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3 de julho de 2011
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10:00

Arthur de Faria: “Careta é não poder viver da música”

Por
Sul 21
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Ramiro Furquim/Sul21

Felipe Prestes

O jornalista e músico Arthur de Faria é uma voz ponderada no tema dos direitos autorais. Afirma que há interpretações apressadas e equivocadas entre os defensores da flexibilização e entre seus detratores. Apesar da ponderação, Arthur defende o direito autoral e lamenta que a internet faça com que as pessoas relativizem a música como profissão. “As pessoas veem (o direito autoral) como se fosse uma coisa careta. Na verdade, careta é eu precisar ter outro emprego, porque não posso viver só de música, e várias outras pessoas. A caretice maior é gerar um sistema em que é legal ser amador”.

Arthur recebeu o Sul21 para um papo de mais de uma hora em que também criticou as “perversões” geradas pelas leis de incentivo à cultura no Brasil, falou sobre o tradicionalismo gaúcho e discorreu sobre um assunto pelo qual é apaixonado: a história da música, especialmente a música de Porto Alegre.

O Seu Conjunto, liderado por ele, comemora seus 15 anos com um show no dia 9 de julho, às 21h, no Teatro de Arena (escadarias do Viaduto da Borges de Medeiros). O show lança o quinto disco da banda, “Música para Ouvir Sentado”.

Sul21 – O Seu Conjunto completa quinze anos. O que mudou de lá para cá para uma banda que está totalmente fora do mainstream, que veio dos anos 90, com a internet engatinhando?

Arthur de Faria – Como tudo na vida, tem um lado bom e um lado ruim. A internet melhorou muito algumas situações para a música, mas também piorou muito para outras. Esta relativização do direito autoral… Bom, acabou o mercado do disco, isto já é um prejuízo e tanto. Isto não é legal (risos). A política das grandes gravadoras ajudou muito, elas próprias cavaram o seu fim, investindo cada vez menos na pluralidade de artistas, pegando um gênero de cada vez e tentando tirar tudo o que dava dele. Mas esta coisa das pessoas poderem baixar música acabou não só com as grandes gravadoras, mas com os grandes parceiros dos músicos independentes, que eram os selos independentes. O Seu Conjunto tem cinco discos lançados, todos eles por selos independentes. Três dos selos com os quais a gente trabalhou faliram. Tem esta coisa de achar que o cara ganha no show, mas também tem a relativização de que as pessoas pagam R$ 500 para ver o Paul McCartney, mas não querem pagar R$ 20 para ver um artista de sua cidade. Circula muito menos dinheiro (atualmente). Acho que o fato de a Superguidis ter acabado agora é muito emblemático. É uma das grandes bandas da geração internet, ficou muito conhecida no circuito de festivais independentes, onde circula muito pouco dinheiro, e, pelo que sei, eles acabaram porque realmente eles precisam tocar a vida, estão chegando aos 30 anos de idade. Isto é muito cruel. Todo mundo acha que a situação melhorou com a internet. Melhorou no sentido de que o mundo está muito mais próximo.

Sul21 – A divulgação do trabalho.

Arthur de Faria – A divulgação do trabalho melhorou. Mas, ao mesmo tempo, não sei o quanto significa exatamente. Exceto em casos de superexposição, como este da Banda Mais Bonita da Cidade, não é uma coisa que faça diferença numérica mesmo.

"O fato de a Superguidis ter acabado agora é muito emblemático. Pelo que sei, eles acabaram porque realmente eles precisam tocar a vida. Isto é muito cruel" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Mas querer mudar esta situação é uma insanidade, não é?

Arthur de Faria – Não tem como. É remar contra a maré. Inclusive, os nossos discos que não estão em catálogo estão todos disponíveis para baixar. Eu baixo muito disco que não existe mais. Mas, para fazer um disco minimamente profissional, hoje, no Brasil, tu gastas uns R$ 30 mil, talvez um pouco mais. Por que é que isto tem que ser de graça? Por que é que tem que se agir como se ninguém estivesse pagando por isso? Não. Eu não consigo pegar o pão na padaria de graça, não consigo pagar a escola da minha filha de graça. Tanto que eu sempre tive outro emprego. É muito delicada esta questão, e ela é tratada de forma muito ligeira por quem entende tudo errado. Alguns músicos mais antigos acham: ‘os caras querem acabar com o direito autoral’. Não é isto. O Movimento Música para Baixar, por exemplo, não quer isto. Por outro lado, tem os caras adeptos de liberar tudo. Só que também não pode: tu tens que viver de alguma coisa. A profissão do compositor, principalmente, fica muito complicada.

Sul21 – Neste tema se mistura a má versação do Ecad.

Arthur de Faria – Sim. Por exemplo, o Ecad não tem que acabar de jeito nenhum. Ele tem que ser cada vez mais organizado e cada vez é mais fácil fazer isto. Eu, que não sou nenhum sucesso de mídia, recebo religiosamente grana do Ecad como compositor. Às vezes é um dinheirinho, às vezes é um dinheiro bem bom. Ou seja: funciona. Se funciona comigo, funciona certamente com todo mundo. E pode funcionar muito melhor. Nos EUA e em muitos países da Europa já é uma questão resolvida, porque qualquer música executada é registrada em um computador central. No Brasil, ainda é muito por amostragem. E tem as grandes emissoras de TV que não pagam o Ecad, este tipo de calote. Esta coisa de legislação tem que ter e tem que ser cumprida. As pessoas veem como se fosse uma coisa careta. Na verdade, careta é eu precisar ter outro emprego, porque não posso viver só de música, e várias outras pessoas. A caretice maior é gerar um sistema em que é legal ser amador. Teve uma gravadora que eu gosto muito, lá de Goiânia, a Monstro, que até pouco tempo atrás a primeira filosofia dela para assinar com um artista era perguntar: “Tu tens emprego? Porque se tu não tiveres não vamos nem assinar contigo, porque tu não vais conseguir te empenhar” (risos).

Sul21 – Por um lado, há músicos muito conservadores, acostumados com um sistema antigo.

Arthur de Faria – E que não funciona. Estão acostumados com um sistema que nunca funcionou direito.

Sul21 – Não aceitam um disco seu de 40 anos atrás ser baixado, ou insistem em regular algo que não tem como regular.

Arthur de Faria – Até tem como regular. Tem porque hoje cada faixa de um disco sai com o ISRC (código que identifica gravações). A sociedade arrecadadora de direitos autorais dos EUA está fazendo um banco que tem alguns milhares de músicas a mais por dia. Com este registro, o computador identifica uma música que está sendo executada em uma rádio na Tailândia. Claro que sempre vai ter alguém que vai saber driblar isto. Outro sistema que é interessante é o download patrocinado. Tu botas o teu disco em um determinado site, baixam o disco de graça, e tu ganhas uma grana do patrocinador do site.

Sul21 – Já são adaptações, não é tentar voltar ao modelo anterior.

Arthur de Faria – Já são adaptações. Voltar ao modelo anterior não tem como.

Sul21 – Como o disco não dá dinheiro e nem todo mundo se sustenta só de show, a tendência é o subsídio cada vez maior da música pelo estado e pelas empresas?

Arthur de Faria – É, e isto acabou gerando uma relação perversa, porque hoje nenhuma empresa quer patrocinar nada se não houver lei de incentivo. Os caras, em vez de dar dinheiro para cultura, descontam dinheiro de imposto, e todo mundo acaba pagando…

"Muitos artistas, ainda que tenham seus discos e temporadas de show patrocinados por leis de incentivo, não fazem preços mais baratos, o que seria o mais honesto" | Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – … por uma propaganda.

Arthur de Faria – Exato. O que acontece de mais cruel nisto é que muitos artistas, ainda que tenham seus discos e temporadas de show patrocinados por leis de incentivo, não fazem preços mais baratos, o que seria o mais honesto. Este disco mais recente entrou em um edital da Natura. Então, estamos vendendo ele por um preço bem mais barato, metade do preço dos anteriores. Acho que tem que ser assim, tem que ter uma espécie de contrapartida social. Esta coisa das leis gera perversões mesmo. Há um tempo atrás, havia uma brecha jurídica através da qual as empresas conseguiam 120% de dedução de imposto. Ou seja: o cara recebia dinheiro para patrocinar (risos). Isto não existe mais. Mas ainda assim, tem áreas em que é 100% de dedução.  E a maior parte dos patrocinadores tende a apoiar em coisas que vão ter maior visibilidade. Entre eu e a Ivete Sangalo, sempre a Ivete Sangalo. Ou seja, ninguém está fazendo cultura, as pessoas só estão fazendo propaganda com o dinheiro público.

Sul 21 – Incentivando talvez quem não precise de incentivo…

Arthur de Faria – Bem, é uma outra questão delicada. Por exemplo, essa história do caso do blog da Bethânia, em que ela ganhou aquela grana que estava pedindo. Uma coisa que pouca gente falou é que ela estava pedindo aquela grana altíssima para um patrocinador mas iria deixar o trabalho disponivel de graça para as pessoas. Ou seja, eu acho que isso é um importante atenuante, mesmo que tudo estivesse muito caro. É diferente de um cara pegar um patrocínio de 100 milhões pra fazer uma turnê nacional e cobrar 100 reais o ingresso. Ela estava cobrando alto por um negócio que ia estar de graça para todo mundo. Isso eu acho que é uma diferença importante. Eu participei de muitas comissões de seleção de projetos da Petrobras, e uma coisa que eu sempre peleio em comissões é que um projeto que seja aprovado recebendo dinheiro deve custar muito mais barato. O ideal até seria ser de graça, mas sendo assim é mais um motivo para as pessoas não pagarem por cultura, mas, enfim, tem que ser mais barato.

Sul21 – O normal seria perguntar se dá para viver com o tipo de música de vocês, mas vou logo perguntar: qual é o volume de dívidas de vocês?

Arthur de Faria – Ah, faz muitos anos que não temos prejuízo. Mas não dá pra viver só disso. Dos sete, cinco trabalham só com música, dois tem outros empregos, eu trabalho em rádio, o (Sérgio) Karam (saxofonista) é concursado da Justiça Federal. Uma coisa importante quando tu começas uma carreira em qualquer área é que tu tens que ter noção do teu contexto e do teu tamanho. Ninguém da banda achou que fôssemos gerar grana suficiente para ter só aquilo. Por isso é que a coisa mais difícil é conciliar os horários de todo mundo, porque todo mundo tem outra atividade. A gente manter uma banda durante 15 anos ensaiando semanalmente, gravar cinco discos, tocar em muitos lugares, isso é uma vitória, uma alegria, e a gente constrói muito das carreiras individuais a partir do conjunto. Todos têm seus grupos, todo mundo meio que se ajuda. O Julio Rizzo diz que não somos uma banda, mas um movimento, a gente já fez muita coisa junto, já passou por muita coisa. Uma meta que a gente tem ainda e que não foi atingida é a de ter uma certa constância em participar de festivais europeus, a gente já foi várias vezes, mas para coisas avulsas. Agora, com este disco instrumental, é mais fácil de entrar numa outra língua.

Sul21 – A música experimental parece que consegue mais sucesso na Europa. É o público de lá que gosta mais ou eles investem mais dinheiro?

"A gente manter uma banda durante 15 anos ensaiando semanalmente, gravar cinco discos, tocar em muitos lugares, isso é uma vitória" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Arthur de Faria – Acho que experimental não é o termo certo, eu diria sofisticado, o que não é exatamente melhor. Uma música pode ser muito simples e muito boa, pode ser melhor que uma música sofisticada e chata, mas são níveis de exigência diferentes para o ouvinte. Eu com o Seu Conjunto ou sem, já fiz 20 shows na Argentina, já tenho uma historinha lá. Há uma coisa muito diferente lá: é a curiosidade pelo “o que eu não sei” e o “portanto, eu vou ver”. Este é o raciocínio portenho e europeu, e no Brasil me parece que tem muito uma coisa do “eu não sei o que é isso então não vou ver” (risos). Ainda mesmo hoje, sendo tão fácil, com três, quatro cliques você pode descobrir o que é qualquer coisa. A Europa tem um natural interesse no mundo, pois como eles se espalharam pelo mundo inteiro, eles têm um interesse geral pela música do mundo, tanto que esses conceitos de world music e esses festivais são uma coisa um natural deles. Especialmente na Áustria.

Sul21 – Fora uma formação erudita que há lá.

Arthur de Faria – Também há a coisa do jazz e da música erudita serem mais cotidianas na vida das pessoas. Na Argentina também. Aqui, o circuito de música erudita é frequentado por poucos. Mesmo os concertos da Ospa são sempre assistidos pelas mesmas pessoas. O circuito de jazz em Porto Alegre foi murchando, murchando e praticamente não existe mais.

Sul21 – Quando tu falas “Argentina”, te referes a Buenos Aires, ou dá pra tocar em outras cidades?

Arthur de Faria – Agora nós vamos ter as primeiras experiências de tocar fora de Buenos Aires com o Surdomundo. Vamos a outras grandes cidades como Córdoba e Rosário. A Argentina é muito centralizada em Buenos Aires, é como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, tudo na mesma cidade.

Sul21 – Essa relação com a Argentina e Uruguai, uma coisa que o Vitor Ramil também tem, isso envolve algum tipo de rede, há algo mais forte nessas relações ou é cada um por si?

Arthur de Faria – Todos nós fomos muito beneficiados pelos “Porto Alegre em Buenos Aires”. Acho que o Vitor foi no primeiro, eu fui em 98. Em 96 tinha também o “Porto Alegre em Montevidéu”. Foi o primeiro show importante do Seu Conjunto fora de Porto Alegre. Mas em 92 eu já tinha feito um show só com musicas de um compositor uruguaio. Para mim sempre interessou — desde que eu comecei a fazer música com 13, 14 anos — esse tipo de diálogo com o pampa… Argentina, Uruguai, Rio Grande do Sul. E desde criança sempre fui muito para Argentina, a música favorita do meu avô era o tango, a minha mãe e meu pai sempre gostaram muito de Mercedes Sosa. Isso sempre foi uma coisa muito presente pra mim e, desde que eu comecei a fazer música de uma maneira mais profissional, sempre pensei na região mais do que no Rio de Janeiro por exemplo. Os “Porto Alegre em Buenos Aires” foram uma iniciativa das prefeituras e da vontade de Luciano Alabarse em Porto Alegre e do Carlos Villalba em Buenos Aires. Ambos estavam em áreas públicas, a vontade deles de fazer isso acontecer que fez a coisa durar 10 anos, é uma tradição que felizmente foi retomada. Trocou partido, trocou tudo, e o Luciano segue fazendo isso nos Porto Alegre em Cena, trazendo muita coisa da Argentina. O Festival de Inverno traz muita coisa de lá (do Prata), tem feito iniciativas lá, e a gente vai articulando.

"Eu me constranjo e tenho vontade às vezes de dizer que não sou gaúcho, sou rio-grandense" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Tu não achas que nós voltamos as costas para o Brasil? Até por uma presunção de superioridade?

Arthur de Faria –Essa é uma outra questão. Eu me constranjo e tenho vontade às vezes de dizer que não sou gaúcho, sou rio-grandense. Eu acho que na Catalunha tem isso e outros poucos lugares. Tem uma coisa que tu vê no RS que me deixa aterrorizado. Por exemplo, um cara com um automóvel. Daí ele tem a bandeira do RS e a bandeira do país de onde é sua etnia, a bandeira da Itália, da Alemanha, e o cara não tem a bandeira brasileira. O cara se sente em primeiro lugar gaúcho, em segundo lugar italiano, alemão, e nem se sente brasileiro. Isso me dá uma vergonha, cara, porque isso é ignorância, porque quando tu sais do Brasil, te dás conta de quão brasileiro tu és, mesmo aqui nos países vizinhos a gente chega e se sente em casa, é muito parecido com a gente, mas tu sente que és brasileiro. Tu sentes como isso é forte. O Nico Nikolaievsky, por exemplo, quando foi para o Rio de Janeiro começou a tomar chimarrão.

Sul21 – E até a questão musical, a gente tem semelhança inegável com o Uruguai. As milongas, etc, mas também

Arthur de Faria – Tem uma coisa que me preocupa muito. É um raciocínio do Jorge Luis Borges. Ele chama atenção para o fato de que não tem camelo no Alcorão, porque é um negócio tão cotidiano que tu não precisa falar nisso, não precisa ter cor local. Ou a poesia gauchesca, quando ele analisa o Martín Fierro, quando ele dá voz para o pajador e o cara vai falar, ele usa um português normal, não abusa da coisa gauchista. Essa coisa de forçar o gauchismo mais do que ele próprio existe, essa fantasia criada a partir da cidade, a reconstrução de heróis imaginários de um passado que talvez nunca tenha existido da forma como se pensa que existiu. Afinal, ele nem estava na gênese da história, nem era a ideia original do Paixão (Côrtes) e do Barbosa Lessa. O Paixão é muito crítico em relação a isso. Ele diz que era um movimento tradicionalista e hoje é tudo menos um movimento. Quando teve a grande explosão dos CTGs e do movimento tradicionalista, nas décadas de 60 e 70, foi muito em regiões de imigração italiana e alemã, que precisavam se sentir como pertencendo a alguma coisa. Daí tem essa adesão cega a uma fantasia construída que nem é questionada porque não é a tradição da própria pessoa. Isso explica que tenha CTG em tudo que é lugar do mundo, até na Rússia tem um CTG. Tem um livro do Eric Hobsbawn que é A Invenção da Tradição. Ele não fala exatamente do Rio Grande do Sul, fala da Escócia, da Irlanda, mas se tu trocares uma ou duas palavras parece que está falando da gente. Tu podes argumentar que toda a tradição é em alguma medida inventada, mas o que acontece aqui é que fica sendo pensado como se todo o passado fosse melhor. Eu estive várias vezes em noite de Maracatu no interior de  Pernambuco, os caras ficam ali improvisando aquele maracatu de baque solto que é uma forma musical que certamente é muito antiga, e eles estão falando do que está acontecendo agora. Hoje eles devem estar falando dos hackers que invadiram os sites do governo. Não é uma coisa engessada, é uma tradição que está viva; não é folclore, não existem temas sobre os quais se pode ou não falar. E daí eu me pergunto como um negócio tão bem organizado como o CTG, como isso poderia ajudar para espalhar a cultura do Rio Grande do Sul como um todo? Eu não estou nem falando no Júpiter Maçã, ainda que eu ache que ele seja 100% gaúcho, porto-alegrense. Mas, imagine, o Vitor Ramil não entra num CTG, o Quartchêto não entra – uma vez até tocou num CTG, mas depois fizeram uma reunião para saber aquele tipo de música poderia ser tocado em CTG e eles foram proibidos de tocar novamente. Eu acabo de lançar um disco que, das 13 faixas, 11 são milongas, ritmos do RS, da pampa, mas não tem essa reverência ao passado. Porque eu não acho que isso seja passado, acho que isso seja presente, isso os argentinos têm muito bem resolvido.

"Há uma fantasia construída que nem é questionada porque não é a tradição da própria pessoa. Isso explica que tenha CTG em tudo que é lugar do mundo" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Acho que eles tiveram uma crise assim na época do Piazzola….

Arthur de Faria – É, mas especificamente com o negócio do tango. O Piazzolla é o meu herói maior, ele era um puta marqueteiro, ele comprava várias brigas que tornava maiores do que eram e sabia usar isso como marketing dele mesmo. Então, houve um grande momento de embate, mas hoje em dia para quem toca tango na Argentina não tem mais esse problema, ele é um grande compositor como qualquer outro. O que acontece de novo na Argentina, que tem uns vinte anos é uma MPB, no caso deles MPA, uma música que não seja nem folclore, nem tango, nem rock, que é uma mistura dessas coisas todas, então León Gieco é um cara importante, o Fito Paez de certa forma também, que são caras que vieram de lugares diferentes e construíram uma música de difusão. Eles chamam de “cantautores”, daí entra muita gente fazendo chamamé, tango, chacarera, ritmos que seriam nossos também, uruguaios também, mas de uma forma infinitamente mais arejada do que aqui no Rio Grande do Sul. Se tu pegas os caras da vanguarda da música regional do RS, eles estão trinta anos atrasados com relação ao que se faz na Argentina, ou no Uruguai. Tu vês uma cantora como a Ana Prada (uruguaia) cantando chamamé de uma forma suave, bossa novista, com arranjos sofisticados, não tem nenhuma cantora no Rio Grande do Sul que cante um chamamé como uma pessoa normal, todo mundo acha que tem que ter vozeirão, tem que ganhar no grito, de forma impositiva, quando a vida real já aboliu isso há muito tempo.

Sul21 – Há outros nomes, né? Borghetinho, Luiz Carlos Borges…

Arthur de Faria – Que não tocam em CTG. O Borges é um gênio dentro da tradição, é um cara que aponta algumas coisas pra fora, mas é um músico tão extraordinário que abole essa coisa de ser tradicional ou inovador. Tem coisas do Borges que eu gosto muito, tem outras que eu não gosto nada, mas ele é tão grande que isso não importa, ele é transcendente por sua grandeza como músico. Mas os caras que realmente propõem coisas novas, como o Borghetti, o Bebeto Alves, o Vitor Ramil, o Quartchêto ou eu, são exceções. E nada disso é visto como música regional gaúcha e pôxa…. Esses dois discos do Vitor de milonga (Délibab e Ramilonga)… O cara faz um disco inteiro de milonga e não é sequer registrado no movimento tradicionalista. Nem o Bebeto, que é um milongueiro nato. Isso é uma coisa que me deixa assombrado. E a resposta dos caras é a mesma sempre: “ninguém é obrigado a participar”; mas veja o que isso causa no nosso estado comparado com a efervescência musical do Recife, por exemplo, onde também há caras que defendem a tradição como o Suassuna. Só que ele não está lá pra dizer o que pode e o que não pode, ele é um cara respeitado como sábio. É até mais conservador que o Paixão aqui. O Paixão aprova muitas dessas coisas que são desaprovadas por CTGs. E quando tu tentas explicar para alguém de fora, ninguém consegue entender. Aí tem um congresso no MTG pra decidir se um gaúcho pode dançar de brinco ou não. Então ele pode entrar de brinco no local, mas não pode dançar. (risos)

Sul21 – O jovem gaúcho vê a musica gaúcha como um troço caricato. Ele acaba não descobrindo as coisas boas.

Arthur de Faria – Ou tu tens uma adesão cega ao negócio, e aí é religioso, a verdade anterior ao mundo, ou tu tens uma visão crítica, muito diferente de um cara do Recife, que pode estar tocando num maracatu de baque solto lá pelas ruas do Recife, tocando numa banda de rock, em uma rave, e exercer todas essas coisas ao mesmo tempo. E isso tudo aqui no estado existe em nome de preservar uma coisa, mas acaba engessando.

Sul21 – Saindo um pouco da música tradicionalista, como tu vês essa auto-suficiência da música gaúcha, da música pop, ela existe mesmo? E é benéfica?

Arthur de Faria – Acho que não existe mais, existiu durante um certo tempo nos anos noventa quando as rádios estavam tocando bastante, mas o mercado para essas bandas diminuiu muito nos últimos oito, dez anos. Tanto que as bandas importantes daqui têm hoje contratos com selos de fora daqui. A Monstro por exemplo, de Goiânia, tem vários artistas daqui e eles têm tocado mais por lá. Aquele mercado que existia no estado… 10, 15 bandas vivendo bem disso, não existe mais.

Sul21 – Não tem mais como viver dos ginásios do interior?

Arthur de Faria – Não, ah.. muito menos, muito menos. Mesmo bandas grandes e consagradas como Papas e Nenhum de Nós não têm mais a popularidade que tiveram e estão abrindo outras frentes em outros lugares do país. A Pública foi morar em São Paulo. O Júpiter, o Wander (Wildner) mora em todos os lugares ao mesmo tempo. A Pata de Elefante está por todo o Brasil o tempo todo, a Superguidis também (estava). Os caras estão se dando conta que as rádios se fecharam muito para esse mercado de rock gaúcho, formatado pra tocar em rádio, e isso causou um baque mesmo. Tu vês bandas que tinham cachê imenso, de 30, 40 mil reais, e tocavam dez vezes por mês, hoje não sei se tem alguma no estado que consegue fazer isso. Mas, mesmo no Brasil, qual banda de rock lotaria hoje o Gigantinho?

(algum colega da Pop Rock grita ): A Fresno…

Arthur de Faria – Tu acha que a Fresno enche o Gigantinho?

(colega): Não, tô brincando… (risos)

Fotógrafo Ramiro Furquim (e) e repórter Felipe Prestes em entrevista com Arthur de Faria | Foto: Paulo Inchauspe/Especial/Sul21

Sul21 – Sobre tua formação musical, tu disseste que ouvia Piazzolla desde pequeno, tu nunca chegaste, na adolescência, a curtir bandas como Ramones, por exemplo, uma música mais popular, mais rebelde?

Arthur de Faria – Não, Ramones só fui ouvir com 30 anos. Sempre fui direto para a música mais sofisticada, porque sempre foi o que eu ouvia em casa. Não tinha rádio em casa. E na adolescência, que é a fase que tu não gostas das coisas que teus pais ouvem, eu comecei a ouvir as coisas do meu avô, muita música brasileira dos anos 30, 40, tango, Elizeth Cardoso. Então, com 12, 13 anos, quando começamos a ser músicos e montamos primeira banda… Daí com 13 surgiu o Clara Crocodilo do Arrigo Barnabé. A gente pirou muito naquilo, no Arrigo, no Itamar (Assumpção), lá em 1983. O Arrigo foi realmente quem me fez estudar música, entender música e me fez estudar na Escola da Ospa. Tendo esses caras como parâmetro, eu sabia que a música que eu queria fazer não era uma música que ia dar muito dinheiro, foi o que me direcionou a fazer faculdade em outra coisa. Depois da Ospa eu estudei com professores particulares e foi por aí a formação. Eu estou fazendo agora um mestrado em letras, talvez ainda faça um doutorado em música.

Sul21 – Tu citaste algumas influências. Tu tocaste no início da carreia com o Hique Gomes.

Arthur de Faria – Eu toquei com o Nico Nicolaiewsky, eu produzi o primeiro disco dele, em 95. O primeiro grupo que eu tive tocava música brasileira da década de 30. Foi a coisa mais próxima do pop estrelato que a gente poderia fazer, porque a gente lotava o (Theatro) São Pedro, por três dias, esse tipo de coisa. A gente fez 90 shows em dois anos, foi uma boa média na época, e o Hique ia dirigir o show seguinte da gente, só que acabou não acontecendo porque a banda acabou antes. Mas o Nico foi com quem trabalhei mesmo, foi uma grande influência. Dez anos depois de eu ter produzido o Nico, em 2005, eu e o (Fernando) Pezão resolvemos montar uma dupla, produzimos também um disco do Cláudio Levitan, esse universo da Sbórnia, que é do Hique e do Nico, mas que também é do Levitan. O Nico tem uma ligação muito forte com a música do leste europeu por causa da música judaica. Ele é judeu e se interessa muito pela cultura musical judaica. Isso é uma coisa que sempre me interessou também. E acho que ambos aprendemos isso com o Levitan. Ele é um cara menos conhecido do que deveria, porque é realmente genial.

Sul21: A influência deste universo (do Nico, do Levitan) no teu trabalho se nota também pelo humor.

Arthur de Faria – Tem uma frase do Caetano que diz : “Eu parto do princípio que todo mundo pode entender tudo”. Então se tu envolveres o público com simpatia, bom humor, tu podes fazer os caras curtirem e viajarem em uma música, o que não aconteceria de outra forma. A grande batalha do Seu Conjunto sempre foi a de tocar de uma forma que divertisse e que nos divertisse. Mesmo coisas muito difíceis de tocar, se a gente tocasse de uma forma que fosse “olha que legal essa música” – e não algo “olha como tocamos um negócio difícil” – funcionaria. O Arrigo também é por aí né? Desde o Clara Crocodilo tem essa coisa de humor que sempre ganha muita plateia. Há pessoas que nunca ouviriam de outra forma, se não fosse pelo humor.

Sul21 – E o último trabalho?

Arthur de Faria – É o quinto disco. Demoramos três anos, e nesse a gente quis fazer um negócio — não sei como tu vais colocar no jornal pela metáfora — , mas a gente fez um negócio “pau dentro” (risos). A gente gravou o disco inteiro em três dias, ensaiou muito, muito, muito… A gente foi estruturando o show antes, e aí a gente resolveu gravar, todo mundo junto, em três dias, sem editar nada, no máximo três takes pra cada música, para dar uma pegada diferente pro álbum, um calor. A gente fez essa coisa caprichada mesmo e tudo analógico. Só não saiu em vinil porque a gente não tinha dinheiro pra fazer, mas tenho vontade de lançar, talvez numa próxima tiragem. O disco está sendo distribuído neste esquema de disco independente, mas já teve três reposições, o que é um bom sinal. O show de lançamento é agora dia 9, no Teatro de Arena. Foi lançado antes em São Paulo, no Ibirapuera.

"Sempre fui direto para a música mais sofisticada, porque sempre foi o que eu ouvia em casa. Não tinha rádio em casa" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Pra gente fechar, eu queria que tu falasse do teu livro (sobre a história da música de Porto Alegre, ainda não lançado).

Arthur de Faria – É assim. Desde 89, quando eu comecei a trabalhar como jornalista, eu me interessei por essa coisa das raizes da música do Rio Grande do Sul, principalmente de Porto Alegre. E fui juntando textos, fazendo muitas entrevistas e juntando livros. Em 92, o Carlos Branco, que era coordenador de música da Secretaria Municipal de Cultura, fez uma série de fascículos e CDs chamada “A música de Porto Alegre” e eu fiz as origens da música de Porto Alegre. Foi um ano de trabalho, escrevi um fasciculinho de umas 40 páginas sobre a música de Porto Alegre desde a fundação da cidade até 1927. O Octavio Dutra foi um compositor que eu comecei a escutar nessa época, e aí depois eu fui reescrevendo. O Branco me chamou de novo no fim dos anos noventa e a gente lançou um negócio, “100 anos da Música de Porto Alegre”, junto com 5 CDs. Não era comercial, foi dado de brinde pela CEEE. Não existe em quase nenhuma biblioteca, as pessoas só pegavam pelos discos. Eu sigo reescrevendo isso. Na época aquilo tinha 300 páginas, hoje, tem 800.

Sul21 – Tu fizeste todo este trabalho da CEEE?

Arthur de Faria – Sim, então hoje tem 21 capítulos prontos, de 27, mas está parado há dois anos justamente, porque a gente fez um projeto de captação para o livro – mesmo que eu não fosse ganhar nada por essa pesquisa toda, só o custo do livro seria de mais de 100 reais. Ele precisa custar uns 30 reais, para isso precisa de uma lei de incentivo e não conseguimos captar. Mas está praticamente pronto. Pesquisei 117 livros e entrevistei 140 pessoas. Muitas dessas já morreram. Mas já gerei uns subprodutos, sabe? Por exemplo, eu cedi o capítulo da Casa Elétrica para o Guto (Gustavo Fogaça) fazer o roteiro do filme dele, etc. Tem trailer no youtube, espia só.

http://youtu.be/9Mqa3el-Txw

Sul21 – Tu não quiseste publicar por partes?

Arthur de Faria – Em fascículos? Chegamos a fazer um projeto, mas isso parou. Me incomoda esse negócio de fascículo porque muita gente vai comprar o fascículo de história do rock gaúcho, mas não o que fala do Octavio Dutra. Acho que se tu colocas tudo num livro só, as pessoas acabam lendo o que querem e descobrindo o resto. O capítulo do rock tem 130 páginas, poderia sair tranquilamente como um livro separado.

"A partir do Otávio Dutra é que o negócio pega fogo, é inacreditável que ele esteja esquecido, porque ele é muito grande, tem uma obra muito rica, deu aula para todo mundo, dava entrevista o tempo todo" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Em que período que tu começas?

Arthur de Faria – Desde a fundação da cidade, em 1752, desde os primeiros açorianos até 2008. O grosso mesmo começa a partir de 1860, com o registro das partituras. A partir do Octavio Dutra é que o negócio pega fogo, é inacreditável que ele esteja esquecido, porque ele é muito grande, tem uma obra muito rica, deu aula para todo mundo, dava entrevista o tempo todo. Depois o cara morreu e começou a ficar esquecido, esquecido. Tem uma ruazinha ali perto do SC Internacional com o nome dele, e de vez em quando alguém faz um filme….

Sul21 – Eu conheci (a música do) Octavio Dutra no sábado (25 de junho), num show do Maurício Marques.

Arthur de Faria – Ah, sim! Nós temos um plano de fazer um álbum só de músicas dele. Estamos com um projeto para a lei de incentivo. Tenho umas 400 partituras dele em casa. Ele tinha instrumentais, com letras, jingles, tem quatro operetas inteiras. Ninguém tem disco no Rio Grande do Sul. Essas partituras foram ficando com a família, a gente foi localizando aos poucos, com muitos méritos da produção do filme. O Seu Conjunto faz três musicas dele no filme.

Sul21 – Há gravações dele?

Arthur de Faria – Sim, tem bastante, considerando essa época, década de 10. Faz uns anos, o Instituto Moreira Sales editou uma caixa com 14 discos com as principais gravações de músicas brasileiras das décadas de 10 e 20. Só o Octavio Dutra e o Pixinguinha tiveram álbuns inteiros de músicas deles, o resto são um monte de outras pessoas juntas. Ele é muito importante. No Rio, em roda de choro, em Brasília, até hoje se toca coisa dele.


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