Opinião
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22 de fevereiro de 2011
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08:00

A carruagem que virou abóbora

Por
Sul 21
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Flávia Cintra

Adoro teatro e estimulo meus filhos a desenvolver esse gosto. Desde que eram pequenininhos, procuro peças adequadas à sua idade e vamos assistir juntos. Acho que parte da magia está na espera pela apresentação e, desta vez, fomos ansiosos assistir Cinderela, um de seus contos de fadas preferidos. Confesso que é um dos meus preferidos também.

No site do Teatro Ressurreição, onde a peça estava em cartaz neste final de semana, consta que há acessibilidade para pessoas “especiais”. Ao visitar a página do teatro, me incomodei com a terminologia inadequada e não resisti: mandei um e-mail sugerindo melhorar o texto, utilizando “pessoas com deficiência”. Mal sabia que este incômodo não seria nada perto do que estava por vir.

Como faço por costume, me certifiquei do acesso num telefonema em que a atendente confirmou que o espaço era todo acessível para cadeirantes. Então, fui tranquila com meus dois filhos de três anos e meio, minha sobrinha de cinco, minha mãe e a babá.

Cheguei com antecedência, uma hora antes do inicio do espetáculo, e aí os problemas começaram acontecer. Na entrada do teatro havia um degrau. Sim, um único degrau, mas o suficiente para impedir minha entrada. Pedi para a babá perguntar ao funcionário lá dentro onde estava a entrada acessível, pois não me passava pela cabeça que não houvesse, já que eu tinha me certificado disso antes. Um segurança chegou para me explicar que aquele ali era “o único degrau”, mas que ele me ajudaria a subir. Cadeiras de rodas motorizadas são pesadas, não é tão simples levantá-las… primeiro porque se a cadeira virar, eu me machuco e quem está me ajudando também pode se machucar. Depois porque a cadeira pode quebrar.. Mas, ponderei, eu já estava ali… o degrau não era tão alto. Calculei os riscos e aceitei a ajuda.

Na bilheteria, outro problema. O funcionário informou que o lugar reservado para cadeirantes fica no fundo do teatro. Não havia espaço para que eu ficasse perto das crianças. Enquanto eu e minha mãe discutíamos com a funcionária, Mariana avisou que precisava ir ao banheiro. A babá a acompanhou até o saguão do teatro, um espaço confortável com ar condicionado, com quatro degraus altos na entrada. E como vou entrar no saguão para aguardar a peça?

Laura, uma moça linda e simpática que trabalha como estagiária no teatro, não sabia mais o que fazer. Ela me explicou que o acesso ao teatro é feito por uma entrada lateral, um corredor de serviço usado para passagem de técnicos de cenário, figurino e elenco. Visivelmente chateada e constrangida, ela foi se informar mais. Voltou com o segurança Edson, outro fofo que tentou me ajudar. Ele sugeriu a outra entrada por onde, segundo ele, havia “apenas um degrau” para se chegar ao saguão. Descemos o degrau da primeira entrada, fomos pela rua até a segunda entrada onde havia um degrau igual ao primeiro. Subimos de novo. Então, vi o tal degrau para o saguão. Tinha uns 40 cm de altura, impossível. A essa altura, eu via meus filhos lá dentro com a minha mãe que me olhava aflita. Algumas pessoas que observavam tudo começaram a se manifestar, outras me reconheceram por causa do meu trabalho e se aproximavam para me cumprimentar, enquanto eu tentava raciocinar para decidir o que fazer.

Eu não ia fazer meus filhos e minha mãe ficarem comigo embaixo do sol forte daquele horário, aguardando do lado de fora do teatro. Eu até esperaria sozinha, mas se eu pudesse… pelo menos, estar ao lado deles para assistir a peça. Isso também não seria possível. Eu já estava nervosa e vendo a situação piorar, virar um tumulto. Se eu estivesse sozinha ou acompanhada só de adultos, talvez continuasse a briga. Mas, eu levei as crianças para assistir Cinderela e não queria estragar o passeio deles.

Acenei para minha mãe trazer meus filhos e minha sobrinha. Eles desceram os degraus e me ouviram explicar que eu ia esperá-los em casa. Minha filha e minha sobrinha lamentaram com um “ahhhhh…”, mas meu filho questionou severamente: “Por que mamãe?”

— Filho porque não dá para a mamãe entrar, você está vendo…

Então, a conversa ficou séria.

— É porque você anda de cadeira de rodas?

— Não, filho, é por que aqui tem esses degraus.

— Mamãe, é proibido entrar pessoas de cadeiras de rodas nesse teatro?

— Não, Mateus. É proibido ter degraus no teatro.

— Então, eles precisam consertar!

— A mamãe vai trabalhar para isso.

Percebi a indignação das pessoas que assistiram as perguntas do meu filho. Não havia o que fazer. Eu queria acabar com aquilo. Queria que eles se divertissem e fui contornando a situação até que eles entraram felizes com minha mãe e a babá.

Voltei para casa de taxi, chorando de raiva e tristeza. Não chorei por mim, mas pela decepção deles, pela injustiça. Eu comprei ingressos de um teatro que se dizia com acessibilidade. Fiz tudo certo, confirmei por telefone e cheguei antes para não ter problema. Fiquei pensando se eles não sabem o que é acessibilidade ou se mentem para as pessoas. Pior que não ter acesso foi mentir que tinham, pois me obrigaram a viver com meus filhos a cena que eu tenho evitado e adiado desde que eles nasceram.

O relógio parecia parado. O tempo não passava. Enquanto os esperava voltar, ficava simulando mentalmente outros jeitos de reagir, tentando interpretar se eu havia feito o melhor. Eu detesto armar barraco e acho que não valeria a pena expor as crianças ainda mais.

Eles chegaram entusiasmados, contando detalhes da peça. Até que…

— Ah, mamãe, tem outra coisa! Eu pedi para a fada da Cinderela te ajudar a fazer desaparecer os degraus. Ela disse que vai ajudar.

Me desculpe o desabafo, mas é que precisamos de muitas fadas para concretizar o “…e foram felizes para sempre”.

Varinhas de condão estão disponíveis no Decreto 5296.

* Jornalista, milita — desde 1993 — no movimento de inclusão das pessoas com deficiência, trabalhou no processo de elaboração da Convenção da ONU, em Nova York e no processo de ratificação no Brasil
Publicado originalmente no blog Memórias de uma mãe cadeirante


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