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25 de março de 2011
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15:00

Intervenção na Líbia debilita Kadafi, mas divide comunidade internacional

Por
Sul 21
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Foto: Al Jazeera English/Flickr
Foto: Al Jazeera English/Flickr

Igor Natusch

Há uma semana, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a resolução número 1973, prevendo uma série de medidas contra o ditador da Líbia, Muammar Kadafi. A decisão, que impõe uma zona de exclusão aérea, o embargo na venda de armamentos e autoriza “todas as medidas necessárias” para a proteção de civis, já debilitou a investida de Kadafi contra os rebeldes que buscam derrubá-lo, mas não foi recebida com aprovação unânime pela comunidade internacional. A própria votação que confirmou a intervenção militar internacional contou com cinco abstenções, entre elas a do Brasil, e sofreu críticas de países como China, Rússia e Paquistão.

Entre as críticas, vozes condenam os riscos oferecidos à população civil e a interferência militar internacional em questões que seriam de autodeterminação. Além disso, outra acusação, mesmo que velada, é comum: a de que os interesses humanitários da coalizão seriam, na verdade, uma desculpa para aumentar o controle das potências ocidentais sobre a lucrativa produção de petróleo da Líbia.

Segundo Eveline Brigido, mestre em Direito Internacional e professora de Relações Internacionais da ESPM, a coalizão tem “forte embasamento jurídico” para essa decisão. “Verdade que o Conselho de Segurança é o único órgão dentro da ONU que realmente tem poder político, já que apenas ele pode autorizar o uso da força. Nem a OTAN tem essa prerrogativa. Mas os países integrantes da ONU se comprometem a cumprir as determinações do Conselho, e o Kadafi tem adotado uma postura clara de enfrentamento”.

Além disso, lembra a professora, não é a primeira vez que Muammar Kadafi se posiciona de forma a ferir determinações do órgão internacional. Como exemplo, ela lembra o atentado de Lockerbie, na Escócia, ocorrido em 1988. No atentado, um avião da Pan Am foi destruído em pleno voo, causando 270 mortes. O líbio Abdel Basset al Megrahi foi julgado e condenado, e Muammar Kadafi foi considerado o mentor do ataque, informação confirmada em fevereiro de 2011 pelo ex-ministro Mustafa Abdel-Jalil.

“As polêmicas envolvendo a ação na Líbia são resultado, em boa parte, da relutância dos países ocidentais em tomar algumas iniciativas”, critica Maurício Santoro. “A zona de exclusão aérea, por exemplo, demorou tanto que, quando saiu, as tropas de Kadafi já estavam cercando Benghazi”. Isso, segundo ele, acabou influenciando em especial no conteúdo da resolução, que acabou sendo bem mais amplo do que o primeiro.

Renatho Costa, professor de Relações Internacionais da Unipampa, vê na resolução da ONU uma intenção de definir rapidamente os rumos do conflito. Mas tudo dependerá, segundo ele, da real extensão do apoio interno a Kadafi. “O primeiro objetivo, que é impedir o avanço de Kadafi sobre os rebeldes, parece ter sido bem-sucedido. O que vai acontecer daqui para frente é difícil de prever, mas é perceptível que, se as potências ocidentais acharem necessário intensificar os esforços para inibir novas ações de Kadafi, isso vai acontecer”.

“Se Kadafi não recuar, ONU não recuará”

“É uma das poucas resoluções do Conselho de Segurança que se posiciona pela defesa da população civil, de jornalistas e integrantes de organismos de ajuda humanitária” diz Eveline Brigido, da ESPM. “Não é algo previsto na carta da ONU. Além disso, existe um princípio de não intervir em situações de guerra civil, até para preservar a autodeterminação dos povos”.

Para Maurício Santoro, o documento aprovado pelo Conselho é bastante amplo, dando margem para uma série de ações. Mas mesmo essa decisão, na visão do jornalista e cientista político, mostra-se alvo de diversos questionamentos. “Tivemos várias abstenções, e a Alemanha está retirando tropas e navios do Mediterrâneo, para não ser levada a participar (da intervenção). São sinais de que há uma visível fragilidade na coalizão”.

Além disso, há preocupação com eventuais desgastes que uma longa ação possa trazer, como aponta Maurício Santoro. Inclusive no sentido de comparar a situação na Líbia com outras intervenções em países árabes protagonizadas por países ocidentais, em especial os EUA, “existe o fantasma do Iraque, com certeza”, lembra Santoro. “Tem até essa coincidência infeliz, de o começo da ação na Líbia coincidir com o aniversário de 8 anos da guerra no Iraque. Entrar de cabeça em uma luta por terra é um desgaste que os Estados Unidos quer evitar até onde for possível”.

De qualquer modo, Eveline Brigido acha possível que ações mais enérgicas sejam tomadas pela ONU. “Se o Kadafi não recuar, o Conselho de Segurança também não recuará”, acentua a professora. “Acredito que, se a atual decisão do Conselho não surtir efeito, o uso de tropas por terra pode ser autorizado, sim”.

Renatho Costa, da Unipampa, concorda. “Uma coisa é destruir a base de apoio (de Kadafi), atingir as estruturas de poder. Outra coisa é derrubar Kadafi. Isso só vai acontecer ou entrando com tropas terrestres, ou financiando milícias”. O professor de Relações Internacionais acredita que a segunda hipótese é mais provável, já que o desgaste político de uma intervenção por terra é muito grande. “Entrar é fácil, o difícil é retirar as tropas do país”, argumenta.

Um aspecto que pode acelerar a tomada de uma decisão nesse sentido é a quantidade de refugiados, que já começa a se tornar um problema para alguns países próximos. “O medo é que o caos da Líbia transborde para países vizinhos. A Argélia, por exemplo, faz fronteira com a Líbia e é um país que já teve protestos, que tem uma situação interna bastante complicada. O Egito já está recebendo muitos refugiados, e essa situação pode se estender até a Europa, com refugiados chegando até a França ou ao sul da Itália”.

Kadafi está isolado, mas ainda tem apoiadores dentro da Líbia

De acordo com os especialistas consultados pelo Sul21, ainda é cedo para determinar com alguma segurança quais serão os próximos desdobramentos na Líbia. Mas todos parecem concordar em um ponto: a situação de Muammar Kadafi é das mais complicadas. Dificilmente ele conseguirá resistir às investidas da coalizão – e a falta de apoio internacional torna tudo ainda mais difícil, mesmo que o ditador líbio garanta que resistirá até o fim.

“A opinião pública árabe está adotando uma postura cautelosa. A verdade é que a figura de Kadafi tornou-se muito rejeitada, como a de alguém de quem é necessário se livrar”, argumenta Maurício Santoro. “O apoio a ele é praticamente inexistente. Na Liga Árabe, apenas a Síria e a Argélia foram contra a zona de exclusão aérea. São dois países em um total de 22 membros. Isso dá uma noção de como Kadafi está isolado”. E mesmo esses apoios, segundo Santoro, atendem a interesses específicos. A Argélia, além de estar às voltas com protestos em seu próprio país, teme uma crise humanitária pela quantidade de refugiados que um ataque a Tripoli causaria. A Síria, por sua vez, é comandada pelo ditador Bashar el-Assad, talvez o governante árabe de maior afinidade com Muammar Kadafi.

De qualquer modo, Renatho Costa, da Unipampa, lembra que o ditador ainda conta com muito suporte dentro da própria Líbia. “Ele é um coronel, tem ascendência sobre as tropas, além de ter construído uma forte base de apoio com um processo de troca de favores. Muitos militares aproveitaram durante muito tempo as benesses do regime. Além disso, temos que lembrar que Muammar Kadafi é uma figura de grande carisma popular. Certamente temos uma boa parcela da população que ainda é fiel a Kadafi”.

Samuel Feldberg, pesquisador da USP, concorda. “São elementos que se beneficiam há mais de 40 anos do regime (de Kadafi). Existe toda uma estrutura de poder, que envolve muitas pessoas, e elas vão lutar para manter a situação como está”.

Petróleo influencia ação, mas não é fator principal

A alegação do Conselho de Segurança da ONU é de que a intervenção na Líbia é necessária para proteger vidas civis ameaçadas pelas atitudes violentas do regime de Muammar Kadafi. Porém, não são poucas as vozes que insinuam outros interesses na iniciativa internacional. A Líbia é um importante fornecedor de petróleo e gás natural para vários países da Europa. O gasoduto Greenstrean, que sai da cidade líbia de Mellitah rumo à Sicília, na Itália, é um dos principais fornecedores de gás para a Europa, usado especialmente para o aquecimento de residências. O país árabe também fornece combustível para países como a Espanha, por via marítima. Segundo críticos da ação da ONU, a proteção dos civis é apenas uma desculpa para uma ação de objetivos econômicos, para estabilizar o fornecimento de combustível e garantir o controle do Ocidente sobre as jazidas do país.

No entanto, o professor Renatho Costa não acredita que o domínio dos poços de petróleo seja o fator determinante da ação militar. “Se a ideia fosse intervir na Líbia apenas em nome do petróleo, isso já poderia ter acontecido muitos anos atrás. Kadafi comanda a Líbia há mais de 40 anos, teria dado apoio a grupos terroristas como IRA e OLP. Não acho que dê para separar as coisas, temos vários fatores que motivam essa intervenção. Claro que existem interesses políticos e econômicos, mas aspectos geopolíticos também estão sendo levados em conta”.

Maurício Santoro é outro que relativiza a importância do petróleo na decisão da ONU sobre a Líbia. “É um dos fatores, mas não o principal. A Líbia produz cerca de 1% do petróleo do mundo e já perdeu parte de sua importância como exportadora, com o crescimento de regiões como a Rússia e a África Ocidental”.

Para Samuel Feldberg, da USP, aspectos geopolíticos podem estar sendo mais importantes do que a conjuntura econômica. Ele destaca a questão dos refugiados da Líbia – que, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), já seriam mais de 300 mil. “Cinicamente falando, acho que essa é a única coisa que realmente preocupa (os países ocidentais)”, acentua. “Se o petróleo fosse mesmo o principal fator, a intervenção possivelmente aconteceria antes, e de forma mais direta”.

Para o pesquisador do Gacint, a importância da Líbia, na produção de petróleo, é relativamente modesta. “Claro que para alguns países, especialmente na Europa, trata-se de um fornecedor mais próximo, ou seja, há uma importância estratégica”, admite Feldberg. “Mas a produção de petróleo deles é de cerca de 1,7 milhão de barris (por dia), menos até do que a do Brasil (2,18 milhões de barris/dia)”. Em circunstâncias normais, a Líbia exporta 1,2 milhão de barris por dia, sendo que 85% são destinados a países da Europa.

Estruturar novo governo é grande desafio

Para Eveline Brigido, a verdadeira questão não é se Muammar Kadafi deixará ou não o governo líbio. “Tudo indica que Kadafi será indiciado no Tribunal Penal Internacional. Ou seja, ele deixará o governo em breve, seja da maneira que for”. A grande dúvida, segundo a especialista em Direito Internacional, é sobre o que virá depois, em um período pós-Kadafi. É o jornalista e cientista político Maurício Santoro quem desenvolve a questão. “São mais de 40 anos sem estrutura política, sem partidos, parlamento, sindicatos… O único poder realmente consolidado é o das tribos. Será um grande desafio organizar todos esses grupos em torno de algo mais ou menos estável”.

“O próprio poder de Kadafi foi consolidado a partir de acordos com lideranças tribais”, acrescenta Renatho Costa. “Se ele cair, não temos uma figura forte capaz de centralizar o poder político”. Além disso, o professor da Unipampa detecta outra possível consequência da queda do atual governante líbio. “O que vai ser feito com os apoiadores de Kadafi? Como evitar uma atitude revanchista contra eles? Em uma sociedade fragmentada, carente de instituições políticas, essa é uma questão difícil”, afirma.

“O ideal seria que os próprios líbios resolvessem a situação, construindo um governo de unidade nacional”, diz Maurício Santoro. “Mas essa seria uma expectativa bastante otimista. A necessidade de uma força de paz é bastante provável”.

“Serão tropas com uma finalidade diferente das que estão atuando agora”, explica Eveline Brigido. “A tarefa delas será de realizar operações de manutenção da paz dentro da Líbia, de modo que haja condições para a escolha de um novo governo, por meio de eleições diretas”.

“É possível que aconteça uma africanização das tropas, buscando usar militares de países da África e de países da Liga Árabe”, diz Maurício Santoro, considerando essa uma possível atitude para diminuir os impactos negativos de uma intervenção de longo prazo. “Mas a própria Liga Árabe está dividida quanto ao que está acontecendo na Líbia. Foram eles que solicitaram a zona de exclusão aérea, mas estão muito incomodados com os bombardeios”.


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