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15 de fevereiro de 2011
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01:04

Remédio para o quê?

Por
Sul 21
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Remédio para o quê?
Remédio para o quê?

Nikelen Witter*

Em um relatório divulgado no ano passado, o Departamento Internacional de Controle de Narcóticos (órgão ligado à ONU) divulgou que o uso abusivo de medicamentos controlados cresce de forma acelerada no mundo e já supera vícios como os em heroína, cocaína e ecstasy. O mesmo relatório cita as mortes de pessoas famosas com Michael Jackson, às quais podemos somar as de atores jovens como Heath Ledger, Brithany Murphy. Todos eles, vítimas do uso indevido de remédios prescritos por médicos e que, em tese, deveriam ter seu consumo estritamente controlado. O mesmo relatório aponta para o fato de que nos EUA, o vício em medicamentos já ocupa o segundo lugar, superado apenas pela maconha. Não creio que o Brasil ocupe uma posição muito diferente disso.

Os autores do relatório, bem como os jornais que noticiaram o tema no ano passado, procuraram assimilar este consumo ao consumo de drogas, às relações com a ilegalidade, etc. Minha percepção é um pouco diferente. Acredito que o relatório aponte para a necessidade de se fazer estudos históricos e sociológicos sobre como a sociedade contemporânea se relaciona com os medicamentos, isto é, as drogas lícitas receitadas por médicos.

O primeiro ponto a ser pensado é a questão das promessas dos medicamentos. No passado, os remédios pretendiam “vender” apenas uma suposta cura. Em fins do século XIX, por exemplo, os remédios da “moda” eram tônicos e elixires que prometiam curar todos os tipos de mazelas em um único frasco. “Curavam” (em promessa, é claro) de gripes comuns à tuberculose, de manchas na pele à sífilis. A mensagem que as drogas controladas passam hoje, porém, é diferente e muito maior. Elas não “vendem” apenas cura (o que, talvez, limitasse seu uso), “vendem” bem-estar e isso torna qualquer um consumidor em potencial de medicamentos. Afinal, para toda a disfunção – esta parece ser a regra do mundo em que vivemos – há uma droga que, se não é capaz de resolver, é um excelente paliativo. Os remédios do início do século XXI prometem do razoável ao absurdo: boas noites de sono, vitalidade, alegria e, claro, o prozac da felicidade (o que faria pasmar e maravilhar os nossos antepassados). O fato é que tais promessas estão tornando nossa relação com os medicamentos muito pouco saudável, fazendo-nos passar de consumidores a dependentes. E, deixemos claro, estou falando de remédios lícitos, receitados por médicos e comprados com receita.

Será que somos assim tão doentes? A verdade é que a nossa noção de doença tem sido constantemente aumentada. O processo de medicalização da sociedade – o qual nos deu vitórias maravilhosas sobre o sofrimento e a morte – tem tido, a meu ver, um efeito colateral indesejado. Há uma tendência geral em transformar sensações e comportamentos (mesmo que levemente) desviantes em algum tipo de disfunção. Logo, a se medir pelas conversas dos leigos, não existem mais crianças mal-educados, todos são hiperativos. Nenhum adolescente mais sofre da preguiça comum que acometia a idade no passado, hoje eles são depressivos. Todo mundo se angustia, tem um incômodo, ou uma dor e, para isso, dê-lhe remédios e diagnósticos que, buscados em médicos e curadores diversos, são, muitas vezes, convertidos pelo “doente” numa salada explicativa e em receitas para medicamentos com tarja preta. Mas será que precisamos mesmo de tanto remédio?

Tenho estudado a preocupação humana com a saúde ao longo da história e discordo das apreciações que dizem que somos, hoje, mais interessados nisso do que éramos no passado. A saúde é nossa ligação com a vida e, afora todas as crenças religiosas e teorias, é a vida que conhecemos e quase todos querem mantê-la. Isso não é mais verdade hoje do que era a 100 ou 200 anos. O que, porém, não pode ser subestimado, é a transformação de nossa relação com o corpo a partir da ascensão da medicina científica.

Entre 1850 e 1950, essa parte da ciência viveu uma espécie de idílio com o gênero humano. Plena de promessas, depois de quase um século do nascimento da clínica, finalmente a medicina podia, efetivamente, curar. O diagnóstico, bem como o prognóstico, passou a ser cada vez mais correto. Demorou, mas logo a medicina diferenciava-se de suas concorrentes, especialmente, no que tange à eficácia. Os avanços da ciência médica permitiram que se vivesse mais. Mas será que permitiam viver melhor?

Foram os anos 1960 que fizeram esta pergunta e a resposta, bem ao gosto da época, foi negativa. As críticas à medicina, ao poder médico, à instituição dos serviços de saúde pagos, ao universo de medicamentos, e, inclusive, ao prolongamento artificial – e, por vezes, absurdo – da vida, foram a tônica de diferentes trabalhos históricos, sociológicos e filosóficos escritos naquela década. Hoje é possível ver o exagero de muitas interpretações, outras, porém, seriam interessantes se fossem recordadas. Uma delas – para mim, talvez, a mais fundamental – diz respeito à posse sobre o corpo e às decisões acerca dele. E, de fato, essa é uma seara espinhosa, pois mexe com coisas que vão do aborto à eutanásia, até debates que poriam em questão a estrutura dos hospitais e das farmácias. Isso sem que sequer se abra a porta em que estão os debates sobre a proposta do Ato Médico no Brasil.

Por outro lado, há um consenso que parece ser seguido por parte da mídia e dos médicos que o grande vilão, o gerador de todos esses vícios e problemas de saúde com remédios, é a auto-medicação. Se o assunto fosse tão simples, anos e anos batendo nessa tecla – com centenas de programas e matérias jornalísticas de esclarecimento – e a população já poderia ter aprendido, não é? Acontece que esta relação é mais complicada e o médico é apenas parte dela. Provavelmente, a parte mais jovem, já que tem 300 anos, no máximo, enquanto a relação entre humanos, cura, vida e morte é bem mais antiga. Nesse sentido, talvez, a auto-medicação devesse ser vista como um tipo de resistência e não de ignorância.

Nesse sentido, a insistência em ver a população como o paciente leigo e ignorante não torna mais fácil criar uma nova cultura em relação ao corpo. Sim, porque é disso que estamos falando: de CRIAR uma nova cultura. Uma forma diferente de estabelecer uma relação com o corpo e com a doença, num mundo em que a oferta de medicamentos deixou há muito tempo de ser inócua. A proposta que vemos hoje é a que destitui cada ser humano de escolher como lidará com sua saúde. Posso estar enganada, mas não creio que a humanidade vá desistir tão facilmente da posse do corpo, mesmo em prol da ciência.

Num mundo em que todos parecem tão carentes de terem suas dores curadas, talvez devêssemos pensar em como levar uma vida menos dependente em nossa busca – tão profundamente humana – pelo bem estar.

Diz o ditado popular que o que não faz bem, engorda. Mas a dura verdade é que: remédio demais também mata.

*Professora e historiadora, autora do livro “Dizem que foi feitiço: as práticas da cura no sul do Brasil, 1845-1880), publicado pela PUCRS, e da tese “Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no sul do Brasil (século XIX), que pode ser acessada livremente na internet.


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