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14 de março de 2011
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12:11

O lugar das mães

Por
Sul 21
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Emma, como todos os livros de Jane Austen, é um romance sobre o universo feminino. E, como todas as obras da autora, pode prestar-se também a diferentes leituras. É possível se fazer deles uma leitura bastante simples, e isso tem continuamente seduzido novos leitores para a literatura de Austen. Sua narrativa envolvente pode sugerir que nos detenhamos apenas nos romances aí existentes e no natural “quem ficará com quem”. Isso pode até ser boa pedida para os dias de chuva, mas os bons romances – e os de Jane Austen estão entre os grandes – se prestam a mais que isso.

Revisitando Emma, acabei relembrando temas que já me são comuns na leitura da autora inglesa. Seu fiel retrato do cotidiano minúsculo dos homens e mulheres do interior. Seu bem elaborado mapa da complexa escala social em que vivia a gentry – pequena nobreza – na Inglaterra da virada do século XVIII para o XIX. Seu tom debochado sobre as pequenezas dos homens e mulheres daquele mundo, temperados com uma compaixão que nos faz amar seus personagens, mesmo quando os odiamos.

Porém, Emma é também um livro sobre órfãos. Austen segue a trajetória de um grupo deles, de idades semelhantes e, na maioria, órfãos de mãe. A protagonista Emma perdeu a sua tão cedo, que nem se lembra dela. Jane Fairfax, cuja perda da mãe e do pai acarreta num decréscimo social da família inteira. A tia e a avó que lhe restam são obrigadas a entregá-la para um casal abastado, com condições para custear a educação de uma jovem de “boa” origem. O terceiro órfão é Frank Churchil, que perdeu a mãe e, como o pai estava em péssimas condições financeiras, foi entregue aos tios maternos. Estes, pertencentes a uma escala social superior, inclusive, lhe destituem do nome do pai que não teve condições de criá-lo sozinho. E, claro, Harriet Smith, a menina tutelada por Emma e de cuja origem nada se sabe. Seu caráter de ilegítima é revelado rapidamente, quando a autora informa que foi matriculada e depois se tornou interna em um colégio respeitado. Deste colégio saiam moças para casar-se com pequenos proprietários, que poderiam fechar os olhos às suas origens em troca de uma mulher com algum refinamento. A outra opção era o traballho como governantas de crianças de famílias abastadas, o que equivalia a ser babá, professora de primeiras letras e instrutora de comportamento social. Uma profissão aceitável para mulheres, mas bastante repugnante para uma jovem com ambições de qualquer tipo: fossem românticas, maternais ou simplesmente de liberdade – Jane Eyre, de Charlotte Brönte, é um belo romance sobre o tema.

Comparada aos outros, Emma é uma afortunada. Feliz porque o pai – rico e bem colocado socialmente – não precisou livrar-se dela e nem de sua irmã mais velha. No entanto, erra quem pensa que a ausência das mães destruiu essas famílias. De forma alguma. As cartas trocadas reforçam os laços continuamente. E, no devido tempo, aqueles que foram entregues a outras famílias – Jane Fairfax e Frank Churchil – retornam as suas casas de origem e retomam aí os seus lugares.

A leitura do livro, a partir desta perspectiva e sob o bombardeio de algumas ideias que tenho lido (com alguma constância) na internet, me fizeram repensar a questão da presença da mulher na família ocidental.

Em primeiro lugar, me veio a pergunta: de que família estão falando aqueles que afirmam que a emancipação da mulher acarretou a dissolução da família? Pensando historicamente, uma boa parte das famílias do passado era como as representadas em Emma, isto é, sem mães. Não é à toa que a impopular figura das madrastas fosse tão presente nos contos e narrativas antigas. “Mães morrem, é um fato!”, resume o pai de Emma. As “madrastas más”, na sua maioria, eram pobres coitadas casadas com homens socialmente superiores que as queriam para criar os filhos da primeira esposa. Para serem más, como as da Branca de Neve e da Cinderela, as madrastas teriam de também trazer um dote suficientemente alto para poderem ser consideradas pessoas.

Assim, esse restrito modelo de família a que as frases de efeito – que condenam a liberação feminina – se referem, tem menos de 200 anos. Foi preciso que a enorme mortalidade das mulheres nos partos fosse superada, que a assepsia chegasse até o nascimento dos bebês, que a frágil saúde das gestantes fosse compreendida e que a gineco-obstetrícia avançasse consideravelmente. Antes disso, as mães morriam cedo, era um fato. Morriam aos quilos, aos montes. Esse modelo – pai, mãe, filhos – precisou ser construído tanto em fatos quanto no imaginário do Ocidente. A transformação da antiga família extensa em família nuclear levou décadas e em muitos lugares nunca chegou a ser completa. O chamado modelo familiar burguês precisou de uma elaboração trabalhosa e de grande espaço de propaganda para se tornar o ideal e, depois, a única forma “aceitável” de família. Mesmo a esquerda, crítica dos moldes capitalistas, muitas vezes, comprou essa ideia de família, em que mulheres e filhos eram cidadãos de segunda classe em relação aos homens pais.

Na verdade, a propaganda desse ideal foi tão bem feita e tanto penetrou em nosso imaginário que me lembro de, há alguns anos atrás, ter havido um debate num congresso de historiadores. Neste, um grupo de estudiosos de escravidão, se recusava a aceitar que o conceito de família escrava fosse ligado ao conjunto formado apenas por mãe e filho. Estes historiadores não viam como poderia existir uma família sem pai. Mas, essa foi a pergunta feita pelos defensores do conceito: por que diabos a família escrava teria de pautar-se nos moldes da família burguesa européia?

Aliás, por que qualquer família teria de se pautar justamente nesses moldes?

Então, se família não é necessariamente pai, mãe e filhos, o que é, afinal? De que falamos quando falamos em família? Há história por trás disso? Sem dúvida e muita. Mas ela não vai apenas até os seus avós e ela não é restrita aos modelos apresentados nas antigas propagandas de margarina. A família é dinâmica e nunca foi a mesma ao longo do tempo, modificou-se sempre e foi múltipla em cada lugar do globo.

Pode-se definir família como um grupo parental que “pode” ser composto pelos progenitores e seus descendentes, mas também por adultos responsáveis e aqueles que estão sob sua responsabilidade, sejam os mais jovens ou os mais velhos. O modelo burguês, propalado a partir de meados do século XIX, descende de menos de 100 anos de ideias que, lentamente, tinham passado a ver, como uma necessidade sócio-moral, que as pessoas crescessem com um pai, a transmitir determinados valores, e com uma mãe, a transmitir outros. No entanto, o modelo não é mais uma convenção e os pensadores que o elaboraram, mesmo com toda sua genialidade, eram homens (e algumas mulheres) de seu tempo. Mais ainda, eram pessoas do XIX, século que não percebia a si mesmo como um tempo qualquer. Era uma época que acreditava ser superior as outras, que acreditava ter todas as respostas ou que logo as conseguiria. As ideias e os modelos propalados por esta época vieram antes do relativismo, antes do respeito à alteridade e antes que o Ocidente realmente compreendesse o resto do mundo.

Veja bem, há lugares no mundo em que ainda resistem famílias compostas pelas mães e por seus irmãos. Os pais não tem qualquer responsabilidade sobre os filhos. As crianças que lhes importam são as das irmãs. Em outros lugares, há casamentos grupais em que os filhos pertencem a toda a comunidade. Não há crianças abandonadas, nem mães tendo de se prostituir para alimentar seus filhos. Nestas realidades, o importante para uma família ser família é que crianças e velhos estejam protegidos. O que é bem mais elogioso do que se pode dizer da nossa sociedade, que herdou do XIX a fantasia de que seus modelos de comportamento são superiores a todos os outros.

Nos últimos tempos, a família ocidental de modelo burguês se modificou sim e, em muitos aspectos, para melhor. E, os nostálgicos que me desculpem, mas ela continuará a modificar-se infinitamente. Espero que, nestas modificações, consigamos atingir o grau de proteção aos mais jovens e aos mais velhos que outras sociedades, menos engessadas em modelos que a nossa, já conseguiram.


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