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14 de fevereiro de 2011
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17:43

Hique Gomez, o sacerdote humorista de Tangos e Tragédias

Por
Sul 21
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Hique Gomez / Ramiro Furquim/Sul21

Milton Ribeiro

Passados 27 anos, o espetáculo Tangos e Tragédias segue sendo apresentado no Theatro São Pedro, de Porto Alegre, com sucesso de público. Ele faz parte da vida cultural porto-alegrense. Nesta temporada do Verão 2011, os personagens de Hique Gomez, o violinista Kraunus Sang, e de Nico Nicolaiewsky, o Maestro Plestkaya, lotam o teatro, das quintas-feiras aos domingos, desde 6 de janeiro. E assim será até o dia 20 de fevereiro.

Filho mais velho de Léo Chirivino Gomes (então zagueiro do Grêmio Football Porto-alegrense) e Flávia Gomes, Hique Gomez nasceu em Porto Alegre, em 1959. Após passar por vários instrumentos, parou no violino. Porém Hique é bem mais que um músico, é um músico-ator que encarna outros personagens, além do famoso Kraunus. Entre eles, Mundinho e Macuco Serra.

Nesta entrevista ao Sul21 — por e-mail, porque ele não curte responder perguntas ao vivo –, Hique Gomez fala de sua vida, do relacionamento com o companheiro de palco Nico Nicolaiewsky e, principalmente, sobre a trajetória de Tangos e Tragédias. Hique confessa que se considera um “sacerdote humorista”.

Sul21: Qual é tua formação musical? Que instrumentos tocas? Onde e com quem aprendeste?
Hique Gomez
: Minha formação é inteiramente em música popular. Comecei em conjuntos de baile aos 15 anos. Logo comecei a compor, gostava de tocar todos os instrumentos, tenho facilidade, mas aí parei no violino. Parei porque era um instrumento que não dava para tocar sem um professor. Estudei com vários, mas aí encontrei o Fredi Gerling, que me trouxe um entendimento muito grande sobre o instrumento. É onde tenho tentado me aprimorar. Nos últimos anos, fiz concertos com orquestra e tudo… Mas ainda me falta tocar o Concerto para Violino nº 1 do Prokofiev.

Ramiro Furquim/Sul21

“Os personagens são alter egos. Construímos os caras a partir de elementos nossos! Por isso parecem tão reais”

Sul21: E a trajetória antes do Tangos e Tragédias?
HG
: Ah… um pouco ta aí em cima, outro pouco era que eu queria ser arranjador e compositor de música brasileira. Estudei arranjos, escrevi para gravações, compunha chorinhos, toquei bandolim muitos anos na noite. Era e sou encantado com a música brasileira — os mineiros, os baianos, os matogrossensses, os cariocas e, claro, os gaúchos… Aí encontrei o Nico…

Sul21: E com ele nasceu o Tangos e Tragédias? Como surgiu?
HG
: Em 84. Nos encontramos para estudar música e loguinho montamos um poquet show que já continha toda a essência do que fazemos hoje. O Nico já tocava O Ébrio, eu confesso que, mesmo admirando como peça de museu, eu jamais pensaria em tocar tal musica! Mas quando ele trouxe logo pintou a brincadeira, o divertimento. E nós conseguimos contextualizar a obra do Vicente Celestino. Depois tinha o Coração Materno e Porta Aberta, que são obras eternas mesmo! Vicente não era um sambista, era filho de imigrantes italianos e trazia a ópera em seu imaginário criativo. Suas canções são tragédias mitológicas e ele se apresentava muito em circos pelo interior do Brasil. Isso está intimamente ligado com a quintessência da alma brega brasileira. Outro compositor importantíssimo é o Cláudio Levitan, com o Tango da Mãe e Ana Cristina, e com sua própria figura e personalidade completamente sbørnianas. E, é óbvio, Alvarenga e Ranchinho. Fomos buscar vozes diferentes para interpretar estas canções e aí começaram a vir os personagens. Pegamos eles pelas vozes. Os personagens são alter egos. Construímos os caras a partir de elementos nossos! Por isso parecem tão reais.

Sul21: O Sul21 reconhece que o folclore sbørniano é imperecível. Ele também é inesgotável?
HG
: Sim. Não exatamente o folclore, mas em se tratando de um universo fictício ainda tem muito pano pra manga… É um tema para infinitas gerações.

Sul21: Tu e o Nico são pessoas inquietas. Como o T&T evolui e se atualiza de ano para ano?
HG
: Naturalmente. Sinceramente, o que se pretende é que nós possamos exercer o nosso potencial artístico na sua plenitude. O resto é consequência!

Ramiro Furquim/Sul21

“Nico e eu somos muito diferentes. Realmente não combinamos e isto fica muito bem no palco!”

Sul21: Como é fazer a “mesma coisa” por tantos anos? Quantos anos mesmo?
HG
: São 27 anos. Eu faço isso como um sacerdócio. Me considero um sacerdote humorista. É um ritual. São os mesmo gestos, os mesmo olhares, as mesmas músicas porque elas conseguem mobilizar uma certa qualidade de energia e conseguem causar um efeito ÚNICO neste fazer artístico. As pessoas se rendem. Nós nos rendemos ao tempo. Tudo é entrega, diante do mistério inextrincável de um ritual onde a alegria é uma expressão divina a ser cultuada.

Sul21: Tu e o Nico não têm desejos de, volta e meia, matarem um ao outro?
HG
: Matar não… Mas, às vezes, a gente se dá o direito de uns afastamentos. Somos muito diferentes. Realmente não combinamos e isto fica muito bem no palco! O conflito humano fica verdadeiramente bem representado naqueles dois personagens em conflito. Somente ao lado deste grande artista que é o Nico eu poderia render 100% do meu potencial, porque nós nos retroalimentamos em termos criativos e em termos de excelência.

Sul21: Tens uma relação forte com o teatro. Quem são Mundinho e Macuco, por exemplo?
HG
: O Mundinho foi escrito em 1987. E trabalho com ele até hoje… Foi inspirado em uma peça de Caldeirón de La Barca chamada O Grande Teatro do Mundo. O Mundo entra e fala algo… Imagino o que ele diria se fosse hoje. Macuco Serra é um flanelinha que tem pendores artísticos. Tenho feito concertos com orquestras e ele toca no serrote uma sonata. Briga com o maestro e diverte muito.

Sul21: Além do T&T, como vai a carreira individual? O que tens feito e farás? E os projetos com orquestra? O que te sobra de energia para a carreira solo?
HG
: Ano passado, fiz um concerto fantástico com a Orquestra Sinfônica Jovem de Cuiabá. E já fiz com várias outras. O TanTango está em fase de planejamentos para a gravação do DVD e a Revolução Fictícia estreia no Porto Alegre em Cena deste ano.

Ramiro Furquim/Sul21

“O que mais me encanta é o Tholl. O Grupo está a um passo de uma conquista fantástica, que é uma escola a formação artística”

Sul21: O que chega do T&T e de teu trabalho solo fora do âmbito teatral?
HG
: Muito pouco. Rádios muito esporadicamente rolam. É mais através da TV mesmo. Fizemos muitos programas de TV. No Jô Soares, fomos oito vezes. É bastante para um grupo independente.

Sul21: Houve uma excursão à Europa, não?
HG
: Já há alguns anos voltamos a Portugal para turnês. Estivemos em festivais na Espanha também com uma versão totalmente em espanhol.

Sul21: O que tens visto e gostas da produção local?
HG
: O que mais me encanta é o Tholl. Já são um grupo muito reconhecido no Brasil, mas estão a um passo de uma conquista fantástica, que é uma escola a formação artística. É incrível o acabamento dos espetáculos.

Sul21: E de música em geral?
HG
: Muita coisa. estou produzindo o CD da Bella Stone que é uma jovem cantora lírica. O CD do Nelson Coelho de Castro, Lua Caiada, está fantástico, ele chegou a um ponto que o considero um dos grandes compositores de samba brasileiro. Tipo um João Nogueira. As letras, a legitimidade… Muito profundo, me amarrei mesmo.

Sul21: Na Sbørnia, o que é oferecer cultura?
HG
: É um passeio que se dá na Recykla Gran Rechebuchyn. A Grande Lixeira Cultural.

Sul21: Em teu país, o acesso à cultura é amplo, geral e irrestrito? Ou aqui é melhor?
HG
: O Acesso a Recykla é imediato e liberado, aqui tem coisas que jogam lá e depois só lá mesmo pra recuperar.

Sul21: Como promover a inclusão cultural no estado? O que faz a Sbørnia para promover a inclusão?
HG
: Inclusão é um tema muito importante. A Sbørnia coloca por exemplo o Zé da Folha pra tocar nas aberturas do show. Um artista de rua que jamais sonhou em entrar no Theatro São Pedro. Está ali conosco todos os dias, sendo aplaudido e reconhecido pelo nosso público.

Sul21: Em geral, o músico gaúcho pode receber bastante Scombrios vivendo aqui ou tem que emigrar?
HG
: Músico tem que estar na estrada. Viajar, se comunicar. Os scombrios (dinheiro da Sbørnia) vêm conforme o esforço dele para alcançá-los. Mas já dizia um antigo sábio sborniano: “O Scombrio não traz a felicidade. A felicidade é que traz os scombrios…”. Isso ocorre geralmente ao perceberem que o scombrio não tem valor algum.


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