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18 de abril de 2011
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11:30

Foco na gestão é o remédio que pode curar os males da Saúde do RS

Por
Sul 21
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Pacientes sofrem com a espera por atendimento

Igor Natusch

No Brasil, a saúde é um problema tão visível quanto crônico. As dificuldades do setor são visíveis nas filas para atendimento e nas vans com placa do interior que deixam passageiros nos principais hospitais de Porto Alegre. Os relatos sobre nosso sistema de saúde são, basicamente, um relato de escassez: faltam médicos, leitos, dinheiro, infraestrutura. Mesmo assim, o poder público insiste que os recursos são suficientes, que as medidas estão sendo tomadas, que poderíamos ter mais saúde com o que já é colocado à disposição daqueles que a administram. O que nos faltaria, no caso, não é investimento, e sim um bom gerenciamento de recursos que nos permita tirar o melhor dos recursos destinados ao setor. Para discutir essa questão, o Sul21 consultou alguns especialistas e propôs a questão: é mesmo gerenciamento o que falta para o sistema de saúde do RS?

Ronaldo Bordin, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS, divide os desafios para um gestor de saúde no RS em três aspectos principais. Para ele, existe a necessidade de atuar de forma antecipatória, já que a expectativa de vida da população gaúcha é cada vez maior. “O povo está envelhecendo, e isso é um desafio para qualquer sistema de saúde”, diz Bordin. Segundo o especialista, isso provoca um aumento de demanda para certas especialidades médicas, como oncologia, oftalmologia, geriatria e terapia ocupacional. “Os profissionais dessas áreas ainda não estão inseridos no sistema de saúde, pelo menos não na quantidade que será necessária daqui a vinte anos ou um pouco mais”, argumenta Bordin.

Além dessa dificuldade futura, o professor de Medicina Social identifica problemas que necessitam de atenção imediata, e que vão além do aumento de investimento financeiro no setor. Como explica Ronaldo Bordin, o poder público promoveu uma extensão de cobertura na saúde, sem a necessária contrapartida na especialização dos profissionais. “A população acaba tendo acesso aos hospitais, mas não recebe a atenção necessária”, argumenta. Para ele, o gerenciamento da saúde precisa encarar também esse desafio: qualificar a rede de forma a oferecer atendimento especializado em todas as suas unidades.

Luiz Pierry: crítica também à atuação médicos

“Os problemas não estão sendo conduzidos do modo que é previsto na teoria”, diz Luiz Pierry, secretário executivo do Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade (PGQP). “O sistema terciário, que existe para atender casos complexos, acaba sendo sobrecarregado com coisas mais simples, que poderiam ser administradas em etapas anteriores do processo”, exemplifica. “Não é só uma questão de agir pontualmente, é de olhar o sistema como um todo. E o nosso panorama aponta a necessidade de reinvenção do sistema de saúde no Brasil”.

Luiz Pierry: “é um problema de toda a sociedade”

Pierry, ainda que não negue uma eventual carência de recursos ou de financiamento, diz não acreditar que os principais problemas sejam esses. Para ele, o grande obstáculo está no mau gerenciamento da saúde como um todo. “Todos temos deixado a desejar. Não é um problema apenas do poder público; é de toda a sociedade, de todos os atores envolvidos nisso”, defende. Para ele, apenas a partir de um esforço de gerenciamento será possível detectar com clareza quais são os reais problemas da saúde no RS e no Brasil.

“Hoje em dia, os gestores ficam como bombeiros, apagando incêndio”, afirma. “É muita demanda, e o gestor tentando lidar com todas elas ao mesmo tempo, sem estratégia. Sem ter uma boa gestão, não é possível nem mesmo determinar o que está de fato faltando, em quais aspectos é preciso atuar de forma mais intensa. Não que os recursos disponíveis sejam suficientes, parece mesmo que não são. Mas não adianta suprir de forma imediata, sem resolver esse problema de gestão”.

Por sua vez, o atual superintendente do Grupo Hospitalar Conceição, Néio Lúcio Fraga Pereira, afirma que existe uma precariedade crônica na atenção primária, o que geralmente chamamos de saúde da família. “A maioria das unidades de atendimento familiar nem médico tem. É uma lambança”, lamenta. Néio também identifica problemas na regulação dos serviços de saúde no Rio Grande do Sul. “Temos que garantir que o paciente receba atendimento correto e adequado em todo o sistema, em todas as etapas necessárias para seu tratamento. No momento, estamos deixando a desejar nisso. Ainda temos setores que atendem como nos tempos de Graham Bell: fazem consultas e exames por telefone”, ironiza.

Para superintendente do Conceição, saúde brasileira é subfinanciada

Além desses fatores, Néio Lúcio Fraga Pereira lamenta o que considera um subfinanciamento da saúde no Brasil. “Por aqui, investimos em saúde 374 dólares por habitante ao ano. Em países como os EUA, que não é uma maravilha em termos de saúde, o governo investe mais de 1000 dólares por habitante”. Isso, somado à falta de dados sobre o assunto, dificulta ainda mais uma tarefa que, para os gerentes de saúde, já não é das mais fáceis. “Nós não sabemos qual é a nossa demanda reprimida, quais especialidades médicas precisam de uma atenção maior”, critica.

Luiz Pierry levanta algumas críticas também à postura adotada pelos profissionais médicos em determinadas situações. “Hoje em dia, temos uma indústria do exame. Você vai a qualquer médico, de qualquer especialidade, e ele não te diz nada sobre o que você está sentindo, qual pode ser o seu problema: já vai pedindo uma bateria de exames”, critica. “Imagina isso para alguém que não tem uma renda muito grande. Acaba sendo quase um mecanismo de defesa dos médicos, que muitas vezes talvez não corresponda a uma real necessidade”.

“Ainda temos muito caminho a percorrer”, diz o professor Ronaldo Bordin, da UFRGS. Segundo ele, o mais costumeiro é o gestor trabalhar suprindo carências imediatas ao invés de pensar os hospitais um pouco mais à frente. Mas admite que parte dessa política se deve também a condições inesperadas, inerentes à atividade hospitalar. “Para medicamentos, por exemplo, são feitas estimativas de todos os tipos antes de autorizar a compra”, explica. “Mas basta alguém entrar com mandado judicial para a compra de determinado medicamento, ou mesmo uma epidemia inesperada, para que o poder público seja obrigado a deslocar recursos. Daí, o planejamento já era”.

“O que a gente percebe é que, de modo geral, falta tudo para os hospitais”, diz Luiz Pierry, do PGQP. “Recursos, profissionais, leitos, ambulâncias… A nossa ideia é de que, se falta tanta coisa, é sinal de que é preciso olhar para a base. E aí se torna possível ver que o que falta, antes de tudo, é gestão. Isso ajuda a gente a perceber uma série de desperdícios, até mesmo de oportunidades, que passam despercebidos de outro modo. Falta até mesmo conhecimento das próprias necessidades, o que faz com que se atire para todos os lados”.

Santa Casa sofreu alterações na gestão e adotou estrutura empresarial

No Rio Grande do Sul, um caso citado como exemplo dos efeitos de uma boa gestão é o do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre. Depois de viver momentos difíceis, que chegaram a colocar em risco a continuidade dos serviços, a administração procurou o PGQP para promover alterações na gestão. Hoje em dia, a Santa Casa é considerada referência médica na América Latina, além de ter conquistado o Prêmio Nacional da Qualidade — PNQ, no ano de 2002.

O próprio Luiz Pierry, do PGQP, considera-se uma prova viva da excelência de atendimento da Santa Casa. Diagnosticado com câncer, fez todo o tratamento, incluindo a cirurgia, nas dependências do grupo hospitalar. A intervenção foi bem sucedida e Pierry não apresenta mais sinais da doença. “Sou um caso de sucesso”, brinca.

De acordo com Pierry, o começo da atuação do PGQP na Santa Casa não foi dos mais fáceis. “Naquela época, não havia muito no que se basear, então a administração da Santa Casa fez uso de conhecimentos da indústria. É uma coisa difícil, pegar algo que funciona para a indústria e transportar para a área de serviços. É uma mudança que requer tempo e persistência”, explica. Depois de um período inicial, onde foi feito um diagnóstico dos principais problemas do grupo hospitalar, a Santa Casa investiu em capacitação de seu corpo de funcionários, apostando na implementação de mudanças dentro de um calendário previamente estabelecido. Além disso, adotou-se uma estrutura empresarial, com unidades gerenciais básicas e um comitê de governança. “A partir daí, foi aperfeiçoamento constante”, acentua Pierry. “É preciso controlar os processos chave de uma organização. E isso é um esforço permanente. Se deixar de levar essas coisas em conta, desmancha tudo logo em seguida”.

Santa Casa: um exemplo de gestão

O sucesso da iniciativa gerou o projeto “Mais Gestão Para os Hospitais Filantrópicos”, que atua em cinco estados brasileiros com participação da Confederação das Misericórdias do Brasil (CMB). Depois de cerca de um ano dissecando os processos que envolveram a atuação dentro da Santa Casa, o PGQP desenvolveu uma espécie de cartilha para aplicação em hospitais filantrópicos, buscando melhorar o serviço e evitar o fechamento de casas de saúde. “Geralmente, a gente trazia propostas que implicavam em um mínimo de estratégia”, lembra Pierry. “Basicamente, perguntávamos: o que vocês querem atingir? A partir daí, desdobrávamos essas expectativas dentro dos processos da instituição”. Atualmente, segundo dados do próprio PGQP, 10% dos hospitais filantrópicos do Brasil participam do projeto.

Como exemplo de que o que falta, muitas vezes, é menos do que se imagina, Luiz Pierry lembra um dos casos envolvidos no projeto, de um hospital com vários andares e poucos elevadores para suprir a demanda. “Além do fluxo de pacientes e familiares, você tinha que lidar com todo o corpo de funcionários do hospital”, explica. Como todo o fornecimento de material de trabalho era centralizado no almoxarifado do térreo, a eficiência do sistema era muito baixa. “Bastava deixar de usar um único local de distribuição, usando pontos de fornecimento em cada andar, para facilitar a execução de uma série de processos. Os próprios funcionários, pensando no assunto, chegaram a essa conclusão”, garante Pierry.

Bordin: “para o povo, atendimento que faz diferença é pelo SUS”

Ronaldo Bordin concorda que, “dependendo do parâmetro”, é possível dizer que a Santa Casa pode servir como exemplo de boa gestão. Mas lembra que as melhorias surgiram na medida em que o complexo hospitalar promoveu uma guinada em direção à iniciativa privada, abandonando seu caráter filantrópico inicial. “Houve um direcionamento maior para o atendimento de convênios e planos privados de saúde, e a implantação de métodos da iniciativa privada”, diz Bordin. “O atendimento ao SUS foi mantido, mas está em patamares mínimos em alguns setores. Em outros, nem há mais atendimento via SUS. E para o povo, de modo geral, é justamente esse tipo de atendimento que faz a maior diferença”.

Opinião compartilhada por Néio Lúcio Fraga Pereira. O atual superintendente do Grupo Conceição cumpriu sua formação médica dentro da Santa Casa, e garante ter detectado uma mudança de perfil durante os anos. Uma mudança voltada, segundo ele, a assegurar a sobrevivência do hospital. “O pagamento do SUS não leva em conta a demanda objetiva. Não paga por resultados, e sim pelo trabalho realizado, pela quantidade de atendimentos”, lamenta. Nesse sentido, Néio acredita que uma guinada em direção à iniciativa privada acaba sendo uma estratégia para melhorar a situação do hospital — mesmo que em detrimento da população de menor renda.

De acordo com Ronaldo Bordin, iniciativas como a do Hospital Moinhos de Vento (que atende de forma preferencial os moradores do bairro Restinga, zona sul de Porto Alegre) e do Mãe de Deus (que tem se especializado no atendimento de moléstias mentais) mostram uma união de esforços entre poder público e iniciativa privada. “Nesses casos, o setor público delegou funções para a área privada, mas mantendo os seus indicadores de desempenho. Ambos parecem satisfeitos com os resultados”, afirma. Uma parceria que, segundo o professor, reflete de forma direta junto à população. “A prefeitura está estrangulada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Não pode contratar novos funcionários, mas precisa investir na saúde. Como resolver isso, sem recorrer ao setor privado?”, questiona.

Descentralização é caminho sem volta, diz especialista

Segundo os últimos governos, o caminho é descentralizar a saúde, deixando a administração a cargo dos municípios. O Sistema Único de Saúde já está na mão dos municípios, que recebem verbas federais para cuidar da saúde de suas populações. Para estimular uma boa gestão, a União acenou recentemente com premiações para cidades e estados que obtiverem os melhores resultados na aplicação de recursos do sistema. Em Porto Alegre, o prefeito José Fortunati sancionou, no início de abril, o projeto de lei que cria o Instituto Municipal Estratégia de Saúde Família (Imesf).

“Descentralizar é um processo lógico e extremamente salutar”, acrescenta Ronaldo Bordin. Segundo o professor da UFRGS, cada município conhece bem sua realidade local, de forma a agir de forma mais concreta sobre as necessidades da população. Mas adverte: não adianta repassar a responsabilidade aos municípios sem o respectivo financiamento. “A descentralização é real, um caminho sem volta. Mas os estados investem em saúde um percentual aquém do previsto, e a federação menos ainda. Para dar conta, os municípios vão precisar de recursos”, afirma. Luiz Pierry, secretário executivo do PGQP, concorda. “Não dá para deixar de valorizar uma política de fortalecimento dos municípios”, diz ele. “Não acredito que exista alguém que se coloque contra o SUS, mas os municípios não recebem o que é necessário para uma boa execução, porque os recursos estão concentrados no governo federal”.

Néio Lúcio Fraga Pereira, por sua vez, acha que a municipalização da saúde foi conduzida de forma exagerada, já que se perdeu a noção de saúde como um compromisso não só dos municípios, mas também dos estados e da União. “Precisamos de um sistema que implique em um compromisso tripartite. Tem municípios no RS com 5 mil habitantes, como eles vão lidar sozinhos com toda a responsabilidade?”, questiona. Néio lembra o compromisso assumido pelo governo de Tarso Genro, que garantiu a disposição de cumprir até o fim do mandato a destinação de 12% dos recursos do estado para a saúde, conforme determina a constituição. “Se isso for cumprido, já será um avanço”, declara o superintendente do Conceição.

Para ele, mais do que jogar responsabilidade para as administrações municipais, é fundamental rever todo o sistema. “Todo morador de Porto Alegre deveria saber qual é seu hospital, saber exatamente onde ir quando precisar de atendimento”, defende. “Temos que criar redes de atenção, regionalizando o fluxo de pacientes. É importante que existam grandes hospitais resolutivos, distribuídos pelas regiões do estado”.


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