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18 de maio de 2011
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11:00

Caso Ford: maior batalha de uma guerra que não findou

Por
Sul 21
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Geraldo Hasse e Elmar Bones / Especial Sul21

O rumoroso caso da Ford, que levou sua fábrica para a Bahia depois de ter recebido mais de R$ 100 milhões em adiantamentos e obras preliminares no Rio Grande do Sul, virou um divisor de águas na longa história da “guerra fiscal” entre estados e municípios brasileiros por investimentos privados. Essa “guerra” começou em 1920, segundo a revista Jus Navegandi, mas nunca havia chegado a um desfecho tão inesperado e litigioso, com desdobramentos judiciais de final ainda imprevisível.

Explorado pela mídia como um confronto entre o “socialismo petista emergente” na gestão de Olívio Dutra (1999-2002) e a herança do “governo neoliberal e privatista” de Antonio Britto (1995-1998), o episódio na verdade é parte de processo mais amplo.

Cesar Borges, governador da Bahia, ofereceu isenções fiscais excepcionais à Ford

Para levar a fábrica da Ford para Camaçari, o governo de Cesar Borges, do PFL, ofereceu área terraplanada, infraestrutura e isenções fiscais excepcionais garantidas pela prorrogação do Regime Automotivo para o Nordeste. Além disso, a empresa recebeu financiamento de R$ 691 milhões do BNDES, fechando com chave de ouro a “proposta baiana”, que acabou sendo muito mais vantajosa do que a originalmente oferecida pelo governo gaúcho.

Segundo notícias da época, sete estados entraram na corrida para “ganhar” a fábrica planejada para Guaíba. Na imprensa gaúcha, apenas o Correio do Povo reclamou da virulência da guerra fiscal. Num editorial irado, em 16 de julho de 1999, o jornal perguntou: “Quem manda no país, o presidente da República ou o cacique da Bahia?”.

O editorial referia-se ao silêncio do presidente Fernando Henrique Cardoso diante do rolo compressor do senador baiano Antonio Carlos Magalhães, que trabalhava no Congresso para prorrogar os incentivos fiscais para montadoras que se instalassem no Nordeste. Armada por Antonio Carlos, a operação contou com o apoio velado do presidente da República.

O líder petista Luiz Inácio da Silva, já recuperado da derrota presidencial de outubro de 1998, saiu do silêncio para criticar a “maracutaia” armada pelo governo federal. Em São Paulo, o governador Mario Covas, do PSDB, condenou a “aberração”.

Ivan Fonseca da Silva trocou Guaíba por Camaçari

Até de Buenos Aires veio um protesto oficial do governo argentino contra o favorecimento à fábrica baiana da Ford, afinal inaugurada em 2001, já sob o comando de Antonio Maciel Neto. O presidente anterior, Ivan Fonseca e Silva, responsável pela troca de Guaíba por Camaçari, fora removido para uma das diretorias na América do Sul para onde vão os executivos “que caem para cima”. Durante um tempo cuidou das marcas especiais da Ford, depois passou a trabalhar com a Citroen do Brasil.

Incentivos chegavam a R$ 4 bilhões

Segundo divulgou o governo gaúcho na época, o total dos “incentivos” concedidos pelo Estado à Ford, no contrato assinado por Britto, somaria R$ 466 milhões — bem mais do que recebeu a General Motors, um ano antes, para se instalar em Gravataí. Esse valor incluía um financiamento em condições privilegiadas dado pelo Banrisul (R$ 210 milhões), mais o terreno em Guaíba e obras de infraestrutura bancadas pelo governo estadual. O pacote de benefícios incluía até a navegação lacustre, que seria retomada em grande escala para importar peças e exportar produtos acabados.

Em renúncia fiscal, o Estado abriria mão de um total de R$ 3 bilhões relativos a isenção ICMS. Além disso, a empresa teria um financiamento de R$ 600 milhões do BNDES, o que daria um valor global da ordem de R$ 4 bilhões.

Já durante a campanha eleitoral de 1998 o assunto fora explorado por Dutra, que prometeu cortar as vantagens obtidas pela Ford para instalar sua fábrica em Guaíba.

A Ford viu o sinal ficar amarelo na abertura das urnas, no final de outubro, quando o governador Britto saiu derrotado por 87 mil votos. Em Guaíba, com quase 47 mil votos apurados, Britto ganhou por 2. 535 votos. Em Gravataí, onde se construía a General Motors, Dutra perdeu por 12 mil votos de um total de 102 mil votantes. A vitória petista foi construída em Porto Alegre, onde se estabeleceu uma larga vantagem de 182 mil votos.

O sonho automobilístico de Guaíba naufragou logo no primeiro trimestre de 1999, quando o novo governo cumpriu a promessa de questionar diversas cláusulas do acordo. Comprometido com demandas básicas nas áreas da educação e saúde, Olívio Dutra alegou não ter dinheiro suficiente para bancar a instalação da fábrica. O dinheiro previsto no orçamento pelo governo anterior, seria resultado de privatizações, com a venda das ações restantes da CEEE e da Corsan.

O governo Olívio “por compromisso programático e eleitoral” não pretendia vender empresas estatais.

A empresa, baseada no que sabia das vantagens recebidas pela General Motors, não aceitou recuar. Após seis reuniões, no dia 29 de abril, a Ford anunciou a desistência. O governo publicou um comunicado na primeira página dos jornais.

A montadora respondeu com um anúncio de página inteira. Enquanto isso, com as obras já avançadas, a General Motors chegava sem atrito à décima reunião de renegociação dos incentivos.

Pouco mais de um ano depois, em julho de 2000, Olívio Dutra estava entre os convidados de honra da inauguração da fábrica de Gravataí, ao lado do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Disputa entre Estados aumentou na ditadura

A guerra fiscal interestadual se intensificou durante o “milagre econômico” gerado pela ditadura militar no início dos anos 1970. Nessa época de extrema centralização, o destino dos investimentos era decidido pelo governo federal, que manipulava mecanismos creditícios e fiscais e organismos como Sudam, Sudeco e Sudene para determinar a localização de empreendimentos em favor da Amazônia, do Centro-Oeste ou do Nordeste.

Por conta de incentivos fiscais, inúmeras filiais de fábricas do Sul e do Sudeste eram abertas em remotos municípios de estados mais pobres. A própria Ford montou uma unidade em Pernambuco, ao lado da Wallig Nordeste, indústria de fogões originária do Rio Grande do Sul.

O dinheiro para tais implantes de existência precária saía do Imposto de Renda, mas nos estados e municípios armou-se um “leilão de incentivos”, expressão pela qual ficou conhecido o jogo de concessões e barganhas para atrair investimentos.

Além da isenção de impostos municipais e estaduais por dez anos, o rol de ofertas aos investidores passou a incluir a doação de terrenos, obras de infraestrutura, o treinamento de trabalhadores, empréstimos, adiantamentos e facilidades para exportar e importar. Cada estado tem o seu arsenal.

Tentando conter a beligerância fiscal, a Constituição de 1988 ampliou a autonomia financeira dos estados, que ganharam o direito de regulamentar livremente o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), mas não o de conceder benefícios fiscais para investimentos.

Qualquer favor nesse aspecto tem de passar pela aprovação unânime do Conselho de Política Fazendária (Confaz), onde têm assento todos os secretários estaduais de Fazenda. O Confaz, no entanto, desde o início revelou-se impotente para conter as disputas.

Isenção de imposto dobrou produção de carros

Controle da inflação, as privatizações, o equilíbrio das contas públicas, globalização da economia, bom retorno para os investimentos na produção. Esses os ingredientes que acirraram a guerra fiscal na década de 1990.

Produção de carros dobrou com a oferta de incentivos fiscais

Aproveitando a onda, o próprio governo federal criou regras especiais para a instalação de montadoras de veículos — o famoso Regime Automotivo — fora do ABC paulista. Disso se aproveitaram vários estados para atrair indústrias: Peugeot e Citroen no Rio, Renault e Volkswagen no Paraná, Mercedes Benz em Minas, Mitsubishi em Goiás e a General Motors em Gravataí, no Rio Grande do Sul, foram os principais eventos que resultaram na quase duplicação da capacidade instalada do setor automotivo no Brasil. Houve também expansões da Fiat em Betim e da Ford em Taubaté.

Resultado: de 1,5 milhão de veículos por ano, o setor automotivo passou a fabricar mais de três milhões de unidades/ano, quase a metade para exportação. Embora tenha sido o carro-chefe da “Nova Política Industrial”, a indústria automobilística não foi o único setor da economia a merecer programas especiais voltados para o aumento das exportações.

Também se beneficiaram 11 outros setores: autopeças, bens de capital, brinquedos, eletroeletrônica, celulose e papel; couro e calçados; indústria aeronáutica, móveis, siderurgia, têxtil e tecnologia da informação.

Por trás de tanto esforço se aninhava a ideia estratégica de fortalecer a indústria brasileira no processo de inserção no mapa econômico do mundo.

Anunciado em junho de 1995 para vigorar em 1997/98, o Regime Automotivo Brasileiro exigiu uma dupla negociação internacional. Primeiro com a Argentina no âmbito do Mercosul e depois na Organização Mundial do Comércio, onde pipocavam queixas de países desenvolvidos contra a política brasileira de incentivos às exportações e restrições às importações. O maior episódio desse sururu internacional foi a briga da canadense Bombardier contra a Embraer, vitoriosa no final.

Isso mostra que a questão do Rio Grande do Sul contra Ford não foi uma simples pendenga doméstica; além das motivações políticas regionais, ela tinha dimensões internacionais.

Renuncia fiscal compromete 6% do ICMs

Criado em 1972 pelo governador Euclides Triches, o Fundo Operação Empresa foi o primeiro instrumento fiscal do Rio Grande do Sul, para apoio a empresas industriais que se implantassem no Estado. Naquele momento, quase todos os governos estaduais estavam recorrendo aos mecanismos creditícios e fiscais para atrair empresas, tentando compensar a ajuda federal às regiões mais pobres.

Tímido, o Fundopem original concedia um incentivo financeiro limitado ao máximo de 50% do incremento que a empresa beneficiária gerasse na sua arrecadação do ICMS. O recurso só voltava para a empresa após a arrecadação do imposto pelo Tesouro. Por isso o fundo foi pouco utilizado.

Em 1989, seu movimento representou apenas 0,03% do ICMS estadual. Ele só se tornou realmente importante a partir de 1995, quando foi reformulado pelo governador Antonio Britto. Em quatro anos foram aprovados 660 projeto num total de R$ 8,2 bilhões de investimentos.

Na primeira alteração, o incentivo fiscal foi limitado a 75% do ICMS incremental gerado pela empresa. Além disso, o montante do benefício total não podia ir além de 60% do investimento que a empresa realizasse.

A grande novidade, introduzida logo depois, foi o instituto do crédito presumido, que abriu a possibilidade de as empresas obterem o benefício no momento do pagamento mensal do seu ICMS, cujo valor podia cair então a níveis mínimos.

Combinado a financiamentos subsidiados de até 100% do investimento para “equiparar ao tratamento de outros estados”, o abatimento do ICMS reduzia consideravelmente os desembolsos dos investidores, especialmente em setores como a petroquímica e a indústria de fumo, favorecidas por tratamento diferenciado. Como reflexo disso, o movimento do Fundopem representou 6,74% do ICMS em 1998, o ano com o maior número de concessões.

No período de 2000 a 2004, mesmo com poucas concessões, o Tesouro do Estado abriu mão de uma média de 5% do ICMS em favor de empresas investidoras.

De 2000 a 2004, o Tesouro do Estado renunciou, em média, a 5% do ICMS

Um balanço do fundo no período 1997/2004 contabilizou um movimento total de R$ 3,87 bilhões, 80% dos quais em benefício de 50 empresas de sete setores: fumo (R$ 955 milhões), petroquímica (R$ 734 milhões), bebidas (R$ 411 milhões), metais (R$ 390 milhões), calçados (R$ 233 milhões), plásticos (R$ 211 milhões) e borrachas (R$ 174 milhões).

Na última reunião do Conselho do Fundopem sob o governo Yeda Crusius, em meados de dezembro de 2010, foram aprovados investimentos de R$ 919 milhões em 19 projetos. O maior volume foi para três projetos de grande porte — Fates/Vipal (pneus), Terex (máquinas) e Vontobel (chocolates) — com planos de instalação no distrito industrial de Guaíba, cuja localização não é outra senão a área terraplanada para a instalação da Ford Brasil em 1998.

Nos quatro anos do governo Yeda — de 2007 até 2010 –, o Fundopem aprovou 96 projetos no total de R$ 3,38 bilhões de investimentos.

Estudos feitos ao longo da história recente indicam que mais de 75% dos investimentos do Fundo Operação Empresa se concentraram nas regiões de maior densidade industrial — Porto Alegre, Sinos e Serra.

Criado para defender a economia do Rio Grande do Sul da guerra fiscal interestadual, o Fundopem virou arma em favor da manutenção do status quo, prejudicando regiões que carecem de um empurrão do estado.

A partir de 2011, promete o governo Tarso Genro, o Fundopem deverá orientar-se para as regiões menos desenvolvidas, especialmente a Metade Sul.

Leia amanhã a quarta de uma série de cinco matérias: Imprensa alimentou a “guerra ideológica”


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