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9 de junho de 2011
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20:32

O rádio na defesa da Legalidade

Por
Sul 21
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Cadeia da Legalidade uniu o povo brasileiro na defesa da posse de João Goulart - Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

Nubia Silveira *

Quem viveu o agosto de 1961 é categórico ao afirmar a importância da Rádio da Legalidade, logo transformada em Cadeia da Legalidade, para a manutenção da ordem institucional no país. “Foi o maior momento do rádio”, diz Flávio Alcaraz Gomes, que na época gerenciava a Rádio Guaíba, líder da Cadeia.

Jânio Quadros surpreendeu o país ao apresentar sua renúncia no dia 25 de agosto. E a nação se conturbou ao saber que os ministros militares vetavam a posse do vice-presidente João Goulart, que se encontrava visitando, oficialmente, a China Comunista. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola, levanta a voz a favor da manutenção da ordem legal no país, ou seja, a favor da posse de Jango.

O marechal Henrique Teixeira Lott, que concorrera à presidência, tendo em sua chapa, como candidato a vice, João Goulart, lançou um manifesto. Defendendo a posse de Jango. O manifesto foi lido em duas das principais rádios gaúchas: a Gaúcha e a Farroupilha. A reação veio rápida: as rádios foram tiradas do ar. A Guaíba, que se dedicara a transmitir apenas música, permanecia com suas transmissões.

No Palácio Piratini, Leonel Brizola se sentia isolado. E sabia que teria que enfrentar uma verdadeira guerra, na defesa da legalidade. Ele precisava de instrumentos poderosos para mobilizar o povo, que se agitava nas ruas de forma desordenada, e enfrentar os inimigos. Todo líder de um movimento insurrecional sabe que a comunicação é a sua maior arma. E o meio de maior alcance, o que chega a todos os cantos, a toda hora é o rádio. Esta máxima era ainda mais verdadeira em 1961, quando a televisão no Brasil apenas engatinhava.

Brizola não teve dúvidas. Teria que chegar ao rádio, um meio que dominava já há bastante tempo com suas “Palestras de Sextas-Feiras”, na Rádio Farroupilha. Em uma de suas páginas de segunda-feira em Zero hora, Flávio Alcaraz Gomes conta como nasceu a Rádio da Legalidade.

Por que não a Guaíba?

Flávio Alcaraz Gomes (D): ideia de requisitar a Guaíba foi de Maurício Sirotsky Sobrinho (E) - Foto: reprodução

É Flávio quem conta: “Maurício Sirotsky Sobrinho, diretor da Rádio Gaúcha, é chamado ao Palácio pelo governador. Brizola abraça-o e vai direto ao assunto:

— Maurício, temos que botar a Gaúcha no ar!
— É impossível, governador. Retiraram o cristal dos transmissores. Sem cristal, rádio não opera.
— Mas não há nenhuma outra maneira?

Maurício ficou pensativo. Num lampejo, porém, teve uma ideia altamente democrática:

— Há sim, governador. Por que não requisita a Guaíba?
— Excelente ideia, Índio velho!

E, virando-se para o dr. Francisco Brochado da Rocha, seu secretário do Interior e Justiça:
— Prepare-se o decreto, doutor Chico.

O doutor Chico prepara o decreto. Horas depois, com seus microfones nos porões do Palácio, a Guaíba começa a propagar Brasil afora a mensagem de rebeldia de Brizola:

— Esta é a Rádio da Legalidade. Brasileiros! Não permitamos que as forças golpistas mergulhem o Brasil no caos! Às armas cidadãos! Formai vossos batalhões!”

Em sua sala na Rádio Gaúcha, Flávio ri ao lembrar de agosto de 1961. Uma época conturbada. Conta que o decreto requisitando a Rádio Guaíba foi entregue ao presidente da Companhia Jornalítica Caldas Júnior, Breno Caldas, pelo chefe da Polícia, Joaquim Vilanova. E que o quarteirão, onde funcionava e ainda funciona a Guaíba, estava tomado por policiais e suas metralhadoras. “O Breno entregou a rádio com a condição de que ela não fosse operada lá. Neste momento ficou decidido que um estúdio seria instalado nos porões do Palácio Piratini. Homero Simon, o engenheiro da Guaíba, se encarregou disto”.

Assim, enquanto o silêncio tomava conta dos corredores da Guaíba, nos porões do Palácio, o movimento crescia. As adesões eram muitas. Em pouco tempo estava formada a Cadeia da Legalidade, que cobria todo o Rio Grande do Sul e chegava até o ponto mais distante do país. Não demorou muito e o governador requisitou também as rádios Gaúcha e Farroupilha, que permaneciam fora do ar.

Flávio afirma que foi o momento mais importante do rádio gaúcho. Todos sintonizavam na Cadeia da Legalidade. Foi a maior audiência obtida pelo rádio. “Com a Cadeia da Legalidade – diz ele – a Guaíba se tornou conhecida em todo o Brasil. Depois disto, a cada cidade em que ia, era reconhecido como herói. As agências de publicidade do Rio e São Paulo passaram a conhecer a Guaíba e anunciar nela”.

Guerra e paz

As relações entre o repórter Flávio Alcaraz Gomes e o governador Leonel Brizola não eram das mais amistosas. Flávio havia criticado o governador no Correio do Povo. E ele retribuíra as críticas em suas palestras de sexta-feira, na Rádio Farroupilha. Assim, enquanto alguns colegas da Guaíba aderiram espontaneamente à Cadeia da Legalidade, se mudando para os porões do Palácio, escrevendo e lendo notícias, Flávio se mudou para o Correio do Povo.

A Cadeia da Legalidade se mantinha no ar por 24 horas, transmitindo os pronunciamentos de Brizola, marchas e notícias. E, logicamente, o Hino da Legalidade, que passou a ser cantado nas ruas.

A Cadeia, criada no final da tarde sábado, dia 26 de agosto (noticiada apenas pelo Jornal do Dia, que atrasou sua edição, enquanto o Correio do Povo circulava mais cedo, sem a informação), teve papel decisivo na posse de Jango. Foram dias de tensão, com Brizola alertando para a possibilidade do Palácio ser atacado pelo Exército.

Flávio lembra que estava no QG do III Exército quando o comandante, general Machado Lopes, decidiu que iria aderir à campanha em prol da Legalidade, liderada pelo governador. “Saí dali, fui até a Caldas Júnior, chamei o Arlindo Pasqualini (diretor da Rádio Guaíba e Folha da Tarde) e subimos para o Palácio. Quando chegamos, continua Flávio, Brizola estava no ar, se despedindo do povo, dizendo que o Palácio seria bombardeado. Tivemos um grande trabalho em fazê-lo calar, anunciando-lhe que o general Machado Lopes estava chegando para aderir. Brizola se emocionou e nos abraçou”.

Para receber o comandante do III Exército em uma sala especial, foi preciso arrombar a porta, pois ninguém sabia onde estava a chave, recorda, sorrindo, Flávio. Mas, enquanto isso, Jango voltava ao país fazendo várias escalas. Chegou ao Estado no dia 1º de setembro, vindo de Montevidéu, onde se encontrara com diversos políticos gaúchos e nacionais, entre eles Tancredo Neves. A Cadeia da Legalidade obtivera sucesso. Jango assumiu como chefe de Estado no sistema parlamentarista, dia 7 de setembro de 1961. A Cadeia da Legalidade permaneceu 12 dias no ar.

BRIGADA PROTEGEU A ANTENA

Homero Simon, dizem todos, foi responsável técnico pelo sucesso da Cadeia da Legalidade. Engenheiro da Rádio Guaíba e diretor da Comissão Estadual de Comunicação, ele não duvidou em nenhum momento da possibilidade de transmitir para o país diretamente dos porões do Palácio Piratini. Duvidou apenas da fidelidade da telefônica (a Companhia Riograndense de Telecomunicações), há pouco encampada pelo governo do Estado.

Homero Simon na Rádio Guaíba

“Não houve nenhuma complicação – afrima Homero Simon. Transmitiríamos em ondas curtas (49 metros) e ondas médias. Os profissionais, como as demais estações de rádio, foram aderindo espontaneamente à medida em que a incerteza crescia e a luta pela legalidade se tornava mais forte.

O maior temor era o de que a rádio fosse tirada do ar pelo Exército (“O governador dialogava com o general Machado Lopes”) e um batalhão da Brigada Militar protegia a antena da Rádio Guaíba, na Ilha da Pintada. Homero Simon diz que as músicas colocadas no ar foram conseguidas na discoteca da Rádio Guaíba, onde trabalhavam simpatizantes do movimento que iam até o Palácio levar a sua contribuição.

— Não houve nenhum problema quanto à qualidade do som. A Rádio era bem ouvida até o Amazonas.

O engenheiro calcula que uma centena de estações de rádio de todo o país aderiu à cadeia. Mas o que lembra mesmo com prazer é a movimento, a adesão, o trabalho intenso, a busca de informação por telefone em todo o Estado.

— Uma noite, mal havia chegado em casa, o governador mandou me chamar para que continuasse supervisionando a rádio. Passei a dormir sobre mesas de bilhares. Esta foi a primeira vez que partricipei de um movimento tão grande.

HINO DA LEGALIDADE

A cidade vivia um clima de incerteza e os intelectuais gaúchos decidiram se reunir em assembleia permanente do Teatro de Equipe, dando o seu apoio ao movimento de resistência, comandado pelo governador Leonel Brizola. E foi ali – no Teatro de Equipe — que nasceu o Hino da Legalidade, inicialmente chamado de Hino da Resistência. E foi dali também que, no dia 28 de agosto, saiu o manifesto dos intelectuais que se colocavam “ao lado dos que resistem ao golpe e lutam conta ele”.

Lara de Lemos, ao lado de Mario Quintana: uma das autoras do Hino da Legalidade

O compositor Demóstenes Gonzalez lembra que um dia após a renúncia do presidente Jânio Quadros retornava com alguns amigos ao Teatro e assobiava uma velha canção revolucionária cubana. Em poucos minutos, todos cantarolavam junto. E Lara de Lemos teve a ideia: por que não fazer um hino? Na verdade, não há nada melhor para unir a massa do que uma canção. Mas, no meio de tanta confusão, os companheiros esqueceram a sugestão de Lara. Só no dia seguinte, quando ela chegou com a letra pronta para apresentar ao grupo é que se voltou a falar do assunto.

Demóstenes tem ainda viva — e bem viva — na memória o momento em que Lara o chamou para mostrar o que havia escrito. Ele e o ator Paulo César Pereio decidiram então que o hino sairia. Em menos de meia hora burilaram o texto de Lara e fizeram a música do hino que tomou conta de Porto Alegre e do país:

Avante Brasileiros
De pé (bis)
Unidos pela liberdade
Marchemos todos juntos
Com a bandeira que prega legalidade
Protesta contra os tiranos
Te recusa à traição
Que um povo só é bem grande
Se for livre a sua nação.

O hino, de autoria de Demóstenes Gonzalez, Lara de Lemos e Paulo César Pereio, teve dois arranjos, feitos pelos maestros Alfredo Hulsberg, Karl Faust e Salvador Campanela. A letra, depois, foi ampliada e gravada na Rádio Farroupilha pelo Coral supervisionado por Madeleine Ruffier.

* Texto publicado no jornal Clarim, edição história nos 25 anos da Legalidade


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