as descobertas do pré-sal posicionaram de forma irreversível a nossa inscrição na infra-estrutura energética desse padrão. E isso nos permite saber e refletir que o Brasil terá um papel destacado. E vai além do petróleo, pois tem bala para fornecer matérias primas, onde a Vale estará envolvida, como, igualmente, para alimentar o mundo, através da pujança do agrobusiness. Naturalmente que se requer uma maior industrialização, seja de produtos derivados desses setores, seja de bens oriundos da diversificação indispensável da indústria brasileira.

6) Daí a gente entende como é importante o setor de bens de capital, não só maquinário para construção civil, mas máquinas e equipamentos para a produção das indústrias. E o setor de bens de capital tem um papel fundamental porque o dinamismo da economia produtiva vem dele, pois vai à frente distribuindo vigor tecnológico e dinamismo produtivo. Se o investimento é a variável decisiva da próxima ancoragem da economia brasileira no novo padrão econômico, sem dúvida, a expansão do setor de bens de capital é imperiosa.

7) E estudos mostram que o Brasil pode estar preparado para a exigência de bens de capital, mesmo na hipótese de altas taxas de crescimento. Por isso, nessa passagem do modelo de acumulação financeiro para o produtivo, o investimento tem que alcançar níveis compatíveis com a pretensão brasileira. Um estudo do BNDES diz que o Brasil, em 2009, estava com uma taxa de 17% em relação ao PIB, muito menos elevada que a da China (45,6%) e dos países asiáticos e da média do conjunto dos BRICs (28,7.%). Todavia, a herança financeira do neoliberalismo nos colocou ainda abaixo do Equador (24,1%), do Peru (24%), do México (21,6%), do Chile (21,4%) e da Argentina (20,9%). E o pior fica evidente: estamos num nível inferior ao da média mundial (19,5%). Um desastre quase completo. É verdade que ganhamos dos Estados Unidos (15,1%), só que este é um pais bem mais financeirizado que o nosso. Todos esses dados nos garantem que o papel do investimento e do financiamento ao investimento no Brasil estará na primeira linha das preocupações. Transformar o crédito à especulação em crédito para a produção é uma alavanca maior para o projeto brasileiro, sabendo-se que será indispensável e inadiável, para o êxito nacional, o investimento em infra-estrutura (energia elétrica, telecomunicação, saneamento, logística, ferrovias, transportes rodoviários, portos) etc. Para tal, o setor público terá que puxar as inversões, seja por meio do orçamento público, de programas públicos, do BNDES, do sistema de bancos públicos, de empréstimos estrangeiros, além dos investimentos privados nacionais e do investimento internacional. Não resta dúvida que, sem uma unidade do Estado, estas perspectivas não sairão do chão.

Por que a crise vai entrar?

1) Tratamos antes do projeto de desenvolvimento. Algo porém, como uma areia no sapato, como uma barreira na rodovia, incomoda: são as coisas do curto prazo. A resposta desse problema está fortemente arraigada no pensamento, nas táticas e na estratégia de Dilma. Portanto, ela tem um diagnóstico e sabe que a crise está vindo, e tem uma potência destruidora. A primeira pergunta vem fácil: por onde a crise vai chegar? A meu ver, existem dois pontos por onde ela pode surgir. Um deles é o da via comercial, como diz Henrique Meirelles, que seria efeito da queda da especulação em commodities, provocando uma baixa nos seus preços, principalmente no caso de uma crise generalizada. E o segundo, é uma pinta vermelha no nariz, o desdobramento no setor dos bancos nacionais, já que se fala que estão muito expostos lá fora.

2) Naturalmente, que a defesa do curto prazo implica ao menos em duas coisas. Uma se sustenta na defesa dos petardos financeiros que baterão sobre o câmbio e sobre o movimento de capitais. O Brasil já tem experiência nessa área, e acredito que, no limite, está até preparado para o fogo máximo que se dará, se a crise for generalizada. Precisando operar no ponto extremo, o país pode exercer um controle apurado da taxa de câmbio e do fluxo de capitais, chegando inclusive à quarentena do capital estrangeiro. Isso já aconteceu nos anos 1970 e praticado pelo ministro Mario Henrique Simonsen, um economista liberal. Só estamos tocando nesse assunto, porque o tamanho, a envergadura, a audácia da resposta brasileira aos ventos e temporais da crise está na dependência do tamanho dos fatos. E esses são imprevisíveis.

3)Todavia, a defesa da economia brasileira não se trata apenas de medidas financeiras, mas deve se referir a uma segunda questão: o fortalecimento e a competitividade da indústria brasileira (de forma imediata na competição com a importação chinesa). O governo tem feito uma série de medidas desde o Brasil Maior até o Supersimples, objetivando não só reforçar a empresa nacional, dar-lhe espírito de inovação e audácia para exportar, mesmo em situações adversas. O Governo procura garantir financiamento, aumento de competitividade, visando o acréscimo do investimento, mas também a expansão do emprego. Portanto, tentando dar um nível de concorrência alto às empresas dos mais diversos portes – grande, média, pequena e micro – o Brasil se prepara para não só responder aos impactos imediatos da crise, mas também para adicionar a uma trajetória de crescimento as idéias de investimento, de tecnologia e de emprego. É tão importante driblar o furacão do colapso desta fase do capitalismo como, no mesmo tranco, unir os rearranjos do curto prazo à futura plenitude do padrão de acumulação.

Conclusão

O governo de Dilma tem trabalhado para dar uma perspectiva da economia brasileira no processo de transformação de um modelo de acumulação financeira para um modelo de acumulação produtiva. E essa mudança de forma se dá dentro de um padrão de acumulação que transforma a produção em massa, comandada pelo automóvel e pelo petróleo, numa outra, liderada pela informação e telecomunicação. Para o Brasil é importante disputar uma integração nesse modelo de capital e nesse paradigma tecnológico. Só que as suas possibilidades são condicionadas a sustentar a infra-estrutura desse modelo e desse padrão, através do petróleo, das matérias primas minerais e dos produtos agrícolas. A par dessa posição importante, o Brasil tenta através do investimento, da tecnologia, robustecer a sua participação, se não nos setores líderes, pelo menos em patamares importantes das indústrias mais antigas, porém impulsionadas pela inovação. O que se pode dizer é que nessa nova organização, a indústria de bens de capital do Brasil pode ter uma figura dinâmica bem importante. No entanto, tudo isso só está na eminência de acontecer – só, e somente só – por causa da superação da fragmentação e da destruição do Estado neoliberal. O que o atual governo e, principalmente, Dilma têm conseguido é um processo de reconstrução da unidade do Estado brasileiro. E os arautos podem proclamar: sem unidade, que ainda está em processo de reconstituição, o Brasil não terá a possibilidade de tornar-se um país sério e ativo. O casamento profícuo entre o Estado, o capital, o investimento, a tecnologia, o emprego, a distribuição de renda, a alocação de recursos para a área social, trazem as causas materiais para chegaremos à civilização. E, para chegar lá, precisamos dos condimentos da educação, da pesquisa científica, da saúde e da cultura. Atenção: o Brasil não pode se enganar: não há civilização sem cultura. Só a cultura faz a civilização e o progresso material durar.


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