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15 de fevereiro de 2011
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00:12

Processo democrático no Egito pode beneficiar o Brasil

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Sul 21
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Egito festeja o fim da ditadura / Al Jazeera English/Flickr

Igor Natusch

Os reflexos da onda de mudança que varreu o Egito atingem não apenas o espectro geopolítico da região, mas abalam também as estruturas que sustentam a economia mundial. Não apenas por influenciar no Canal de Suez, uma das principais rotas de escoamento da produção de petróleo, mas também por modificar sensivelmente as relações comerciais do Egito com países ocidentais. Entre eles, o Brasil, que já mantém relações comerciais com vários países árabes. A consolidação da democracia no Egito pode representar parcerias comerciais aindamais vantajosas.

O diretor do Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI), Marcelo Suano, acredita que o Brasil adotou uma postura “correta” na recente crise egípcia. O governo brasileiro teria optado pela neutralidade, reafirmando que não apoia ditaduras e reforçando valores democráticos sem interferir de forma mais profunda na questão. “Alguns podem ter reclamado que o Brasil ‘gritou pouco’, mas acho que o posicionamento do Brasil foi condizente com o que se espera de um grande país, que tem peso cada vez maior no cenário internacional”.

Marcelo Suano lembra que o Egito é um dos únicos países árabes a manter acordos comerciais com o Mercosul. Nesse sentido, é positiva a garantia egípcia de que todos os tratados internacionais firmados no regime de Hosni Mubarak serão mantidos. “Se houvesse a possibilidade de mudanças, isso poderia provocar desequilíbrio. O grande medo dos países ocidentais, nesse caso, é de que países como o Egito saiam de uma ditadura e entrem em outra, ainda pior”.

Cláudia Musa Fay, professora de História da PUCRS, acrescenta que o Brasil não atua como antagonista econômico de países árabes, como o Egito, e sim como um parceiro comercial em potencial. “Temos uma tradição histórica de contatos diplomáticos com a região, além de boas relações com países da África, por exemplo. Não há concorrência direta. Temos condições de oferecer produtos complementares, importantes para o desenvolvimento na região. Acredito que essa relação tem condições de dar bons frutos daqui para frente”, diz a historiadora.

Alcides Costa Vaz, professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB, acredita que as relações comerciais entre Brasil e Egito podem sofrer um “congelamento temporário”, causado pela indefinição institucional no país árabe. Mas não acredita que os acontecimentos no Egito possam prejudicar, a longo prazo, essa parceria. “O Brasil tem conduzido a questão de forma cuidadosa, como sempre faz. A partir do governo eleito, em setembro, a relação dos dois países deve ser normalizada”.

Al Jazeera English/Flickr

Longo caminho para a democracia

Foram 18 dias de intensos protestos, que provocaram centenas de mortes e agitaram as ruas das principais cidades do Egito. O resultado: Hosni Mubarak, que equilibrava-se no governo egípcio há três décadas, foi derrubado, e um governo de transição, comandado pelos militares do país, conduzirá as reformas necessárias até a eleição de um presidente, em setembro. Com a dissolução do parlamento, toda a antiga base de sustentação de Mubarak encontra-se fora do poder. O trabalho pesado, porém, está só começando. A caminhada egípcia em direção à democracia é acompanhada de perto não só pelo mundo árabe, mas também pelas principais potências ocidentais, inclusive o Brasil, que não apenas temem eventuais recaídas autoritárias no país, como também se preocupam com os reflexos imprevisíveis da revolta egípcia no restante do mundo árabe.

Cláudia Musa Fay, historiadora da PUCRS, adverte que não é possível superar rapidamente as grandes diferenças sociais e econômicas dentro da sociedade egípcia. “A empolgação com a queda de Mubarak é compreensível, mas todo o processo democrático no Egito vai depender de como o governo provisório vai agir nos próximos meses. É preciso trabalhar desde agora em mudanças estruturais, que permitam o aumento do bem-estar social e a inserção das pessoas no mercado de trabalho do país”.

“Democracia, como a gente geralmente entende, acho muito difícil (a curto prazo)”, admite Marcelo Suano, do CEIRI. Segundo ele, uma democracia nos moldes ocidentais depende de um grande conjunto de instituições, que ainda não existem ou não estão consolidadas no Egito e nos países árabes em geral. A tarefa do governo de transição será criar, até as eleições de setembro, espaço para que ao menos algumas dessas instituições se desenvolvam. “A democracia ainda está dando os primeiros passos, e a eleição será importante para consolidar esse processo”, acrescenta.

Nesse sentido, a presença das forças armadas pode ser a única capaz de dar equilíbrio a essa transição. “O Exército egípcio atuou como um elemento de modernização para o país, até do ponto de vista tecnológico, embora isso não resulte necessariamente em desenvolvimento social ou em consolidação de instituições democráticas”, afirma Suano. Cláudia Musa Fay, da PUCRS, concorda, lembrando que as Forças Armadas do Egito foram equipadas pelos EUA nos tempos de Guerra Fria contra a União Soviética. “Existe uma certa cumplicidade”, diz Musa Fay.

Al Jazeera English/Flickr

“Regime não tinha legitimidade”

Dissolver o parlamento, para Marcelo Suano, foi uma decisão até mesmo “óbvia”, dadas as circunstâncias. “Um governante como Mubarak, que enriquece mais de US$ 40 milhões em 30 anos… Desculpe, mas ninguém alcança isso sozinho. Não tem como isso acontecer sem que haja corrupção entre políticos, setores sociais e até mesmo esferas do poder militar”. Desta forma, a falta de confiabilidade de toda a estrutura política do país justificaria a dissolução do parlamento do Egito. “Dentro do contexto, não é uma atitude antidemocrática”, defende Suano. “Será antidemocrática se o parlamento não for reconstituído, se não for assegurada a continuidade desse processo rumo à democracia”.

Alcides Costa Vaz, da UnB, diz que a intransigência dos protestos, que intensificaram-se na medida em que as ações tomadas por Hosni Mubarak se mostravam insuficientes, mostra que o povo queria mais que a simples saída do governante. “O regime, como um todo, não tinha legitimidade”, acredita o professor. “Mubarak tinha muita ascendência sobre o parlamento egípcio, o que provocou um questionamento de toda a ordem política do país. Embora seja um paradoxo termos as Forças Armadas como governo de transição para a democracia, é difícil imaginar outro caminho, considerando as circunstâncias”.

“A própria Irmandade Muçulmana é uma entidade fragmentada”, acrescenta Marcelo Suano, do CEIRI, citando a principal força de oposição política durante o governo de Mubarak no Egito. Ele explica que parte do grupo é mais radical, defendendo a aplicação de leis islâmicas, enquanto outros integrantes da Irmandade são mais moderados, favoráveis a contatos com o Ocidente e defendendo apenas reformas pontuais.

Al Jazeera English/Flickr

“Sair para a rua e protestar dá certo”

Se o Egito e a Tunísia sofreram mudanças de regime graças à mobilização popular, há sinais cada vez mais claros de que as revoltas no mundo árabe não devem ficar por aí. O Iêmen registra violentos confrontos entre manifestantes que pedem a queda de Ali Abdullah Saleh e apoiadores do regime, que já dura 32 anos. Na Jordânia, o rei Abdullah II dissolveu o governo e prometeu reformas políticas, em uma tentativa de acalmar a população. Na Argélia, país no qual as manifestações são proibidas, os protestos crescem em volume e dimensão, enquanto os protestos no Irã motivaram declarações da secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, que elogiou a coragem dos manifestantes iranianos e disse que é hora do país “seguir o exemplo do Egito” e rever seu sistema político.

Para Marcelo Suano, as revoltas populares no mundo árabe já estão se espalhando, mas devem gerar respostas diferenciadas em cada país. “Não dá para generalizar, cada país tem suas particularidades”, concorda Cláudia Musa Fay. Mas a historiadora defende que o sucesso das revoltas populares na Tunísia e no Egito consolidam uma ideia: sair para a rua e protestar dá certo. E os exemplos, segundo Musa Fay, não são apenas do mundo árabe. “Estamos tendo fortes manifestações contra Sílvio Berlusconi na Itália, tivemos protestos na França no ano passado. A repressão violenta às manifestações populares, de modo geral, não é mais viável como talvez tenha sido no passado. Essa ideia de que os protestos populares provocam mudanças está cada vez mais fortalecida”, garante.

“É curioso pensar que, há 10 anos, os países ocidentais invadiam países árabes alegando a necessidade de democratizá-los. Agora, os movimentos democráticos estão vindo de dentro”, comenta Alcides Costa Vaz. O professor da UnB adverte que os processos históricos em curso são imprevisíveis e podem ter consequências que vão além da leitura que se faz dos acontecimentos. “Ninguém apostava, no final dos anos 80, que a União Soviética seria desmantelada, ou que o regime de Nicolae Ceausescu na Romênia, iria cair. Do mesmo modo que muita gente, há poucos dias, não achava que o regime egípcio fosse cair de fato”.

Para ele, ainda é “precoce” falar em tendência, já que nenhum dos movimentos revolucionários está plenamente consolidado, e os reflexos em outros países, como Síria e Jordânia, são distintos do que se verificou no Egito e na Tunísia. Porém, o especialista em relações internacionais detecta um processo de questionamento da legitimidade dos regimes árabes, que pode refletir até mesmo em alguns regimes monárquicos da região, como a Arábia Saudita.

“A monarquia, em si, não é problema”, defende Marcelo Suano, lembrando que oito das 10 maiores democracias do mundo são baseadas em monarquias constitucionais. “A questão é que, na Arábia Saudita, a monarquia é absolutista. Trata-se do regime mais rígido do mundo árabe”. A insegurança dos EUA e de outras potências ocidentais, segundo Suano, estaria justamente na ausência de forças antagônicas no regime saudita. “A queda do rei traria um vácuo no poder, já que ninguém sabe que tipo de força política surgiria nesse caso. Esse é o grande temor”, diz o pesquisador.

“O mundo do Século XXI não admite mais esse modelo de regime (autoritário). Não há mais espaço para isso, tornou-se algo anacrônico”, garante Cláudia Musa Fay. Segundo ela, essa é uma exigência do próprio modelo capitalista, na medida em que as democracias são mais abertas às forças de mercado. Porém, a historiadora faz um alerta, em forma de pergunta. “Será que essas mudanças vão incorporar a todos?” E completa: “No caso da Arábia Saudita, talvez o petróleo acabe sendo mais importante (do que a mudança de regime). Mais do que democracia, o que interessa para a economia mundial é estabilidade. É a incerteza, tanto nas ditaduras quanto nas democracias, que acende a luz vermelha para o capital”.


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