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13 de julho de 2011
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14:21

A Bandeira da Democracia

Por
Sul 21
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Talvez isso não tenha acontecido com você, mas eu venho sofrendo com os usos da bandeira da democracia. De fato, tenho sofrido tanto, que volto a escrever sobre um tema que já apareceu nesta coluna. Mudo apenas o enfoque. Da outra vez, falei de hierarquia e da dificuldade que muitos sentem em vê-la sumir-se. Hoje venho falar da sua contraparte: a democracia. E sim, ela é a contraparte da hierarquia porque a democracia republicana é, antes de tudo, igualdade. Ou, dizendo de forma mais precisa: é a igualdade de acesso às instituições, é a igualdade de pleito, de reivindicação de direitos, inclusive sob uma bandeira política, baseando-se na pluralidade de ideias.

A maioria das pessoas sabe três coisas a respeito da democracia. 1) Que os gregos a inventaram (embora esqueçam que lá ela era muito diferente do que temos hoje). 2) Que ela defende o princípio da maioria (mo entanto, isso não exclui a defesa das minorias). 3) E que o governo norte-americano acha que ela é seu principal artigo de exportação, em geral, a partir da “ocupação” levado a cabo por seu “super” exército. Obviamente, da mesma forma que muitos “democratas” brasileiros, qualquer crítica a esse tipo de operação é vista como anti-democrática e anti-americana (o que, para muitos, é quase um sinônimo). Contudo, não vamos tão longe. É o desgaste da bandeira democrática no Brasil que tem me incomodado.

No terreno das definições, creio que podemos recorrer ao respeitadíssimo jurista e pensador italiano Norberto Bobbio. Para ele, a democracia se faz através de uma constituição que, pactuada, coloca os princípios gerais que definem a quem cabem as decisões em prol da coletividade e quais os procedimentos para respeitar os desejos e interesses desta coletividade. Contudo, numa ligação direta e inextrincável, a ideia de democracia aparece junto a uma concepção moderna (ou, melhor dizendo, contemporânea) de direitos. E, talvez, seja na noção de direitos, muito mais que na de democracia, que esteja o X da questão.

Uma olhada rápida em jornais e meios de comunicação onde as pessoas se manifestam, e percebemos que há quem acredite que defender direitos significa defender todos os direitos que as pessoas acham que têm. Mas, afinal, de que direitos estamos falando? E como eles são dimensionados na sociedade? E, como assim? Que direitos eu não tenho? Certo, vamos com calma.

A democracia moderna gestou-se nos séculos XVII e XVIII e começou a ser parida pelas revoluções liberais. Só começou, bem entendido. Nenhum dos líderes destas revoluções imaginou que o povo poderia participar de todos os direitos que reivindicavam para si próprios. Isto se dava justamente pelo enorme poder que o povo tinha (e que os contratualistas já indicavam). Este poder, porém, tinha de estar sob controle, logo, os direitos acessados pelo povo também. Direitos civis? Sim. Afinal, numa economia de mercado é preciso corpos livres e livremente vendáveis. Direitos políticos? Nem tanto. Era preciso controlar quem votava e, para ser votado era preciso ter “condições de influir na sociedade” (o que se traduzia em capital e alta formação escolar só acessível à elite). Obviamente, as mulheres ficavam de fora (o processo é brilhantemente trabalhado, para a Revolução Francesa, pelas historiadoras Joan Scott e Michelle Perrot). Direitos sociais? Ora, como traduziu, de forma muito clara, um antigo presidente brasileiro: a questão social era caso de policia.

Sendo assim, dizer que a democracia moderna é unicamente filha das revoluções do XVIII contém uma certa parcialidade. É possível vê-la nascer aí, mas crescer e fortificar-se só pôde ocorrer com as lutas dos movimentos sociais, operários, feministas e das falaciosamente ditas “minorias” (que, muitas vezes, eram maiorias não reconhecidas) ao longo dos séculos XIX e XX. Em outras palavras: a democracia, como a conhecemos, só se efetivou a custa dos gritos e do sangue daqueles a quem, desde o início, uma democracia calcada no capital não quis sequer olhar. Estes movimentos ampliaram a noção que a democracia tinha de si mesma. Trouxeram lentamente à tona conceitos como inclusão, respeito às diferenças, bem comum, coletividade e cidadania. Então, depois de 200 anos, a democracia com base na igualdade de direitos venceu.

Infelizmente, não é bem assim. Direitos todos temos, e possuímos uma boa quantidade deles, mas não temos todos os direitos, o que é bom e ruim. É bom porque estamos caminhando num rápido processo de ampliação destes direitos e não de retração. Por outro lado, alguns dos direitos que não temos envolvem a necessidade de respeito aos direitos dos outros. Isso é viver em sociedade. Às vezes, os outros chegam a ter direitos de que não gostamos. E isso é viver em uma sociedade complexa. Contudo, não ter direitos, claro, também é ruim. Especialmente, porque existem pessoas que nem ao menos usufruem dos direitos básicos que uma boa parte de nós já tem. Numa democracia de fato isso é um verdadeiro problema. Afinal, a democracia não existe apenas para garantir a “vontade da maioria”, mas para permitir que todos usufruam dos direitos que o pacto constitucional legou a todos (não apenas à maioria, e sim a todos). Logo, se falamos de democracia, falamos de um princípio de igualdade que precisa ser respeitado.

Contudo, esse princípio, numa sociedade complexa, é aplicado a desiguais. Sendo assim, ele não pode ser aplicado igualmente. Tem de ser aplicado com uma desigualdade relativa que tem a intenção de igualar. Em outras palavras: cabe à lei, ao direito e ao Estado (que é seu guardião) defender os socialmente mais fracos, as minorias desrespeitadas, aqueles que têm atacado seu direito fundamental à vida, ao trabalho, à educação, ao tratamento igualitário. Quando a lei não contempla essa defesa, ou quando ela não é aplicada, é necessário criar mecanismos para permitir, garantir e exigir que isso ocorra. Daí a necessidade de movimentos sociais que nunca se calem diante das injustiças e continuem exigindo hoje e sempre a ampliação do caráter cada vez mais democrático, ou melhor, igualitário, do Estado de Direito em que vivemos. Nossos direitos advêm de batalhas, como afirmou Ihering. Foi nestas batalhas que os construímos, por isso eles tem mais valor. E, por isso, eles precisam ser resguardados com toda a força da lei.

Trata-se de um processo de ampla defesa dos direitos que igualam as pessoas. Logo, usar a democracia como bandeira para defender direitos que discriminam, violentam, diminuem, incapacitam outros cidadãos de viverem plenamente suas vidas não é apenas um atentado aos nossos últimos 200 anos de história, é prova de desconhecimento do real significado da palavra.

Sendo mais clara: se você tem direito ao casamento civil, seu vizinho gay que paga os mesmos impostos que você também tem. Ele também está naquele mesmo pacto constitucional que lhe garante igualdade num sistema democrático. Não importa se você não gosta ou não aprova a forma como ele vive a vida dele. Para a lei que iguala, o que importa é que nada do que ele exige arranha, de qualquer forma, o que você tem. Os direitos dele não diminuem os seus. Logo, ele os possui.

Sendo assim, invocar a democracia para diminuir os direitos de um igual – sim, seus vizinhos e concidadãos gays, negros, mulheres ou ateus são iguais à você – não é apenas um contra-senso é um ataque a tudo o que a democracia significa. Quer usar esta bandeira use, mas use-a ao que ela se destina.

Por outro lado, uma das defesas mais importantes da democracia é a que tem sido usada como bandeira pelos que desprezam a igualdade: a liberdade de expressão. E, concordo, cercear quem vai a uma tribuna, ou a TV, ou as redes sociais na internet, dizer que não gosta de gays ou de negros, ou que mulher gosta de ser violentada, seria ditadura. Porém, lembram aquelas leis que regem o nosso convívio, aquelas sobre as quais temos um acordo implícito? Elas dizem que você pode dizer o que quiser, mas se quiser pregar o ódio, a violência ou agir de forma discriminatória você terá de responder por isso. Você pode se mobilizar para mudar a lei, mas, enquanto ela vigorar, você tem de cumpri-la. Porque nossas leis são tirânicas? Não, mas porque – ao menos em tese – elas devem proteger aos mais fracos. Entenda, se há uma lei da palmada, ela não serve apenas para os pais civis, mas também para deputados. Se há uma lei sobre beber e dirigir, ela serve para todos os motoristas que conheço, inclusive senadores e celebridades. Se há uma lei que garante o direito à escola e ao emprego, e ela faz isso a todos os cidadãos, ela sequer precisa mencionar que isso tem de ser feito sem discriminação. Pois, se houver discriminação de qualquer tipo, então, será contra a lei, mais que isso, será inconstitucional. Em outras palavras: qualquer pessoa, tendo ou não cargo público, pode se recusar a contratar um gay, por exemplo, para um emprego. Da mesma forma, este cidadão gay (ou negro, ou mulher, ou ateu, ou todos os itens acima) tem todo o direito de processá-lo, caso se sinta prejudicado. É assim que a coisa funciona.

Afinal, somente para lembrar: a democracia não está aí para defender apenas o seu direito, mas para garantir que todos tenham os mesmos direitos que vocês. Mesmo que eles não sejam como você.

Caso se interesse pelo debate dos direitos, luz da constituição, dê uma olhada no blog da advogada catarinense Isabel Plácido.

*Nikelen Witter é professora, historiadora e escritora.


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