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11 de julho de 2011
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09:34

“Queremos a normalidade’, diz líder de associação de ateus

Por
Sul 21
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“Queremos a normalidade’, diz líder de associação de ateus
“Queremos a normalidade’, diz líder de associação de ateus
Após tentativa frustrada de lançar campanha em dezembro do ano passado, associação de ateus passou a veicular outdoors em Porto Alegre deste o dia 5 de julho | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Igor Natusch

A primeira campanha ateísta do Brasil foi lançada em Porto Alegre na semana passada. Outdoors posicionados em alguns pontos da cidade mostram imagens que buscam estimular a reflexão sobre religião e diminuir o preconceito de que os ateus se dizem vítimas. Promovida pela Associação de Ateus e Agnósticos do Brasil (ATEA), a campanha chega ao fim de sua primeira semana de veiculação provocando intensas discussões, trazendo à baila um assunto que, no Brasil, costuma ganhar ares de tabu.

Leia mais:
– Primeira campanha ateísta do Brasil é lançada em Porto Alegre
– Cartazes dividem opiniões: “Melhor ser ateu do que não ser nada”

A matéria do Sul21 que noticiou o início da campanha na capital gaúcha é um exemplo de como o assunto provoca polêmica. Já são quase sete mil compartilhamentos do texto no Facebook, além de mais de duas centenas de comentários.

O presidente da ATEA, Daniel Sottomaior, explica que a ideia de divulgar nas ruas mensagens de cunho ateísta não é algo novo. A primeira iniciativa nesse sentido veio da Inglaterra, em 2008, quando ônibus começaram a circular trazendo em suas laterais a mensagem: “provavelmente Deus não existe, então pare de se preocupar com isso e aproveite sua vida”. A ATEA tentava desde o ano passado colocar sua própria campanha na rua, com ônibus circulando em quatro capitais (Porto Alegre, Brasília, Salvador e São Paulo), mas sofreu com uma série de restrições e cancelamentos de última hora, ao ponto de desistir temporariamente da ideia. Agora, por meio de outdoors, conseguiu finalmente lançar o material. “Os ônibus nunca foram prioridade, apostamos neles por inspiração na campanha inglesa”, diz Sottomaior, em entrevista ao Sul21. “Podemos retomar a ideia no futuro, se o financiamento dos nosso membros permitir, mas não estamos tão preocupados com onde a campanha aparece, e sim em fazer com que ela apareça”.

Na entrevista, Daniel Sottomaior discute a campanha ateísta lançada em Porto Alegre, além de explicar as motivações da ATEA e expor sua opinião sobre a oposição de ateus e teístas no Brasil. “As pessoas dizem que ateus devem morrer, que se uma pessoa é criminosa é porque não tem Deus no coração, que pessoas ateias são incapazes de amar”, lamenta o presidente da associação. Ele explica as circunstâncias que impediram o avanço da campanha original em 2010, em especial em Porto Alegre, onde foi barrada pela Associação dos Transportadores de Passageiros de Porto Alegre (ATP).

Sul21 – Muitas pessoas estão conhecendo a ATEA somente agora, depois que os primeiros outdoors foram às ruas de Porto Alegre. Qual é a motivação da ATEA? O que a associação busca?

Daniel Sottomaior – Todo grupo de interesse tende a se organizar em entidades. No caso de ideias políticas, as pessoas se organizam em partidos; pessoas que vivem próximas se organizam em associações de bairro; enxadristas se reúnem em grupos de xadrez… Enfim, a associação é o caminho natural para qualquer grupo de interesse, em especial aqueles que buscam criar mudanças sociais. E esse é um dos nossos objetivos. Essa campanha mesmo, por exemplo, não poderia acontecer se não estivéssemos reunidos em uma associação. Você não ia me ligar se eu não fosse presidente dessa associação. A ação exige esse tipo de organização. As religiões fazem isso há muitos séculos, nós estamos alguns milênios atrasados.

Sul21 – E quais são os objetivos da associação em geral e da campanha em particular?

Daniel Sottomaior – Temos vários objetivos comuns. No futuro, pretendemos fazer campanhas nesse sentido também, mas posso adiantar que um de nossos objetivos maiores é lutar pela efetiva laicidade no Estado brasileiro. No caso da atual campanha, está em jogo, de maneira mais difusa, a imagem dos ateus perante a sociedade e, mais especificamente, o preconceito e a discriminação contra os ateus.

Daniel Sottomaior: "Um de nossos objetivos maiores é lutar pela efetiva laicidade no Estado brasileiro" | Foto: Reprodução

Sul21 – Para muitas pessoas, porém, é difícil acreditar que ateus realmente sofram preconceito. Como se dá, então, esse tipo de manifestação discriminatória contra os ateus?

Daniel Sottomaior – Você está com o computador ligado aí? (nesse momento, o entrevistado sugere que o repórter entre no blog e na conta de Twitter do Ateus Atentos, que listam uma série de ações discriminatórias contra ateus no Brasil) Quem entrar na nossa conta no Twitter vai ver que grande parte das mensagens são declarações de pessoas a respeito de ateus, dizendo que ateus devem morrer, que se uma pessoa é criminosa é porque não tem Deus no coração, dizendo que pessoas ateias são incapazes de amar… É uma pequena porcentagem, e apenas do que é dito no Twitter a respeito de ateus. No blog há declarações do José Serra quando concorria à presidência, senadores da República dizendo que sentem medo de ateus… E não são apenas declarações, temos relatos de pessoas que dizem ter sido despedidas depois de se revelarem ateias para seus chefes, ou que foram recusadas em um emprego por causa disso. Temos relatos de pessoas que foram ostracizadas por suas famílias, abandonadas por companheiros e amigos, isoladas pelos colegas no local de trabalho… Tudo que acontece em casos de preconceito de etnia, de religião ou homofobia, infelizmente também acontece conosco.

Sul21 – E foi esse preconceito, então, que motivou a campanha? Como a ideia surgiu?

Daniel Sottomaior – Nossa ideia original era fazer a campanha dos ônibus aqui, seguindo o exemplo do que foi feito na Inglaterra, Espanha, Itália, EUA e vários outros países, mas usando outro slogan. Infelizmente, a campanha dos ônibus não vingou. Tentamos fazer a campanha em quatro capitais mas, curiosamente, em todos os casos nos foi dito que as mensagens eram agressivas demais. Segundo eles, nossas mensagens eram preconceituosas, discriminatórias e ofensivas. Fomos barrados em quatro capitais diferentes.

Sul21 – Imagino que tenha sido um longo processo para viabilizar os outdoors em Porto Alegre, então.

Daniel Sottomaior – Sim, foi um longo processo, e um desses casos (de Brasília) está na Justiça.

Sul21 – O que aconteceu nesse caso específico? As mensagens foram proibidas?

Daniel Sottomaior – É o mesmo que aconteceu nos outros casos também. O exibidor (do material de divulgação) ou seu parceiro, depois da assinatura do contrato e de tudo estar acertado, chega em um belo ponto onde diz “não vamos rodar”. Entramos com uma ação lá (em Brasília) porque já tínhamos advogado lá. Em outros casos, como Porto Alegre, todo mundo lava as mãos e diz que não tem nada a ver com isso. O de Porto Alegre, aliás, foi um dos mais emblemáticos. Nós contratamos uma empresa de São Paulo para fazer a exibição, e eles contataram um parceiro em Porto Alegre. A imprensa já estava sabendo, já estavam fazendo a cobertura e tudo o mais. Na véspera da entrada dos anúncios em circulação, me liga um jornalista daí dizendo “olha, não vai ter mais campanha, soubemos que ela foi vetada pela empresa de transportes públicos (Associação dos Transportadores de Passageiros de Porto Alegre, ATP). Imediatamente liguei para a assessoria de imprensa deles e eles confirmaram tudo, disseram que realmente estava vetado. Meses depois, quando eu já tinha constituído advogado e estávamos preparados para tudo que pudesse acontecer, ligo para eles de novo e me dizem “não, a responsabilidade não é nossa, não temos nada a ver com isso, não foi nossa (a iniciativa de barrar a campanha)”. Então, eu falo com a empresa que contratamos em São Paulo e digo “olha, sei que não foram vocês que vetaram, que foram os parceiros de vocês em Porto Alegre, mas acontece que tenho um contrato assinado, quem tem obrigação contratual comigo são vocês, não eles. Não vai ser lucro para mim processar vocês e nem lucro para vocês serem processados. Vamos apenas perder tempo, então me deem uma declaração dizendo que vocês foram impedidos de cumprir o seu dever contratual para que eu possa usar isso em juízo e ir atrás de quem barrou”. O cara disse literalmente… (reproduz uma série de palavrões, que teriam sido usados pela empresa na hora de negar o pedido) Então, ficamos nesse vácuo jurídico, ninguém assume que barrou e se eu quiser fazer alguma coisa terei que ir desde São Paulo para ver quem é responsável pelo veto. Vão fazer de tudo, lícitos e ilícitos, agir de má-fé se necessário, para não deixar a gente veicular essas mensagens.

Sul21 – Por que começar a veiculação por Porto Alegre? Algum motivo específico, ou foi mais por força das circunstâncias, mesmo?

Daniel Sottomaior – Foi uma decisão motivada pelas circunstâncias, justamente por ter sido uma das negativas mais fortes. Queríamos deixar bem clara a mensagem de que não íamos embora, que não íamos desistir e que eles teriam que nos engolir. Por outro lado, o Rio Grande do Sul é, proporcionalmente, o Estado que mais tem membros da ATEA em sua população. Ontem mesmo eu estava fazendo esse levantamento. O Estado com maior número de associados é São Paulo mas, proporcionalmente à população, o Rio Grande do Sul tem quase o dobro.

Sul21 – E quanto aos resultados da campanha? São poucos dias de veiculação, mas talvez já dê para sentir alguma repercussão. Ou não?

Daniel Sottomaior – A impressão que eu tenho é que a campanha pegou forte em Porto Alegre, mas que longe daí as pessoas não estão sabendo (do lançamento da campanha). Ao contrário da campanha dos ônibus, que nem chegou a acontecer, mas mereceu matéria de página inteira em diversas publicações. Naquela época, ganhamos centenas de membros quase que instantaneamente. A repercussão de mídia foi muito grande. No caso atual, a repercussão foi mais online mesmo. No dia em que a campanha saiu, fomos número 1 nos trending topics do Twitter no Brasil.

Campanha foi barrada em quatro capitais no ano passado: "Segundo eles, nossas mensagens eram preconceituosas, discriminatórias e ofensivas" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – A campanha provocou muita discussão e, é claro, alguns questionamentos, até mesmo de pessoas identificadas com o ateísmo. Uma das principais críticas é quanto ao conteúdo de um dos anúncios, que coloca Charles Chaplin (ateu) e Adolf Hitler (que acreditava em Deus) lado a lado. Para essas pessoas, associar a fé em Deus com um exemplo negativo é uma forma de manter o maniqueísmo entre ateus e teístas, apenas invertendo a polaridade do preconceito. Como o senhor responde essas críticas?

Daniel Sottomaior – Acho que essas pessoas ou não entenderam bem o que colocamos lá, ou não conseguiram captar o contexto do anúncio. Não somos maniqueístas porque escrevemos, com todas as letras, que religião não define caráter. Talvez por eu ser engenheiro, defendo que o pensamento lógico deve sempre predominar. Como fazer para negar uma afirmação completamente genérica como, por exemplo, dizer que todos os corvos são pretos? Basta exibir um corvo branco. Com isso, não interessando quantos corvos pretos existam no mundo, a afirmação de que só corvos pretos existem cai por terra na hora que você mostra que existe ao menos um corvo branco. A afirmação dos religiosos, no caso, é de que todos os ateus são maus ou desprezíveis. E isso deixa implícita, muitas vezes, ainda que não sempre, uma afirmação contrária, de que os religiosos são pessoas essencialmente boas. O que é preciso para combater essas duas afirmações? Algo que, em lógica, a gente chama de contraexemplo. Precisamos mostrar um contraexemplo de cada um, e é exatamente o que fizemos, usando os dois contraexemplos mais emblemáticos possíveis. E a frase é para não deixar dúvidas: não estamos dizendo que todos os ateus são assim, nem que todos os religiosos são assim, apenas defendemos nossa visão de que a religião não é definidora de caráter.

Sul21 – Para alguns, seria mais adequado comparar Chaplin com Ghandi, por exemplo. Não haveria nenhuma conotação negativa, no caso.

Daniel Sottomaior – Se fizéssemos isso, estaríamos reforçando o preconceito positivo de que os religiosos são primordialmente bons, ou que a religião faz com que uma pessoa seja melhor. Não precisamos disso, pelo contrário, é exatamente contra isso que queremos lutar.

Sul21 – E quanto aos que criticam o ateísmo por promover um suposto preconceito contra as pessoas que acreditam em Deus? Segundo elas, o ateísmo também é uma crença, uma espécie de religião às avessas. O ateu “crê” em algo?

Daniel Sottomaior – Mesmo que se diga que o ateísmo é uma crença, qual é o problema? Eu tenho a crença de que o sol está lá fora, de que ele vai nascer na manhã seguinte, sempre no leste e se pondo no oeste. Qual é o problema com a crença? Crenças são coisas que damos por verdadeiras. Eu creio que a democracia é o melhor sistema, eu creio que é melhor me relacionar com uma pessoa e não com outra. Não há nenhum problema com crenças. O problema são as crenças de natureza religiosa ou dogmática, e são a essas crenças que nós nos opomos. Além disso, ainda que o ateísmo fosse uma crença – e esse conceito é bastante discutível – ele está muito longe de ser uma crença religiosa ou uma religião. O ateísmo é uma religião tanto quanto careca é uma cor de cabelo (risos).

Sul21 – Mas o ateísmo nutre preconceito contra os teístas? Podemos dizer que a campanha promove algum tipo de discriminação?

Daniel Sottomaior – Pode ser que existam ateus preconceituosos? Pode. É possível? É. Eu, pessoalmente, não conheço nenhum. Não estou dizendo em hipótese alguma que todos os ateus são bons. Certamente devem existir ateus racistas ou homofóbicos, certamente existe ateu canalha, ateu mentiroso… Nenhum grupo tem o monopólio seja da bondade, seja da canalhice. Dito isso, não é algo que eu tenha verificado, não tenho conhecimento e não vejo motivos para que isso aconteça.

Daniel Sottomaior
"Tudo que acontece em casos de preconceito de etnia, de religião ou homofobia, infelizmente também acontece conosco" | Foto: Arquivo Pessoal

Sul21 – Também é comum ouvirmos dizer que os ateus fazem uma espécie de cruzada contra a religião, querendo convencer as pessoas de que Deus não existe…

Daniel Sottomaior – Se houver esforço de alguns ateus em fazer proselitismo, volto a perguntar: qual é o problema nisso? Existe proselitismo político, proselitismo ecológico, proselitismo vegetariano, religioso… Temos proselitismos de todos os tipos. Qual seria o problema, então, caso fizéssemos proselitismo? Isso não está incluído em nosso direito à liberdade de expressão? Veja bem, é claro que nem todo ateu gosta ou se dispõe a agir de forma proselitista. Tem uns que se colocam fora disso e outros até que afirmam, embora eu não entenda por quê, que é algo errado. Não é algo ilegal, e eu realmente não consigo ver como isso possa ser imoral. É algo que pode ser feito e que é perfeitamente legítimo.

Sul21 – Qual seria, então, o ponto de convivência possível entre ateus e os que creem em Deus? É possível estabelecer uma relação sem conflitos?

Daniel Sottomaior – Queremos a normalidade, só isso. Quando você me coloca essa questão, me vem à mente o seguinte: qual a relação que deve haver entre ciclistas e não-ciclistas, ou enxadristas e não-enxadristas, pessoas que preferem azul e que preferem vermelho? Isso deveria ser algo indiferente, não deveria ser uma questão nunca, jamais, em tempo algum. Nem para ser meu amigo, nem para ser meu amante, meu empregado, meu chefe ou qualquer outra coisa. É o que queremos: que essa questão não seja mais uma questão.

Sul21 – Admitindo que libertar-se de crenças religiosas seja algo positivo, é possível que a religião seja extirpada da sociedade? Dá para imaginar um mundo sem religião?

Daniel Sottomaior – Talvez seja possível, mas é uma coisa tão absolutamente distante que eu realmente não vejo a real importância em pensar ou discutir a respeito disso. Se você me disser que isso pode acontecer em alguns séculos, vou responder que isso é de um futurismo tão grande que vamos cair na “achologia”. Se vamos ou não vamos chegar a zero, eu acho completamente irrelevante. O que eu acho relevante é saber se vamos conseguir passar de 97% de teísmo, como é hoje no Brasil, para 50% de teísmo ou algo semelhante. Para mim, essa é uma questão muito mais premente e que pode ser respondida com facilidade. O Brasil, por exemplo, tem quase 98% de teísmo; a França tem 50%. Se você analisa os índices de ateísmo na Europa, certamente não vamos chegar aos mesmos percentuais do teísmo no Brasil. Mas mesmo os países mais crentes lá têm muito mais ateístas do que aqui. Esse é o meu ponto de vista pessoal. A ATEA não está necessariamente aí para isso, porque temos que representar todos os ateus, e boa parte deles se coloca de forma contrária ao proselitismo. Mas para mim é inegável que as sociedades com maior percentual de ateus existem e, curiosamente, estão em situação muito melhor do que as sociedades religiosas, e que isso pode ser medido pro meio de todos os indicativos que você possa imaginar. Mortalidade infantil, IDH, renda per capita, instrução… O que você quiser imaginar. É só você olhar a América do Sul e a África, regiões com a religiosidade lá em cima e que alcançam resultados baixíssimos nesses índices, e comparar com países europeus, com maior percentual de ateus. A diferença é muito clara.


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