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30 de julho de 2011
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09:45

Casa do Artista RS: oito coringas e uma dama de fino trato

Por
Sul 21
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Maria Therezinha é a única mulher entre os nove moradores da Casa do Artista do Rio Grande do Sul | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Geraldo Hasse
Especial para o Sul21

A Casa do Artista Riograndense está com a lotação (quase) esgotada. Nessa pitoresca república fundada em 1949 no bairro Glória, em Porto Alegre, cabem onze pessoas, mas atualmente fazem parte do elenco nove moradores de 60 a 84 anos. São atores mais ou menos inativos que já tiveram seus momentos de brilho em palcos, passarelas, picadeiros e estúdios de filmagem ou gravação, mas não abrem mão do direito de trabalhar. Ali, ninguém se considera carta fora do baralho. Eternamente na berlinda, alguns fazem bicos, outros pontas, de preferência na atividade artística original. Os que não têm mais força para perseguir a fama e a fortuna como em outras temporadas satisfazem-se contando ricas histórias pessoais que dariam bons enredos para contos, novelas ou romances. O que nem sempre existe é platéia para tantos corações solitários.

No bairro Glória, o retiro dos artistas tem lugar para 11 pessoas | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

No momento, a única dama da casa é Maria Therezinha Pereira Dias, viúva de Vanoli Pereira Dias, que ficou na história como o diretor da maioria dos filmes de Teixeirinha. Ela nasceu em 1927 no alto da rua Coronel Bordini, no bairro Moinhos de Vento, e se criou na rua Jacinto Gomes, no Bom Fim. O pai de origem alemã (sobrenome Eirth) tinha uma gráfica que durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi absorvida pela tipografia da Livraria do Globo. Recém-formada cabeleireira, casou aos 19 anos com o ator Vanoli Pereira Dias, com quem “mambembou” pelo Brasil durante uma década, apresentando-se como Lair Dias ao lado de Procópio Ferreira e Bibi Ferreira, entre outros atores menos famosos.

Com dois filhos, cansada de cozinhar papinhas em espiriteiras e lavar roupas em pias de hotel, voltou para Porto Alegre, onde se conformou com o papel de ex-(primeira)mulher de Pereira Dias – ele morreu em 1989, aos 64 anos, após o quinto casamento. Apesar de separados, os dois se viam com alguma frequência. O último encontro foi casual, na ponte onde se cruzam as avenidas Ipiranga e Getúlio Vargas, sobre o arroio Dilúvio, em Porto Alegre. “Quero te dizer uma coisa”, sussurou ele, muy jururu, abatido pelo diabetes. Ela não o levava muito a sério, mas ficou comovida com sua última fala: “Tu foste o primeiro, único e verdadeiro amor da minha vida”. Ainda hoje ela diz o mesmo dele. Nunca teve coragem de casar de novo, apesar de ser muito cobiçada nos bastidores da vida artística enquanto morou no Rio e em São Paulo.

Maria Therezinha foi modelo de escolas de arte. No centro do quadril se destacavam as covinhas que imortalizaram a Vênus de Milo. “Talvez ainda estejam aqui.” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Magra, tinha o corpo bem feito, tanto que foi modelo vivo de escolas de arte. Os professores gostavam de mandar desenhá-la nua, de costas, pois no centro do lindo quadril se destacavam as covinhas que imortalizaram a Vênus de Milo. “Talvez ainda estejam aqui”, diz ela, passando a mão nas costas, cobertas por um robe colorido, presente do único filho vivo, Pedro, 64 anos, artista plástico em Florianópolis. O caçula morreu em 1976 aos 21 anos. Tinha o mesmo nome do pai, com quem trabalhava na produção dos filmes de Teixeirinha. Tragédia: com sua câmera, Vanoli Filho procurava um bom ângulo de filmagem do Auditório Araújo Vianna quando despencou de uma altura considerável. Um ano depois, quando parecia curado, morreu de um aneurisma provavelmente causado pela queda do alto. É a história mais triste de Therezinha, que há dois anos foi atropelada quando tentava pegar um ônibus na Glória. Hospitalizada durante mais de um mês, recuperou-se nas casas de uma irmã e do filho. Apenas há cinco meses voltou à Casa do Artista, onde reencontrou seu quarto intacto, no fundo do corredor do primeiro andar (a casa é um sobrado). Durante sua ausência, morreram as outras três mulheres que também moravam no pensionato. Seus quartos foram ocupados por novos remanescentes da ribalta portoalegrense.

“Avô” de passarela de Gisele Bundchen

Alegre, cheio de vivacidade, o depoimento da viúva Pereira Dias foi ouvido em respeitoso silêncio pelo ator Carlos Alberto de La Porta, 75 anos, que se mudou para a casa há pouco mais de um mês. Ereto, alto astral, ele ostenta o perfil do ator norte-americano Tyrone Power. Apresenta-se como o primeiro manequim e primeiro modelo fotográfico do Rio Grande do Sul, atividades predominantes numa carreira que abrangeu também o radioteatro, o teatro, o cinema e a televisão. Por coincidência, De La Porta trabalhou como coadjuvante num dos filmes de Teixeirinha, sob a direção de Pereira Dias. “Me lembro como ele sofreu com a morte do filho”, diz ele.

De La Porta é “avô” de passarela de Gisele Bundchen, pois o professor dela, Dílson Stein, foi um dos seus melhores na sua academia | Ramiro Furquim/Sul21

Começou cedo na lida artística porque o pai (Miguel de La Porta) trabalhava no Teatro de Resistência da Azenha, onde havia sessões diárias. Palco e passarela nunca o inibiram. Luzes, câmeras, microfones sempre o atraíram. No desfile de um chá beneficente apresentado pela cantora Hebe Camargo (“Eu tinha uma andorinha que me fugiu da gaiola”), em Porto Alegre, De La Porta apareceu vestido de noivo ao lado da jovem manequim Yeda Maria Vargas, que anos depois, em 1963, se consagraria como Miss Universo. Muitas lembranças… Na inauguração da TV Piratini, em 23 de dezembro de 1959, fez o papel de Ano Velho num quadro antológico sobre a mudança do calendário. Como ator, trabalhou em São Paulo ao lado de Paulo Autran e Carmen Silva. Foi aluno de Antunes Filho, o maior diretor brasileiro de teatro, que lhe ensinou postura de palco que usa também na vida cotidiana. Pai de três filhos e avô de sete netos que moram no interior (Caxias do Sul e Parobé), sustentou-se por décadas como professor de manequins, ensinando dezenas de jovens a exibir roupas em passarelas. Sheron Rodrigues, Leila Lopes, Vanderli são ex-alunos seus que foram looonge desfilando. De certa maneira, De La Porta é “avô” de passarela de Gisele Bundchen, pois o professor dela, Dílson Stein, foi um dos seus melhores na academia que manteve durante anos na Rua dos Andradas. Tudo ia muito bem até que desabou o telhado do velho casarão – hoje ali funciona um estacionamento. Foi no final do século XX. De La Porta passou a dar aulas em outra academia na rua General Câmara, mas dali por diante as coisas começaram a andar para trás, como num filme rodado ao contrário.

Aposentado com um salário, De La Porta está tentando elevar seu pecúlio pois durante anos contribuiu sobre sete salários. Diz que conhece a Casa do Artista desde a fundação. Acalenta um sonho, construir um teatro de bolso ou levantar um palco-auditório no terreno defronte à república. Assim a maioria não precisaria sair de casa para estudar, ensaiar ou apresentar-se. O mais difícil é conseguir a adesão dos colegas de moradia. A maioria é muito individualista, isola-se nos próprios quartos ou envolve-se em trabalhos fora da casa.

Gomes mantém o vozeirão que durante anos lhe garantiu papéis de velho em novelas de rádio. | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Conde. Apenas Conde”

É o caso de “Wilson Roberto Gomes”, 69 anos, ex-ator de radioteatro que presta serviços gerais num edifício vizinho. Mesmo cansado, Gomes cuida da casa; morador antigo, é apontado como o autor da maioria das obras de arte que decoram as paredes do pensionato. Rechonchudo, mantém o vozeirão que durante anos lhe garantiu papéis de velho em novelas de rádio.

“Eu sou do tempo do avião a lenha”, diz Catulo Parra, recordando um dos seus bordões | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Outro morador com um ano de casa é o ator Catulo Parra, 62 anos. Pai de quatro filhos, inclusive de uma moça chamada Violeta Parra (o mesmo nome da compositora chilena de “Volver a los 17”), Catulo começou alegrando a calçada na frente da Casa Catraca, na Azenha. Depois “parou rodeio” na frente da Galeria Malcon, na Rua dos Andradas. Em inúmeras temporadas trabalhou na animação da Feira do Livro como o eterno, o impossível Palhaço Carambola. “Eu sou do tempo do avião a lenha”, diz ele, recordando um dos seus bordões. Foi ator em Calabar, Hoje é Dia de Rock e dezenas de peças infantis e adultas que lhe deram um Tibicuera e um Açorianos como melhor ator. Na parede do corredor do seu quarto, uma galeria de posters fotográficos comprova a variedade de uma carreira marcada principalmente por papéis cômicos. A artrite que lhe garantiu uma aposentadoria por invalidez não o impede de trabalhar. No momento se prepara para participar de uma peça montada por Julio Zanotta, ex-presidente da Casa do Artista.

Os outros moradores da casa não estavam presentes ou ficaram quietos no seu canto durante a visita do Sul21, ao entardecer da última quinta (28). O único que abriu rapidamente a porta do quarto, mostrando a cabeça raspada e o cavanhaque branco, não quis falar nem ser fotografado. Disse estar se preparando para gravar um CD em Curitiba, como cantor. Animado, em pleno ensaio solitário, estava com o computador portátil ligado. Seu nome? “Conde. Apenas Conde”. Segundo os outros residentes, ele não gosta que saibam que está morando na Rua Anchieta, 280, na Glória, em cujo jardim havia apenas um carrão Ford estacionado. Sem mistério: o carro é do próprio Conde.

A casa inspirou-se no Retiro dos Artistas, fundado em 1918 no Rio de Janeiro e que dá aulas de teatro, com apoio da TV Globo| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Entregue a si mesma por 10 anos, a república dos artistas da Glória está desde 2010 sob nova direção. O presidente é Luciano Fernandes, um jovem palhaço e professor de artes circences que vem liderando um mutirão para suprir as carências mais elementares dos moradores. Membro da diretoria do Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos, que “assumiu” a Casa do Artista, ele obteve recentemente uma subvenção de R$ 10 mil da prefeitura para uma reforma da casa, que precisa de reparos e pintura. O imóvel foi doado pela família de Fabio Rocco, conhecido pelo nome artístico de Cláudio Real, um dos pioneiros da radionovela gaúcha. A casa inspirou-se no Retiro dos Artistas, fundado em 1918 no Rio de Janeiro e que dá aulas de teatro, com apoio da TV Globo.


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