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14 de julho de 2011
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18:46

Os ventos da verdade vêm da Europa

Por
Sul 21
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A Europa está entrando buraco a dentro. Um, no nível econômico: as especulações contra Espanha e Itália; e outro, no nível das sombras do Estado, nas famosas relações perigosas entre o setor privado e o setor público, onde emerge o caso Murdoch. Então, as lavas do vulcão estão se revolvendo e se contorcendo, ameaçando e infestando a Europa econômica e política. São dois fenômeno gritantes que exigem reflexão e respostas práticas.

A ESPECULAÇÃO VAI MATAR A EUROPA?

1) Pois, este é o caso: especulação. Procura-se sempre dourar a pílula quando se trata das finanças. Elas sempre se dizem necessárias para a economia. E levantam a idéia de que as instituições financeiras servem de crédito à produção. Ora, ora, caro e esperto, mas enganado, leitor, faz muito tempo que as finanças não se dedicam a este tipo de crédito. Geralmente, o crédito é dirigido à especulação. Para o setor financeiro nenhuma aplicação é melhor que um título especulativo, nada é mais voluptuoso do que o jogo elástico da aplicação em “commodities” E, sobretudo, porque a sua liberdade é quase total, o Estado não pode refreá-la, a desregulamentação do mercado financeiro é a regra. E embora tenha havido recentemente alguma forma de controle, as finanças são como pássaros, voam alto, ultrapassam os modestos obstáculos, e atacam como águias e ganham como piratas: muito e muito dinheiro. Como dizia um amigo americano: “Speculation, that´s the name of the game” (Especulação, este é o nome do jogo). Ou seja, quando as instituições não têm uma regulamentação estatal elas ficam soltas para o ataque, qualquer ataque. E não existindo crédito à produção, o setor financeiro se torna finanças bandidas

2) Há uma idéia definitiva nas finanças: o seu movimento é regido não por qualquer critério social, como por exemplo, fornecer crédito aos setores produtivo ou para o consumo das famílias. Na prática, elas são atraídas – isso está berrando de evidente – pelo lado especulativo. E vejam e olhem bem, não se trata de dizer que um banco ou uma entidade financeira são especulativos. Não. O que se trata de dizer é que a totalidade das finanças – é preciso sublinhar com ênfase – pratica uma vontade e uma ação especulativa. Cada aplicador ou instituição atua geralmente de modo separado, só que o conjunto deles e delas tem uma tendência uniforme de exercer um desempenho e um comportamento de aproveitamento excessivo e imediato. E a dinâmica nos mercados financeiros mundiais é toda movida pela elasticidade jogatina do rendimento.

3) No caso da Europa, a hora atual é a do ataque das finanças aos Estados. E estes enxames de abelhas vorazes atuam sempre no interesse do seu próprio desenvolvimento e jamais no interesse geral. Num primeiro momento inventam o endividamento pelo fornecimento fácil de recursos, depois tratam das renovações seguidas até o momento da deterioração do ente público. E por fim, como um espadachim dos antigos filmes de capa e espada, depois de muito lucrarem com a prática de juros faceiros, normalmente com prêmios de risco altivos, dão o golpe final. Diante da dívida progressiva, a única saída é a “ajuda” das entidades tipo FMI, União Européia, Banco Central Europeu, etc. Vem, é claro, os “planos de salvação”, que serão tantos quantos forem necessários para a recuperação ampliada do capital, cedidos ao Estado.

4) Ora, esse plano pode ter duas etapas: uma primeira, onde se destaca a apropriação máxima de recursos possíveis, sejam monetários ou propriedades, como as famosas privatizações, que levam a um empobrecimento e uma transferência de renda do país explorado aos financistas. Nesse plano de salvação, as finanças acabam por definir uma política econômica de austeridade para o país, que envolve corte de gastos gerais, corte de despesas com pessoal, corte de funcionários, corte de assistência social (aposentadorias, gastos com saúde, gastos com educação), vendas de propriedades do Estado, etc. Este balaio de medidas inclui muitas vezes aumento de impostos e um plano de recuperação do sistema bancário nativo, parceiro local, com uma recapitalização dos bancos. Este filme nós já vimos por aqui. O resultado final é paradoxal, porque caem as receitas do governo, o que no limite cria sempre a possibilidade de novos planos de salvações (como está para acontecer com a Grécia e  Portugal), provocando um decréscimo da produção, um desemprego em grande escala e um estado de empobrecimento geral da nação. É um processo que atravessa vários anos e que transfere renda da população para os bancos locais e para os Estados, e destes bancos e destes Estados para as finanças hegemônicas.

5) Há uma segunda etapa, quando a audácia chega ao limite do limite, tentada contra, e felizmente recusada, pela Argentina. Trata-se da proposição de um Comitê de credores para dirigir a política econômica de um país, onde o funcionamento do Estado existe antes de tudo para pagar as dívidas e só secundariamente para manter a sua existência, e por último, atender as necessidades da sociedade. Ou seja, o Comitê de Credores passa a determinar tudo dentro do país. É uma liquidação de qualquer resquício de soberania e de autonomia. As flores são plantadas somente para crescerem no jardim das finanças. Após a atitude corajosa dos argentinos, que fizeram uma renegociação na marra, diminuindo frontalmente a dívida, o país buscou um desenvolvimento interno com resultados muito interessantes para o Estado, para a democracia e para a população. Esta etapa não foi abandonada, as finanças a deixaram no armário.

6) Bem, o que está acontecendo agora na Europa? Estamos no prosseguimento da crise das finanças internacionais após a crise americana de 2007, que teve seus desdobramentos inquietantes na Europa. Num canto da cesta dos países, temos aqueles que têm dívidas enormes face à dimensão dos seus PIBs e que apresentam déficits continuadamente crescentes e precisam deter essa forma de comportamento. O procedimento normal é quase bélico: as finanças cercam esses países de tal modo que eles são obrigados a fazerem o plano de salvação e a permitirem que propriedades e patrimônios públicos sejam transferidos para os capitais privados.

7) O que marca na Europa nesse momento, do ponto de vista geopolítico, é a tentativa de mudança do comando europeu. Num certo sentido, a Alemanha está obrigando a uma nova hierarquia na sociedade do Velho Mundo, acentuando definitivamente o seu retorno na proposição do desenho do continente. Passa a ser o país líder com propostas de definição para o comportamento econômico do conjunto dos países, visando a implantação de uma política econômica de austeridade, com controles fortes na área fiscal. Obviamente que esta proposta aparece também nos planos de salvação para os países europeus, só que com uma participação crescente dos bancos no manejo da situação. Pois Ângela Merkel exige que os capitais entrem obrigatoriamente na participação destes planos, com recursos na renegociação da dívida. Isto quer dizer que as finanças se entrelaçam cada vez mais com os Estados. Certamente, a ida de Christine Lagarde para o FMI foi uma bela jogada da Alemanha e da França – retirando de cena, por qualquer que seja a razão, o inconveniente Dominique Strauss-Kahn – para dar um encaminhamento mais financista a constituição de uma nova hierarquia européia. Só que essas políticas contracionistas que a Alemanha propõe apenas adiam, por mais um tempo, a crise das finanças, a crise da economia produtiva, a crise dos Estados europeus, a crise do Euro e a crise da Europa. Porque está muito claro, o que está em jogo não é a salvação das nações européias, mas sim, a salvação das finanças do Velho Continente. E nada indica que elas serão salvas. E se não forem, não só a Espanha e a Itália tombarão, mas estarão em cheque além dos países da comunidade européia, a Inglaterra e, no fim da linha, os Estados Unidos.

8) Nunca esquecer que essas finanças estão todas entrelaçadas. Não é por outra razão que Bernanke declarou ontem, quarta feira, no Congresso americano que o FED (Banco Central Americano) está preparado a dar novos estímulos econômicos. Tradução: dar outra liquidez, a terceira já, além dos “bailouts” para os bancos americanos e num certo sentido apoiar o Banco Central Europeu e os bancos privados para enfrentarem a potencialidade de defaults de Estados e de instituições financeiras.

9) Como se vê, a crise é grave. Tentemos examiná-la no contexto da crise do Ocidente. Cabe ver que ela principiou nos Estados Unidos e envolveu a necessidade de salvação das instituições financeiras americanas. No caminhar do processo surgiram dois planos para os bancos, que receberam mais de 1 trilhão e meio de dólares de empréstimos do Estado, além da efetiva troca de títulos podres por parte do FED para limpar o balanço destas entidades financeiras. E isso sem contar outros programas de liquidez para o sistema bancário. Uma vez que o Estado está sempre de sobreaviso para sustentar, em nome do risco sistêmico, a liquidez e a solvência destes capitais.

10) E nisso, não houve nenhuma modificação significativa da desregulamentação dos bancos. Eles continuaram atuando fundamentalmente na especulação, tanto em mercados americanos como em commodities. E, via lobbies, travaram o Congresso para qualquer modificação maior na regulamentação financeira, além de paralisar o governo americano com a lei sobre o limite do endividamento dos Estados Unidos. Se até 2 de agosto as coisas não forem resolvidas, os americanos poderão estar sujeitos a defaults, o que seria uma tragédia para a economia mundial. Ou seja, o conflito finanças x sociedade, deslocado para finanças x Estado pode chegar a um agravamento fantástico da crise ou a derrota definitiva do governo Obama para as finanças, que teriam então recuperado a sua capacidade de dominar o Estado, quatro anos após a irrupção da crise de 2007. Assim, embora sem ser uma fração de classe unitária e absolutamente coesa, enfrentando diversas contradições internas, as finanças americanas estão avançando para conseguir uma solução de compromisso no jogo político e alcançar um triunfo esfarrapado, mas ainda assim triunfo. E isto combinaria com uma tentativa de rearranjo das finanças na Europa, desde sempre apoiadas pelo Banco Central Europeu, pela Comunidade Européia, para instaurar de vez o projeto da Europa dos Capitais, uma vez que não se fala e nem se cogita da criação de um Estado político da Europa.

Conclusão: os capitais financeiros estão jogando com as populações dos Estados Unidos e da Europa o jogo de cara e coroa célebre: se der cara, eu ganho; se der coroa, vocês perdem.

11) Porém esse novo arranjo, se ele se confirmar, nos leva para uma situação crítica, já que a produção americana e européia crescem vagarosamente, o desemprego continua firme e a transformação tecnológica da sociedade ocidental continuará emperrada. Uma vez que a passagem do padrão de acumulação centrado no automóvel, no petróleo e na produção em massa para um padrão baseado nas novas tecnologias de informação e telecomunicação não se dará. E não se dará porque não haverá crédito para a produção. Este não é o jogo das finanças. E não se dará também porque o Estado, que poderia fazê-lo, ficará submisso e de mãos dadas com setor financeiro. Enquanto não se estabelecer a rota para a passagem que falamos acima, a crise será a rainha do Ocidente. Shakespeare uma vez disse: Woman, thy name is fragility (“Mulher, teu nome é fragilidade”). Hoje, substituiria a palavra mulher pela palavra finanças.

12) Geopoliticamente, a crise das finanças no Ocidente é o que está permitindo, com cada vez mais velocidade e maior consistência, primeiro, a passagem da unipolaridade americana para a bipolaridade USA-China. (Entre parênteses, a China cresceu 9,7% no primeiro trimestre e 9,5 no segundo, carregando consigo a Ásia, a Índia, o Brasil, a América do Sul, e a África.) E em segundo lugar, que o eixo Estados Unidos– Inglaterra–Europa vai ter uma nova liderança na Europa, a Alemanha, seguida pela França, enquanto a Inglaterra tenta se situar nesse meio do movimento das geleiras do Ocidente, de um lado sofrendo a crise americana – que é também sua – e de outro, tentando não se contaminar com a crise da União Européia.
QUEM SÃO OS QUE DOBRAM OS SINOS?

13) Pois é nesse contexto que se pode entender esta crise Murdoch, que entrelaça capitais privados (finanças e meios de comunicação) e o Estado. O nível de criminalidade seja das finanças seja dos meios de comunicações é extraordinariamente alto. Façamos uma reflexão: de um lado, as finanças fizeram todo tipo de falcatruas e ninguém foi preso, e até estão em condições de recuperarem a sua força; de outro, os meios de comunicação, ao menos parte da grande mídia, por sua vez, constituíram um partido que faz do domínio público um domínio privado. O que pensar, então, da audácia de Murdoch que organizou um poder midiático enorme, a ponto de ser um elemento decisivo, pelo seu apoio e de sua mídia, nas eleições de Major, de Blair, de Cameron? Ou seja, não era o governo e os políticos que se serviam dele, mas ele que os elegia e, em parte, dirigia o Governo. O apoio inglês à guerra do Iraque se deu depois de uma conversa de Blair e Murdoch, revelou a mulher de Blair. Pois bem, ele avançou tanto as suas forças dentro do governo, que a sua relação com Cameron permitiu não só relações pessoais com o primeiro ministro, como também a colocação de um diretor do jornal que Murdoch fechou – o “News of the World” – para porta-voz de Cameron. Já prevendo a bomba, este auxiliar se demitiu em janeiro, quando as investigações estavam em andamento, mas foi preso por esses dias pela polícia britânica. Oh, fina comédia!

14) Figura no roteiro desta história a idéia de que  Murdoch iria se apropriar de uma espécie de CNN britânica, a BSkyB, por decisão estatal, quando eclodiu o escândalo e o Estado suspendeu a operação de “takeover”. Mas o mais grave de tudo: no afã de controlar, de ter poder sobre as pessoas, de dominar o Estado, o jornal de Murdoch fez mais de 4000 investigações com escutas clandestinas e não autorizadas, além de ter subornado policiais, etc. Ou seja, uma baita ação criminal. No entanto, audácia aguda, ele andou espionando Gordon Brown, o primeiro ministro depois de Blair, a quem Murdoch não apoiou. Leitor incrédulo olha só os tempos que estamos vivendo no Ocidente. Primeiro, as finanças subjugando o Estado líder do Ocidente e instalando a Europa dos capitais com a liderança da Alemanha. Segundo, a Inglaterra exibindo a céu aberto como se opera a chantagem no Estado. Lembram o recente filme de Polansky sobre um “ghost writer” de um primeiro ministro inglês? Esses tempos trazem também o caminho da destruição do Estado, através da inversão de papéis: o controle público do poder pelo setor privado. Este caso do Murdoch nos faz lembrar o velho filme de Orson Welles, “Cidadão Kane”, onde o plutocrata John Foster Kane achava que podia fazer tudo, desde a guerra contra a Espanha até ser presidente dos Estados Unidos. Como disse Orson Welles de seu personagem: Kane era um fascista. E, a pergunta final não é mais a de Hemingway: “Por quem sinos dobram?”. A resposta nós sabíamos desde o poeta John Donne. Todavia, a pergunta de agora é outra: “Quem são os que dobram os sinos?”. Agora nós também sabemos.


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